Brasileirão Série A
Tendência

Investigação do Cade mostra o caos da venda de direitos de TV do Brasileirão

Warner reclamou no Cade sobre atuação da Globo, a quem atribuiu como responsável por encerrar o contrato do Brasileirão três anos antes do fim

Uma briga entre a Warner e a Globo no Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) chama a atenção para como os direitos de transmissão do Brasil são um problema. O órgão investiga o suposto monopólio da Globo em relação a direitos de transmissão de futebol brasileiro e recebeu reclamações da Warner sobre a atuação da emissora carioca no caso dos direitos do Campeonato Brasileiro. É só um dos muitos pontos que mostra como o futebol brasileiro tem um problema quando se trata de direitos de transmissão.

Qual é a reclamação da Warner?

A Warner se reuniu com coordenadores do Cade na última segunda-feira para falar sobre a investigação aberta pelo órgão em relação ao suposto monopólio da Globo nos direitos de transmissão do futebol, segundo informa Gabriel Vaquer, na coluna F5, da Folha de S. Paulo.

A Warner foi chamada ao Cade como dona da TNT, canal herdou o espólio do Esporte Interativo, e que tinha os direitos de transmissão de alguns clubes do Campeonato Brasileiro no ciclo 2019-24, que foi encerrado após o fim da temporada 2021, alegando que era inviável continuar naquele modelo.

Na época, a TNT emitiu um comunicado explicando a decisão:

A decisão, amparada pela cláusula de saída prevista em contrato, foi tomada porque a oferta de transmissão fragmentada do Campeonato Brasileiro de Futebol não permite à companhia proporcionar uma experiência integral aos seus assinantes. Com venda pulverizada para a TV aberta e outras plataformas, além de outros fatores limitantes como falta de jogos exclusivos e os blackouts, o modelo atual não é sustentável para a companhia.

Segundo documentos que a Folha teve acesso, a Warner foi representada por Lara Andrade, executiva jurídica da emissora no Brasil, e teve participação do coordenador-geral do Cade, Felipe Neiva. O órgão ainda pediu os contratos da Warner com os clubes da Série A e pediu esclarecimentos sobre o motivo do acordo, que ia até 2024, ter sido rompido três anos antes do fim.

A resposta da Warner foi a interferência da Globo. A empresa americana alega que a Globo pediu a clubes como Palmeiras e Fortaleza adotarem o chamado bloqueio de praça, quando um jogo que está sendo exibido na TV por assinatura não seja mostrado para o local onde ele acontece. No caso do Palmeiras, por exemplo, o jogo não poderia ser exibido em São Paulo. No caso do Fortaleza, não poderá ser transmitido para o Ceará. Justamente as praças onde os jogos teriam mais audiência.

Essa foi uma prática muito comum no Sportv, canal de TV fechado do grupo Globo. Para assistir jogos na sua praça, era preciso assinar o Pay Per View, o canal Premiere. A alegação da Warner é que a Globo aplicava uma multa aos clubes que não adotassem isso no pagamento das cotas do PPV, segundo contrato assinado entre clubes e emissora.

Há três tipos de direitos de transmissão no Brasil: TV aberta, que hoje tem apenas a Globo; TV fechada, hoje apenas com o Sportv, mas já teve a TNT; e PPV, que tem o Premiere e o Athletico Paranaense, que coloca seus jogos em um streaming próprio, na Cazé TV e também na TNT (algo que passou a acontecer em 2023). Os atuais direitos de transmissão valem até 2024. Para 2025, será preciso um novo contrato.

Na época da negociação, a Globo adotou a redução dos valores do PPV como estratégia de quando o Esporte Interativo entrou no jogo para tentar tomar clubes, no setor de TV por assinatura, do Sportv. Quem assinasse com a Globo nos três canais, TV aberta, fechada e PPV, receberia um valor cheio. Quem assinasse apenas parcialmente, teria um desconto no valor. O documento apresentado ao Cade diz que a Globo só retirou os redutores após clubes convencerem a Warner a adotarem o modelo de bloqueio de praça.

A Warner ainda lembrou que a Globo tentou utilizar a então Media Provisória 984, que dava ao clube mandante o direito de transmitir seus jogos. Segundo alegado pela empresa americana, ela optou por mostrar confrontos em casa do Palmeiras, com quem tinha contrato, contra o Flamengo, que tinha contrato com a Globo. A emissora carioca alegou na época que isso desrespeitava o contrato, que tinha sido estabelecido antes da MP.

Depois disso, porém, com o Flamengo usando dessa premissa para transmitir seus jogos no Campeonato Carioca — o que levaria a Globo a cancelar seu contrato com a Federação Carioca de Futebol e não transmitir mais o estadual do Rio — e com o Athletico Paranaense fazendo o mesmo no Campeonato Brasileiro (já que é o único clube que não vendeu os direitos de PPV à Globo), a emissora passou a adotar outra postura. Passou a mostrar os jogos, por exemplo, que envolviam o Athletico Paranaense fora de casa.

Essa reunião faz parte de uma investigação reaberta pelo Cade sobre o suposto monopólio da Globo no futebol brasileiro. O inquérito foi reaberto em junho de 2023, dois anos depois de ficar parado. O Cade tem pedido informações a quem teve problemas com a Globo, como o Flamengo, o Athletico Paranaense e também com a Ferj, Federação Carioca de Futebol.

Como foi a venda de direitos de transmissão do ciclo 2019-24

O último contrato de transmissão do Campeonato Brasileiro, no ciclo 2019-24, foi bastante agitado. Ainda em 2016, tivemos a entrada de um novo concorrente no mercado, o Esporte Interativo, que levou alguns clubes para o seu lado — as negociações passaram a ser individuais desde 2011, com a implosão do Clube dos 13. Desde então, tudo mudou e muito voltou a ser o que que era. E uma dessas coisas é a conversa sobre um monopólio da Globo.

O Esporte Interativo fez muito barulho em 2016, quando anunciou um grupo de 14 clubes (de várias divisões, diga-se) com os quais tinha fechado contrato de direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro. Com isso, tornou-se uma concorrente para a Globo, que tinha direitos exclusivos do Campeonato Brasileiro por muitos anos.

A entrada de um concorrente mexeu com o mercado. Na época, só era possível exibir jogos em que a transmissora tivesse acordo com os dois clubes. Com a divisão de clubes entre Globo e Esporte Interativo (que depois seria TNT) na TV fechada, a exibição desses jogos passou a ser muito limitada. Isso causou os chamados blakouts, ou seja, jogos que não poderiam ser transmitidos por ninguém, porque cada clube tinha contrato com uma emissora.

Foi o caso do Athletico Paranaense. O Furacão não aceitou a proposta da Globo para PPV, que era significativamente menor do que aqueles que faturavam mais no serviço. O time fechou com a Globo apenas para a TV aberta, o que fez com que o Furacão acabasse sendo um dos times com mais jogos transmitidos em TV aberta no ano de 2019, o primeiro do novo contrato.

Houve outro problema: o Palmeiras começou o Brasileirão apenas com contrato válido com a Turner, então dona da TNT. Não tinha contrato com a Globo nem na TV aberta, nem no PPV. Com isso, só os seus jogos com outros times que tinham contrato com a Turner eram exibidos. A disputa durou até a quinta rodada, quando o Palmeiras fechou com a Globo na TV aberta e PPV, conseguiu tirar o redutor do PPV adotando o bloqueio de praça e todos seus jogos puderam novamente serem exibidos.

Quando a TNT se retirou da transmissão do Brasileirão, a partir de 2022, todos os clubes migraram para a Globo, exceto pelo Athletico Paranaense. O clube segue sem ter fechado com a emissora tanto em TV fechada quanto em PPV. Com isso, cedeu seus direitos à TNT em 2023 para TV fechada (apenas para seus jogos como mandante, que é o que tem direito) e mostra seus jogos de PPV no seu streaming próprio e na Cazé TV, o Youtube, apenas para assinantes do canal do streamer (também limitado aos 19 jogos em casa do clube).

Como ficará o futuro, a partir de 2025?

O contrato do Campeonato Brasileiro está no fim do seu ciclo. O ano de 2024 será o último do contrato vigente e a expectativa era que houvesse uma liga formada para que o contrato de 2025 em diante fosse negociado de forma coletiva. Embora todos os clubes concordem que é preciso criar uma liga, há divergências sobre questões como distribuição do dinheiro e mesmo sobre estrutura organizacional. Há uma clara disputa por dinheiro e, principalmente, por poder entre os dirigentes.

Neste momento, temos dois blocos que tentam convencer clubes do bloco oposto a mudarem para o seu. A Libra (nome horrível que significa Liga Brasileira de Clubes) tem 16 clubes, incluindo aqueles de maior torcida, enquanto o Forte Futebol tem 24 clubes. Há ainda um grupo que se diz independente, de quatro clubes, chamado Grupo União (o que soa uma ironia incrível), mas que estão com os mesmos investidores do Forte Futebol, mas se dizem independentes.

Os dois blocos têm divergências que passam pela distribuição do dinheiro, mas também na forma como a liga será estruturada. É uma disputa por poder e todo mundo quer ter poder decisão. As negociações para os direitos de 2025 em diante já deveriam estar acontecendo, mas com a divisão dos clubes, isso está sendo adiado.

A Globo, detentora dos direitos, tem buscado se antecipar a esse problema que está iminente. Fez uma proposta diferente dos dois grupos, em termos financeiros.  Segundo informou Rodrigo Capelo, no jornal O Globo, a sugestão da empresa para os clubes é um modelo único que valha para todas as equipes. A divisão do dinheiro seria feita da seguinte forma: 40% igual para todos os clubes; 30% de acordo com as posições na tabela nos últimos cinco anos, exceto o atual; 30% conforme a tabela da temporada atual.

Com essa proposta, ela tenta resolver um dos nós da negociação: os clubes discutem como seria o pagamento por visibilidade, audiência ou número de partidas transmitidas na TV aberta, como já aconteceu. Chegaram a propor coisas estapafúrdias como medir número de seguidores em redes sociais, o que, aparentemente e para o bem do bom senso, não foi adiante. Além disso, os dois outros pontos, de uma cota maior de divisão igual a todos e uma para o desempenho esportivo daquele ano, são praticamente consensuais. Resta o terceiro ponto.

Com a proposta da Globo de converter um dos pés do tripé em desempenho esportivo alongado por cinco anos, isso pode ser uma solução. Afinal, isso tende a beneficiar os maiores clubes, que conseguem ter um desempenho esportivo consistente. Ao mesmo tempo, abre espaço para clubes que consigam se manter em boas campanhas e pode premiar um trabalho de longo prazo, além da premiação por aquele bom ano. Soa uma boa solução para acabar com os intermediários do processo e tentar um acordo coletivo.

Ainda não sabemos como essa novela acabará, já que ela está só começando. Mas está claro que essa negociação individual, como acontece desde 2011, é péssima para todos: clubes, emissoras e para o torcedor, que é afetado diretamente pelos efeitos dessa burrice da negociação individual. Tanto que a Globo é uma das primeiras a se colocar a favor de uma negociação coletiva. A individualização trouxe muito mais problemas do que soluções. A liga é uma necessidade, mas é preciso que os dirigentes usem algo muito em falta: bom senso. E por essa razão, não dá para contar que isso acontecerá.

Foto de Felipe Lobo

Felipe Lobo

Formado em Comunicação e Multimeios na PUC-SP e Jornalismo pela USP, encontrou no jornalismo a melhor forma de unir duas paixões: futebol e escrever. Acha que é um grande técnico no Football Manager e se apaixonou por futebol italiano (Forza Inter!). Saiu da posição de leitor para trabalhar na Trivela em 2009, onde ficou até 2023.
Botão Voltar ao topo