A libertação dos traumas se transformou em liberdade para voar ao mais alto céu: O Fortaleza é de primeira divisão
O Fortaleza atravessou oito anos como cativo na Série C. Oito anos em que sua liberdade permanecia enclausurada em uma realidade que não parecia a sua. Leão enjaulado que, ante o claro sinal de emancipação, via o número de barras de ferro aumentar no drama contínuo. Afinal, em quatro desses anos, os tricolores foram Sísifo. Levaram a pedra ao alto da montanha e a viram rolar de volta à base, impotentes, nas quatro vezes em que sucumbiram no jogo do acesso diante de sua torcida. Por isso mesmo, mais do que o retorno à Série B, o duelo com o Tupi em 2017 serviu para tirar um peso do Fortaleza. Para romper os grilhões e garantir a libertação, justo às vésperas do centenário. E qual pássaro solto da gaiola, desimpedido a voar, não deseja alcançar o alto dos céus? Nisso consistiu o sonho dos tricolores no ano em que, enfim, fugiram do pesadelo. E realizaram o tal sonho, irretocável, conquistando a promoção consecutiva à Série A com uma autoridade que poucas vezes se viu na Segundona.
A transição de 2017 para 2018 levou o Fortaleza a virar sua chave. O fim da inglória trajetória na Série C aconteceu com um roteiro bem diferente daquilo que se prega na cartilha da boa gestão de um clube. O Leão do Pici atravessou uma crise bem no meio da campanha, que levou não apenas à mudança de técnico, mas também de diretoria. Assim, colocar ordem na casa também foi um passo importante, diante das novas possibilidades que surgiam com a Série B. Logo no fim do ano, Marcelo Paz assumiu a presidência. E os tricolores fizeram sua aposta diante da saída anunciada de Antônio Carlos Zago, que preferiu retornar ao Juventude. Resolveram confiar na preparação de Rogério Ceni à nova carreira como treinador, quando seu início no São Paulo não trazia bons indícios – muito embora parte das situações no Morumbi tenha fugido de seu controle.
O investimento realizado pelo Fortaleza no ano de seu centenário começou pelo treinador. E não apenas por uma questão financeira, mas também por tomar a rara atitude de confiar no novo. O ex-companheiro Bosco, atual treinador de goleiros tricolor, foi o responsável por fazer a ponte. Ceni, então, aceitou o convite diante do que viu como projeto. O trabalho precisaria ser talhado aos poucos, no elenco que mantinha parte da base vitoriosa na Série C, mas também confiava em reforços indicados pelo veterano. E a sua figura foi importante para atrair bons jogadores, acima das possibilidades econômicas da agremiação. De qualquer maneira, ainda que mirasse o acesso à primeira divisão, isso não parecia uma obrigatoriedade de curto prazo. A principal meta do Leão do Pici deveria ser mesmo se estabilizar na Série B. Havia uma série de transformações, seja pelo calendário mais longo, seja pelo orçamento mais recheado, que não poderiam ser cumpridas dando um passo maior do que as pernas.
O primeiro semestre não serviu para que o Fortaleza se tornasse campeão, mas ajudou Rogério Ceni a fundamentar seus preceitos, através de vários testes em suas peças e variações táticas. Montou um time que preza pela posse de bola e pelo controle do jogo – algo raro de se ver no futebol brasileiro e ainda mais na Segundona, onde o desespero é uma constante. Estabeleceu também o equilíbrio defensivo em sua equipe, o suficiente para garantir resultados apertados. Contou com um ataque efetivo, sobretudo pela presença de seu incontestável artilheiro. E forjou um espírito vencedor que se incutiu ao longo dos meses, a partir de sua personalidade exigente, transbordando além do próprio elenco. Tal espírito repercutiu desde as primeiras rodadas da Série B, quando a confiança no treinador foi reiterada – superando definitivamente as derrotas nas finais do Campeonato Cearense, quando alguns pediram sua cabeça. O credo era refletido através do trabalho intenso que se via no cotidiano, dentro do CT do clube, onde ficava claro que algo diferente poderia acontecer.
E se a sensação de liberdade desde a fuga da Terceirona permitia ao Fortaleza sentir que tudo podia, os dois primeiros meses da Série B provaram que não era um mero devaneio. Foram nove rodadas de invencibilidade, o suficiente para colocar os tricolores entre os favoritos ao acesso. Sete vitórias e três empates, que permitiram à equipe disparar na liderança. Logo ficaria claro que dificilmente o Leão do Pici manteria aquele ritmo alucinante até o final de uma campanha tão exigente. Mas aí esteve outro pequeno segredo, ao aprender com os tombos e se reerguer em diferentes momentos de dificuldades. Foi assim em meados de julho, quando as vitórias cessaram e os líderes precisaram de alguns ajustes para arrancar novamente. Foi em setembro, quando a sequência difícil fazia o clube olhar ao retrovisor, diante da maré que subia na concorrida luta pelo acesso.
O último mês, entretanto, guardou aquilo que o Fortaleza mais desejava: a certeza. A certeza de que os resultados viriam e a certeza de que, independentemente da quantidade de adversários se engalfinhando pela primeira divisão, a vantagem confortável poderia ser mantida. E isso só poderia acontecer através das vitórias, que novamente voltaram a florescer. O Leão do Pici sustenta uma invencibilidade de sete jogos, a maior desde aquela arrancada impressionante no início da campanha. Manteve a segurança que havia se perdido contra oponentes em situação difícil na tabela. Abriu o peito à realidade e absorveu a festa daquilo que estava prestes a acontecer. Não foram poucos os motivos para celebrar, afinal.
Há duas semanas, a vitória sobre o Paysandu não foi uma mera vitória. Foi a oportunidade de reconhecer e extravasar a euforia pelo ano histórico. O Castelão abarrotou suas arquibancadas com 57 mil fanáticos. Que estavam ali não apenas para empurrar o time rumo à primeira divisão, tão clara no horizonte, mas também para reafirmar a grandeza do clube na semana em que completou o seu centenário. Cena de encher os olhos, o estádio todo se coloriu em um mosaico espetacular. Nada de azar, com o importante triunfo por 1 a 0. Já neste sábado, diante da primeira oportunidade de confirmar o acesso, o Leão do Pici não titubeou a cumprir sua missão. Encarou nos olhos o Atlético Goianiense, justamente aquele que poderia botar água em seu chope, e conquistou a vitória fora de casa por 2 a 1. O resultado que permitia o voo mais alto à equipe que em nenhum momento perdeu de vista o acesso.
A tarde em Goiânia, aliás, teria dois símbolos do que foi esta caminhada do Fortaleza. O primeiro deles, figura inescapável nesta Série B: o artilheiro Gustavo Henrique. O centroavante apresentou sua capacidade goleadora de maneira contundente, desde o estadual. Inclusive, descobriu algumas virtudes que talvez nem ele mesmo soubesse, como a categoria para cobrar faltas incentivada por Ceni. O início arrasador dependeu bastante do insaciável ‘Gustagol', justificando o apelido. A queda de rendimento da equipe em julho se explica bastante por sua ausência, lesionado, quando também recebia propostas para se transferir ao futebol europeu. Voltou e ajudou os tricolores a se recuperarem. Já no segundo turno, apesar do jejum, recuperou a fome de gols no momento mais glorioso. Foi dele o tento da vitória sobre o Paysandu. E dele também o primeiro contra o Atlético, antes de Bruno Melo ampliar.
O passeio do Fortaleza na primeira etapa, no entanto, se contrastou com as dificuldades que encarou no segundo tempo. E, então, ressurgiria outro cara que está na história do Leão do Pici. Marcelo Boeck foi o grande responsável por espantar os fantasmas na Série C, com uma atuação gigantesca no jogo do acesso contra o Tupi. Nesta Segundona, precisou lidar com as críticas ferozes pelos maus momentos. Ainda assim, o capitão voltaria a ser herói, terminando como o melhor em campo em Goiânia. Diante da insistência do Atlético, fechou o gol e evitou o empate. Acumulou defesas espetaculares. Permitiu aos tricolores perceberem que o fim do pesadelo poderia ser mesmo mais saboroso que o sonho, ante o acesso consumado. São 64 pontos em 34 rodadas, com a imponente marca de 19 vitórias. Em nenhuma rodada a equipe de Rogério Ceni esteve fora da zona de acesso. E apenas na primeira não ocupou a liderança. Os méritos são todos evidentes. Acima disso, incontestáveis.
Além de Ceni, Boeck e Gustagol, vários outros personagens são responsáveis pelo acesso do Fortaleza. Ligger e Diego Jussani formaram uma dupla consistente na defesa, que se encaixou muito bem e se complementou. Bruno Melo havia encarado três das desilusões na terceirona, para anotar o gol derradeiro neste sábado. Outro remanescente da Série C, Felipe passou a atuar na cabeça de área e brilhou na nova função. Nenê Bonilha, Derley e Jean Patrick se tornaram peças úteis no esquema, permitindo variações na meia-cancha. Dodô vestiu a camisa 10 e, emprestado pelo Atlético Mineiro, recuperou certa aura que tinha nos tempos de base. Já na frente, nomes como Marcinho, Ederson e Marlon ajudaram a potencializar a produção ofensiva dos tricolores.
E há, é claro, o camisa 12 que fez a diferença ao longo de toda a Série B: o torcedor. A massa tricolor abraçou o clube e acreditou que o salto à primeira divisão realmente poderia acontecer. Apoio incondicional que se viu jogo a jogo no Castelão, tantas vezes cheio de fanáticos. Se os tricolores não abandonaram a equipe nem mesmo nos maiores momentos de provação, não seria na bonança que sucumbiriam. A média de público extrapolou os 25 mil, superior à maioria dos clubes da Série A. Além disso, não foram poucas vezes que a casa lotou, em especial na comemoração do centenário contra o Paysandu. Os tempos de frustração já haviam ficado para trás. Assim, se tornava mais fácil permitir que a alegria incontrolável irradiasse do peito. Motivasse ainda mais o forte time na conquista do acesso.
Nas próximas horas, a multidão tricolor deve tomar as ruas da capital cearense para recepcionar os seus heróis. E o Fortaleza não se dá por satisfeito com o mero acesso. Se há a possibilidade de mais, o time de Rogério Ceni então quer mais que as duas promoções consecutivas. A conquista da Série B, o primeiro título nacional do clube, depende de uma mísera vitória do Leão do Pici nas quatro rodadas restantes. Melhor ainda se acontecer já na próxima terça, diante da torcida, encarando o vice-líder CSA. O Castelão certamente se ornamentará para a festa. Será a ocasião perfeita para enterrar de vez tantos traumas vividos no estádio, durante a peregrinação conturbada na Série C. O momento é outro. A hora é de pensar grande.
E pensa grande o futebol cearense como um todo, naquele que é um ano emblemático. O Ferroviário, depois de uma façanha contra o Sport na Copa do Brasil, conquistou a Série D. O Ceará, por sua vez, tem tudo para garantir a milagrosa permanência na Série A, diante da comunhão da torcida com o time de Lisca Doido. O Vozão, aliás, teve uma postura elogiável nas redes sociais ao parabenizar o Fortaleza. Valoriza o esforço dos clubes locais, que dão exemplo ao resto do país. O máximo do esplendor, afinal, deverá acontecer quando o clássico se repetir na primeira divisão. Seria fantástico ver o embate de Rogério Ceni e Lisca, diante de tudo o que envolvem ao redor de seus times.
Mas antes de pensar no futuro, o Leão do Pici está em seu direito de celebrar o presente. O centenário não poderia ser mais retumbante. Só o êxtase importa aos tricolores agora, depois de tantos anos comendo migalhas, depois de tantos anos aturando as gozações, depois tantos anos se frustrando no repetido filme do jogo final. A liberdade não poderia ser mais bela, sem as amarras perturbadoras que estagnaram o time, enfim imparável na segunda divisão. O alívio incontido em Juiz de Fora se transformou em orgulho gigantesco em Goiânia. O que os torcedores mais esperam, no entanto, é a felicidade compartilhada em Fortaleza. E, mais para frente, o gosto de defender novamente a honra nas grandes capitais. A mais livre representação de dedicação ao clube, na almejada primeira divisão.
As imagens que ilustram o texto são do site do Fortaleza