A resistência do Vasco da Gama e a luta pelas causas sociais no futebol
As consequências do movimento antirracista do Vasco da Gama sobre a sociedade e as dificuldades enfrentadas ao longo dos anos pelo movimento negro no Brasil
Por João Dall'ara e Murillo César
“A história mais bonita do futebol”. A frase reafirmada inúmeras vezes enaltece o orgulho dos vascaínos em ser Clube de Regatas Vasco da Gama. Com milhões de torcedores, o clube fundado na zona suburbana da cidade do Rio de Janeiro encabeça uma das lutas mais importantes da nossa sociedade, registrada nas páginas de sua caminhada de mais de 100 anos. A representatividade dos cruzmaltinos ultrapassa as quatro linhas e atinge diretamente o debate quanto ao racismo na sociedade.
A essência do Vasco compreende as causas raciais e sociais ao longo de sua história. A partir dos relatos e acontecimentos do Século XX, chega-se à importância do movimento cruzmaltino, até a nossa sociedade contemporânea, e o que ainda falta nessa luta. Além disso, a trajetória do clube ajuda analisar os problemas pelo qual o futebol, a sociedade e os negros passaram – e ainda passam – até os dias de hoje, nos quais as lutas sociais seguem presentes no DNA vascaíno.
O princípio do “Vasco da Gama”
“Uma história tão representativa que talvez devesse ser contada até nas aulas de história do Brasil”. É assim que Cláudio Nogueira, escritor, jornalista e vascaíno, resume a trajetória do Vasco da Gama ao longo de mais de um século. “Quando a gente fala da história do Brasil, vai falar dos grandes nomes, da independência, da proclamação da república, mas não há muito desse caráter popular, no qual o futebol se insere”.A história do Vasco se inicia num contexto de celebração, mais especificamente os 400 anos da descoberta do caminho para as Índias pelo navegador Vasco da Gama, em 1898. Nesse ano, como conta Cláudio, a colônia portuguesa do Rio de Janeiro, observando o sucesso recente dos clubes de remo, principal esporte da época, decidiu criar um para chamar de seu, que representasse Portugal no Brasil.
Entretanto, o clube nasceu com forma e visão diferentes dos demais. “Com uma proposta diferente da maioria dos times de então, que eram mais fechados e elitizados, o Vasco surge primeiro em uma região central da cidade, com bairros mais carentes dentro do Rio de Janeiro, e como clube aberto para todas as origens e cores”, ressalta o jornalista.
O futebol, que chega ao Brasil — conforme a história oficial — em 1894 com Charles Miller, ainda não fazia parte da cultura popular, mantendo-se como um esporte elitista e, majoritariamente, branco. Para o Vasco da Gama, o futebol começou da mesma forma que o clube: por conta da influência portuguesa.
Em 1913, uma excursão de um combinado português de futebol veio ao Rio de Janeiro para jogar alguns amistosos. Atuando em General Severiano, a partida entre os combinados carioca e português recebeu mais de 10 mil espectadores. Com o sucesso do duelo, a colônia da cidade, responsável pela fundação do Vasco da Gama, passou a desejar expandir-se para além do remo, que já estava consolidado na capital. A partir desse momento, o clube decide, em 1915, criar um departamento exclusivo para o futebol, iniciando a gloriosa trajetória da equipe.
Esse elitismo do futebol podia ser observado em todas as suas esferas, desde a torcida até as competições. O Campeonato Carioca, que existe desde 1906, era composto por clubes que tinham, basicamente, a mesma demografia e representatividade, de uma classe alta e branca. É o caso do America, Fluminense, Flamengo e Botafogo, potências da época. Já a torcida, como trata Claudio Nogueira, seguia a dinâmica dos clubes: “Muito elitizada, como se fosse uma peça de teatro. Homens de terno e gravata e mulheres com vestido longo e chapeuzinho, um ambiente altamente aristocrático”.
A fundação do futebol no Vasco veio na contramão de toda a estrutura desse esporte no Rio de Janeiro até então. Iniciou-se nas divisões mais inferiores e, pouco a pouco, o clube foi subindo até o mais alto escalão do futebol carioca. Em 1922, conquistou o seu primeiro título: a Série B da Primeira Divisão, que garantiu o acesso à Primeira Divisão da Liga Metropolitana de Desportos. Formado por um elenco composto por atletas negros e de classes sociais inferiores, que não eram aceitos nos grandes clubes até então, o cruzmaltino chamou a atenção da sociedade durante esse período, negativa e positivamente.
“Vindo da segunda divisão, vocês imaginam que o time seja considerado pequeno. Mas o Vasco conseguiu chegar assustando os adversários e tornando-se competitivo logo em seu primeiro ano”, conta Cláudio. Ainda em 1923, o time conseguiu romper os preconceitos de sua época, não tomando conhecimento dos seus rivais e sendo campeão, sem grandes dificuldades. Esse time, que marcou história dentro e fora do campo, ficou conhecido pela alcunha de Camisas Negras, devido à cor de seus uniformes, majoritariamente pretos com detalhes em branco, e pela composição etnográfica de seu elenco.
Entretanto, se até hoje os preconceitos fazem-se presentes no mundo do futebol e, principalmente, em nossa sociedade, na década de 1920 a situação era ainda pior. Durante o campeonato em que o Vasco sagrou-se campeão, a imprensa e a sociedade mostraram-se contrárias ao sucesso dos Camisas Negras, surgindo uma certa rejeição ao time e, principalmente, ao que ele representava para o elitismo no esporte.
“Aquela sociedade elitizada carioca rejeita o Vasco, porque ele desafiou aquela estrutura que existia, de futebol de elite, futebol das meninas e homens bem vestidos, e um esporte de cavalheiros, que falavam inglês. De repente, vem um time que sabe treinar, sem nada, com campinho alugado, então chocou muito a sociedade e os preconceitos da época”, relata Cláudio.
Com isso, os grandes clubes, na busca por manter a estrutura elitista do futebol carioca, criaram obstáculos para a entrada na liga. Isso aconteceu a partir da fundação da Associação Metropolitana dos Esportes Athleticos (AMEA), que passou a organizar e administrar o Campeonato Carioca após a cisão da Liga Metropolitana de Desportos Terrestres.
Esse movimento de ruptura partiu, principalmente, da disputa entre o amadorismo e o profissionalismo no esporte. Desta maneira, os clubes fundadores — América, Bangu, Botafogo, Flamengo e Fluminense — estipularam metas que deveriam ser cumpridas pelos clubes membros, as quais afetavam, diretamente, o Vasco da Gama.
Segundo Cláudio, esses objetivos, por mais que não estivessem expressos com essas palavras, restringiam o acesso ao esporte às elites: “Para você ingressar, teria que cumprir uma série de normas, como ter um estádio próprio e pagar uma taxa para se inscrever. Já em relação aos jogadores, eles não poderiam ser profissionais, tinham que ser amadores; se algum deles fosse militar teria que ser de alta patente, nunca poderia ser um soldado; não podiam ser analfabetos nem trabalhadores braçais ou trabalhar no comércio”.
Assim, para ingressar nesse “comitê de notáveis”, o Vasco passou a fazer diversas ações, a fim de solucionar os entraves, como a contratação de professores para a alfabetização de seus jogadores, mas as demais normas tornavam impossível o ingresso da equipe segundo a via legal. Ao mesmo tempo, o cruzmaltino, devido a suas raízes populares, crescia cada vez mais entre as camadas economicamente mais baixas da sociedade, atraindo uma importante massa de torcedores aos estádios, muito maior do que os jogos entre as elites.
“De repente, alguém que nunca tinha ido assistir a um jogo, ouviu falar que tinha um time que tinha jogador negro, pobre e que qualquer pessoa poderia participar, desde que soubesse jogar e fosse bom, então o Vasco começou a arrastar grandes massas aos estádios”, afirma Cláudio.
A AMEA, observando a importância que o Vasco já tinha para atrair esse público ao estádio, que gerava um retorno econômico expressivo para a liga, passou a retirar uma série de exigências para possibilitar o seu ingresso. No entanto, uma das medidas, e talvez a mais pesada, previa a exclusão imediata de 12 jogadores do time, que eram considerados de “condição social inferior”.
O presidente do Vasco à época, José Augusto Prestes, recusou inicialmente essas exigências, publicando o que ficou conhecido como a Resposta Histórica, em respeito às tradições do clube e aos jogadores, e permaneceu na Liga Metropolitana, que continha os clubes de menor expressão. Estava ali representado, em uma página, a posição do clube no combate à discriminação social e racial.
Com a visão fundamentada, o clube passou a determinar os seus próprios rumos. Dois anos após essa decisão, a AMEA, por conta dos impactos sociais e imposição esportiva que o Vasco trazia à competição, voltou atrás com as suas exigências e aceitou o ingresso do clube, sem ter que cumpri-las nem excluir os jogadores.
“No entanto, os questionamentos permaneceram ao redor do clube, em especial em relação à falta de um estádio próprio. O Vasco jogava sempre em campos alugados, como o do Botafogo e o do Fluminense. Para acabar com esse problema e colocar o Vasco numa posição de destaque, a diretoria da época se reuniu e criou uma campanha de arrecadação de fundos para comprar o terreno onde hoje está o estádio de São Januário, iniciando esse novo projeto do clube”, conta Cláudio Nogueira.
A construção de seu estádio foi um sucesso, ainda mais da forma que ocorreu. O clube carioca conseguiu a verba necessária em menos de um ano, sem auxílio do governo. O Vasco da Gama criou uma grande campanha de arrecadação e teve apoio de grande parte de seus torcedores e sócios. Essa ação representou a afirmação do Vasco da Gama no cenário nacional, apesar dos preconceitos e do racismo. De um clube pequeno e humilde do subúrbio, ele passou a integrar a elite esportiva, mantendo vivas as suas raízes e, naquele momento, com o maior estádio do Brasil e da América do Sul.
Interesses por trás da iniciativa vascaína
“É importante que a gente olhe para esses temas com mais cuidado, porque senão a gente vai tratar o Vasco como uma ilha de democracia racial em nosso país”. É assim que Luciano Jorge, professor de educação física da rede pública de Belo Horizonte e integrante do Observatório Racial do Futebol, enxerga uma parte dessa história de luta do Vasco da Gama contra o preconceito. É certo de que o clube foi essencial para a quebra dos paradigmas do início do Século XX, mas deve-se notar alguns pontos.
“O Vasco, de fato, ocupa um lugar importante, inclusive no imaginário do futebol brasileiro”, completa Luciano, “e é preciso valorizar isso para a gente não cair no esquecimento e negar esse lugar, que é inclusive o movimento que tem acontecido no Brasil nos últimos anos”. A importância desse processo do clube para o futebol no país e, principalmente, no Rio de Janeiro é notável, mas esse ideal de perfeição pode assombrar sua própria jornada no presente.
Além de toda a resistência e esforços do clube, em conjunto com sua torcida e jogadores, o Vasco ainda possuía interesses econômicos e esportivos. O próprio time tinha ligações fortes com portugueses, que, em sua maioria, eram comerciantes, e os jogadores muitas vezes eram funcionários de seus comércios. Além disso, não há como desassociar a questão futebolística desse pioneirismo racial do Vasco. Yuri Carvalho, vascaíno e estudante de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), aponta esse outro lado da história: “Se um clube precisava ganhar, e os principais jogadores eram negros e operários, é óbvio que esse lutaria pela inserção dessa classe nos campeonatos”.
Ademais, resumir a inserção do negro no futebol somente por parte do Vasco é ignorar todos os movimentos de luta e resistência negra que já vigoravam na época, com o intuito de reivindicar mais direitos a uma parcela da sociedade, que só por nascer já era cerceada e tratada de maneira diferente pela elite branca — e pelas mais diversas esferas da sociedade, não apenas no Rio de Janeiro, mas no Brasil todo.
As portas para os negros não foram abertas apenas pela formação democrática do Vasco da Gama, que tem sua participação incontestável, mas também é preciso que se considere todo o movimento e luta de outros. Demais clubes, como a Ponte Preta e o Bangu, também tiveram papéis essenciais na luta contra o racismo e a favor da inclusão dos negros no esporte.
Perpetuação do racismo dentro de campo
O esporte, sobretudo o futebol, tem entre suas diversas nuances o direito ao erro. A quantidade de partidas disputadas por cada time, que conta com atletas, treinadores e dirigentes, permite que um deslize cometido em um jogo possa ser esquecido no jogo seguinte. Mas o direito ao erro é algo muito mais complexo do que parece e tem a história como fundamento para isso. Os negros parecem não ter esse benefício em diversas camadas do esporte brasileiro, visto que há diversos casos em que jogadores ficaram marcados por supostos erros decisivos e carregaram o fardo dessa atribuição por toda a vida.Luciano relata essa visão: “Quando você tira o direito ao erro de uma pessoa negra, você tira aquilo que qualquer pessoa quer, que é o direito à própria humanidade. O que a gente quer quando a gente erra é a chance, e o futebol é esse lugar, em que quando você perde, você quer que o próximo jogo chegue para provar a todo mundo que não é bem assim.”
O maior exemplo brasileiro é o vivido por Moacir Barbosa Nascimento, o Maracanazo. Ser negro foi um fator preponderante para tornar o Barbosa um alvo fácil no fim trágico da Selecão Brasileira na Copa do Mundo, disputada em seu próprio país.
O Brasil era amplo favorito e passava uma confiança inestimável para conquistar o seu primeiro mundial. A torcida brasileira, eufórica e embalada pelo retrospecto positivo demonstrado pela equipe, confiava que a seleção tinha tudo para se sagrar vitoriosa.
Para o jogo decisivo contra o Uruguai, o empate bastava, embora não fosse satisfazer a massa de apaixonados que gostaria de presenciar mais um show brasileiro. Com isso, quando a conquista não se concretizou, alguém precisava ser responsabilizado, e um dos grandes escolhidos foi Barbosa, o goleiro, negro e vilão da história.
O acontecimento mudou por completo a vida do goleiro, e deixou impactos sobre sua carreira. “Eu lembro da primeira coisa que eu vi na publicação sobre o Centenário do Barbosa, o primeiro comentário era um cara dizendo assim: ‘Ah, esse foi o cara que tomou o gol 50 né’”, aponta o professor Luciano Jorge.
”Ninguém sabe que o Barbosa fez parte de uma de uma das melhores gerações do futebol sul-americano da década de 40, ele foi brilhante”, completa Luciano. Mesmo sendo um goleiro com uma carreira enorme e parte de uma das gerações mais vitoriosas do Vasco, Moacyr Barbosa seguiu menosprezado.
O time, que recebeu a alcunha de Expresso da Vitória, teve a participação do goleiro Barbosa, um dos maiores ídolos da história do Vasco e de extrema importância para a história do clube, mas que tem sua carreira reduzida a um jogo, a uma derrota, que foi muito dura para os brasileiros. Como ele mesmo dizia: “A pena máxima no Brasil para quem comete um homicídio é de 30 anos, já eu, paguei a minha pena até o final da vida”. Frase sintomática que reflete o fardo que o goleiro carregou até a morte e que teve influência na vida do atleta e de sua pessoa. Além de Barbosa, outro jogador bastante criticado pela derrota foi o lateral Bigode. Os dois tinham em comum uma característica: eram homens negros.
Em uma sociedade que teve a abolição da escravatura mais tardia da América do Sul e que não trabalhou de forma construtiva para a inserção desse povo na civilização, a presença do negro no futebol em seus primórdios foi muito restrita. Os poucos que conseguiam ingressar nesse ambiente eram vistos de maneira distinta dos outros, por estarem cobertos pelo prestígio do esporte, mesmo que ainda inferiorizados em uma visão restrita à elite. Em contraponto, alguns ídolos tinham bastante apelo nas camadas populares: é o caso de Leônidas da Silva, um dos grandes atletas da história do futebol brasileiro.
De qualquer modo, a evidência proporcionada pelo esporte alterava o tratamento que atletas negros recebiam pelo dito alto escalão social. Apesar de haver uma breve diferença, a desconfiança em atletas negros perdurava internamente e teve como grande capítulo e exemplo as cobranças após a derrota do Brasil na final da Copa do Mundo em 1950, em que os escolhidos para carregarem o fardo da derrota foram negros.
Luciano Jorge relembra Silvio de Almeida, professor, filósofo e advogado: “Para que se entenda melhor o Brasil, é importante entender de futebol”. Assim como é visto ao longo da história, dificilmente negros conseguem alcançar cargos considerados pela sociedade como de prestígio, e isso deve-se por diversos fatores, seja por aspectos econômicos ou sociais, todos banhados pelo preconceito.
O mesmo acontece no futebol. Apesar de quase todos os maiores talentos do Brasil serem negros, como Pelé, Rivaldo, Ronaldinho Gaúcho, Garrincha, Romário e tantos outros, a falta de treinadores negros é visível. Os exemplos no Campeonato Brasileiro são pontuais, além do Brasil nunca ter disputado uma Copa do Mundo com um treinador afrodescendente.
Silvio Almeida, em seu canal no Youtube, em uma conversa com Mano Brown, discorre acerca da figura do Pelé. O rapper reflete: “Alguns personagens bíblicos cometeram chacinas, e as pessoas se ajoelham, colocam as mãos para cima e os idolatram. Existe uma cobrança em cima do Pelé por ter sido realmente gigantesco, maior do que o país dele. E se ele fosse branco, como seria?” Silvio completa: “Seria um deus, né…”
Um dos grandes exemplos de técnicos negros que nunca recebeu uma chance na Seleção foi o Didi, que disputou três Copas do Mundo como jogador – tendo sido vencedor em duas e, inclusive, nomeado o melhor jogador da Copa do Mundo de 1958. Mas nunca dirigiu a Seleção, além de treinar poucos clubes no Brasil, em passagens curtas, sem grandes feitos. No entanto, teve sucesso em outros países, vide o grande destaque como treinador no Peru e na Argentina.
Outro grande nome, muitas vezes esquecido e ofuscado entre os grandes treinadores da história do futebol brasileiro é o de Gentil Cardoso. O técnico, que popularizou diversas expressões utilizadas até os dias atuais no futebol, não era bom somente com as palavras. Gentil comandou grandes times nas décadas de 50 e 60, sobretudo no futebol carioca e pernambucano. Quando chegou à seleção nacional, teve uma passagem breve, sem muita liberdade para comandar e tempo para desenvolver seu trabalho.
Além de treinadores, os Dida e Jefferson são raros nomes que conseguiram destaque na posição. Dificuldades expressas por Jefferson em entrevista para O GLOBO: “Eu representei muitos goleiros negros. Não adianta negar, o Brasil infelizmente tem seus preconceitos. Não digo diretamente, mas indiretamente tem. Pessoas negras são minoria em posições de destaque. Graças a Deus rompi essa barreira. Sempre tive ciência que, por ser negro, eu tinha que matar dois leões por dia, não só um, ao contrário de outros.”
Vasco, vascaínos e a sua luta
“Acho que minha relação com o clube começou como a maioria das pessoas, de uma forma bem familiar. Pensando na dimensão do clube de uma forma geral, acho que dá um grande orgulho, foi um presente que meu pai me deu sem saber muito, porque ele também nunca foi de conversar muito sobre a questão social do Vasco, esse tipo de coisa, era mais uma relação futebolística”, relata Yuri Carvalho, sobre o início de sua relação com o cruzmaltino.
Essa história não deve ser romantizada e vista apenas como algo belo, mas a memória de todo o legado que o clube deixa deve ser lembrada e trazida à tona em mais discussões para que o assunto seja abordado.
O Vasco tem a sua fiel torcida como base para essa história. Além disso, atletas como Romário, Barbosa e Pretinha fazem parte do passado do Cruzmaltino. A participação popular constitui um dos alicerces para que o clube esteja presente e engajado nas lutas sociais, de modo que a torcida é de extremo valor para que ele tenha sua memória preservada e passada aos demais.
Yuri indica a importância da passagem desse legado: “Eu não me lembro muito do meu pai ou do meu avô falarem dessa importância, mas tenho certeza que, por exemplo, eu e meus amigos vascaínos, se tivermos filhos, iremos apresentar o Vasco como uma instituição pautada nessas lutas.”
Como torcedor, Yuri entende a relevância do clube, mas também aponta como esse legado não pode ser esquecido no cotidiano: “Por um lado tem a importância do pioneirismo, de se colocar antes de outras instituições de futebol nessas lutas, nessas causas, mas também tem um contraponto que a instituição é feita de pessoas. Tanto que qual presidente dos últimos trinta anos do Vasco é preto, ou dirigentes, técnicos? A gente teve o Cristóvão [Borges], mas não consigo lembrar muito de outro recentemente.”
Além disso, ele ainda manifesta a partir de suas palavras a esperança em um clube que passa por um momento tão conturbado dentro e fora de campo: “É sempre muito complicado afirmar alguma coisa, mas eu acho que, pelo menos hoje em dia, o fato do vascaíno já ter noção da história do clube é uma coisa muito importante, pela questão do respeito ao que já foi feito.“
”O futebol é o responsável por unir pessoas de vários tipos de interpretações de vida, de posicionamentos, de orientação sexual, de raça no mesmo lugar, por uma mesma causa”, ressalta o estudante, reconstruindo uma visão do jornalista Bruno Formiga. “Então, de certa forma, ele transmite que as pessoas podem ser completamente diferentes, mas existem questões muito fortes, que geram paixão e unem todas elas. Eu acho que essa é a importância social do futebol”, ele completa.
Mudanças e o cenário atual
Levando em conta o cenário atual, é inegável que mudanças em relação ao preconceito racial no futebol ocorreram. No entanto, a postura racista nesse ambiente ainda está muito distante do fim, já que o processo de alteração dessa mentalidade é lento e não é possível separar o que acontece na sociedade do futebol. O esporte é sempre envolto por questões sociais, políticas, econômicas e diplomáticas, que ultrapassam as quatro linhas. O mundo ecoa nos campos.
Assim, os problemas presentes em uma sociedade racista estão sendo cada vez mais questionados ao longo dos anos para que se chegue o mais próximo possível de uma igualdade. Mesmo o esporte, que tem em seus princípios a união, aprendizado e inclusão, teve, desde suas origens, limitações às pessoas negras.
Atualmente, essas pessoas não têm seus direitos de praticar o futebol e disputar partidas cerceados como antes, mas ainda são comuns casos de racismo no esporte, não só no Brasil, como no mundo todo. Casos como os sofridos por Neymar, Aranha, Marega, Pierre Webo e tantos outros ainda são comuns, mesmo nos tempos atuais, evidenciando uma longa luta que parece estar distante do fim.
Há muito o que acontecer para que essa situação seja transformada. Um dos pontos mais importantes é o envolvimento dos clubes na luta, fazendo-se mais presentes nesse movimento contra a discriminação racial. Um cenário interessante para que essas ações tornem-se mais presentes no cotidiano dos clubes é a inserção do torcedor nos debate, participando no conselho, como sócios ou apenas tendo mais autonomia sobre o que acontece internamente, ao passo que essa ocupação seja democrática.
Luciano Jorge aponta que o movimento tem que ser direcionado aos clubes, jogadores, dirigentes e quem possa tomar decisões e posicionamentos que sejam efetivos, de alguma forma, para influenciar outros a pensarem mais igualitariamente. Ele ainda completa: “Eu não posso perder um encanto pelas coisas. Acho que tudo só vai partir desse lugar da pressão, como foi a que fez com que jogadores negros ocupassem o Vasco da Gama, uma maior abertura dos clubes às torcidas”.
Pelo senso comum brasileiro, o futebol é tratado apenas como um esporte que tem como única função entreter um público dentro de campo, mas as suas histórias e tudo que o envolve deixam claro que essa concepção é enganosa. Quando ele é analisado a partir de uma postura crítica, é possível notar todo o seu poder de influência, resistência e significação na sociedade.
E é dessa forma que o Vasco se encontra atualmente. Apesar de todos os seus problemas dentro e fora do campo, o clube mantém em seu DNA o início de sua jornada e história no no futebol: resistência e luta, independente de quais sejam estas. Assim como o esporte, nossa sociedade evolui e, como falado, novas questões a serem solucionadas vêm à tona, ano após ano.
Cláudio Nogueira analisa: “O Vasco poderia fazer mais pelas causas sociais, mas mesmo assim é o clube que mais se manifesta, desde o racismo até os direitos LGBTQIA +”. Esse relato é perceptível, seja através do resgate dos valores do clube na luta contra o racismo, pelas celebrações do dia das mulheres, e até pela mais recente ação de combate à LGBTfobia no Mês do Orgulho, estampando em seu manto as cores do arco-íris, símbolo dessa causa. A luta pelos direitos, por mais que possa ter segundas intenções, segue sendo presente no clube, e norteia as suas ações, apesar das represálias que pode vir a sofrer. “Afinal de contas, ser Vasco é, acima de tudo, resistir”.