Libertadores

Paulo Junior: O Fluminense de Diniz já seria inesquecível – melhor ganhando

Diniz sempre diz que não devemos lembrar só dos times que ganham, mas o Fluminense campeão da Libertadores ficou bom para quem se lembra

Na mesa onde sentam Castilho, Romerito, Telê, Assis, Rivellino e tantos outros, haverá de se puxar cadeiras para Marcelo e Cano, um espaço para o bate-pronto de John Kennedy onde mora a corrida de Assis e a barriga de Renato, um destaque para exibir a maior conquista, o sonhado título da Copa Libertadores, na galeria onde tantas taças foram empilhadas desde o tetracampeonato carioca em 1906-09. Mas terá de ser contada a saga de Fernando Diniz como protagonista da maior noite do Fluminense Football Club, uma camisa de 121 anos que finalmente levou o continente sob assinatura incontestável e escancarada de seu mentor.

Diniz foi muito ridicularizado. É o treinador teimoso pela saída de bola, que sempre começa bem e depois perde, que se pinta como revolucionário, que é legal só no time dos outros, que nunca ganhou nada relevante para merecer toda essa moral. Nenhum outro técnico tem suas ideias colocadas à prova a cada nova rodada de futebol, e a culpa do novo dono da América talvez seja exatamente tê-las em excesso, diante de uma certa mediocridade ou grosseria geral da classe. Não me lembro de um treinador ter a carreira tão povoada, desde o início, por um desconforto tão grande por parte da crítica e dos torcedores de futebol, ruído esse transformado numa retórica do resultado, como quem apoia no placar final todas as frustrações e teses diante do campo.

Fico feliz pela provocação maior de Diniz – o resultado não deveria ser determinante para falarmos de futebol! – ter seu sábado de cair na avenida. Se deu definitivamente numa vitória de 2 a 1 defendendo um símbolo que ainda não estava entre as plaquinhas da taça, final logo contra nosso antagonista mais clichê, sempre os argentinos, muitas vezes o Boca Juniors, o maior bicho-papão possível, e tudo isso jogando no maior lugar do mundo como técnico, em simultâneo, da seleção brasileira. É como se o Dinizismo, não exatamente um jeito de jogar, mas uma forma de enxergar o futebol, tivesse seu grande palco. Passou enorme. Contra a mesmice do discurso da derrota, melhor ganhando.

Passou porque ganhou, e ganhar importa, ainda que Diniz tenha voltado a falar após o título que vencer ou perder do Boca não mudaria a forma com que sua rotina e suas relações no Fluminense são traçadas, mas importa, claro que ganhar importa, e ele próprio insiste em lembrar que ainda que proponha um jogo contracultural ou atípico o faz porque acredita que assim estará mais perto de sair vencedor. A beleza dessa contradição numa prorrogação de decisão de Libertadores. Joga-se para ter o resultado, ao tempo que o resultado não define o porquê do jogo. Gol de Kennedy.

Ao menino de Xerém foi oferecido um exílio em Araraquara, e seu talento transpareceu com a camisa da Ferroviária no início do ano o suficiente para ser realocado no elenco. E a bola de vitória só poderia ser dele, conforme cantado pelo próprio treinador no momento da entrada em campo. O brilho de John Kennedy simboliza a montagem desse elenco a partir de seu herói mais que provável, o ataque de aproximação com mais uma tabela fruto de pura mobilidade, e a capacidade de Fernando Diniz em acolher quem precisa, desde que cuide bem da bola. Um lance-síntese desse Flu: tocar e passar, não ter medo de tentar de novo, dar vazão para qualidade se procurar em campo e abraçar, abraçar como imagem de futebol, tal qual treinador e gol do título nos deram na imagem fotografada para sempre após o apito final.

São tantas histórias que de tédio não sofrerão as memórias dessa conquista. A vitória de Fábio depois da saída traumática do Cruzeiro, o tricampeonato pessoal de Felipe Melo se mantendo titular aos 40, a evolução do zagueiro de seleção Nino, a afirmação desse ouro chamado André, a retomada de Ganso, o alto nível de Arias e Keno, a já citada volta por cima de JK, os gols nos tapas de primeira de Cano, e que leitura, sempre e de novo, para se achar mais esperto que o zagueiro na área e conferir o dele na finalização mais pronta e direta possível depois dos pontas se juntarem no canto direito. A melhor delas todas, o retorno de Marcelo, craque da geração e ídolo de um Real Madrid que pagou sua dívida pessoal com o clube formador em tempo de ser referência em uma reta final de carreira, feliz da vida no lugar que é a cara de seu jeito de jogar. Melhor é que isso tudo deu numa equipe legal de se assistir, e ser legal também interessa, não necessariamente mais que o placar final, mas bastante, às vezes o suficiente para se fazer inesquecível.

O trauma de 2008, aquela única final dessas, perdida nesse mesmo Maracanã, virou história passageira no caminho para esse 4 de novembro de 2023. Esse Fluminense é mais time que esse Boca Juniors, e o rival argentino, tão copeiro que via de regra se basta, jogou pouco, lembrando inclusive vários momentos de uma campanha de muita estrela nos pênaltis e apenas pontuais momentos de superioridade técnica no mata-mata. Cresceu no segundo tempo, é verdade, arrancou um empate de prorrogação, mas nem uma crônica de Nelson Rodrigues, e o que é falar de Fluminense sem pensar em Nelson, tiraria uma conquista xeneize da clássica mística do peso da camisa.

Não são poucos os times brilhantes e as taças muito comemoradas na história do Fluminense; o raro é juntá-los em casa, com a megalomania da glória eterna e dando gosto para quem vê, para além do bairro de Laranjeiras. Seu time é legal para caramba, Diniz. Você vai dizer que não devemos lembrar só dos times que ganham, e eu até vou concordar, mas pelo menos não hoje. Esse Fluminense, ganhando, ficou bom para quem se lembra.

Foto de Paulo Junior

Paulo JuniorColaborador

Paulo Junior é jornalista e documentarista, nascido em São Bernardo do Campo (SP) em 1988. Tem trabalhos publicados em diversas redações brasileiras – ESPN, BBC, Central3, CNN, Goal, UOL –, e colabora com a Trivela, em texto ou no podcast, desde 2015. Nas redes sociais: @paulo__junior__.
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