Argentina

O futebol fortaleceu Macri politicamente e segue na pauta do novo presidente da Argentina

Em um continente que respira o futebol como a América do Sul, não é inédito que o sucesso à frente de um clube ajude a impulsionar a carreira política de um dirigente. Alguns deles, rumando até mesmo para a presidência. Sebastián Piñera tinha o Colo Colo como um de seus negócios antes de assumir o posto mais alto no Chile, enquanto o paraguaio Horacio Cartas levou o Libertad a outro patamar antes de virar presidente. História que se repete mais uma vez no continente, agora na Argentina: Mauricio Macri venceu as eleições neste domingo, encerrando 12 anos de Kirchnerismo e 14 anos do Partido Justicialista no poder. Obviamente, o contexto que o levou à Casa Rosada é bastante diverso, sobretudo diante da insatisfação com o governo. Mas não dá para negar a influência que o Boca Juniors teve em sua ascensão.

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Macri transformou o Boca enquanto esteve em sua presidência, entre 1996 e 2007. O clube mais popular da Argentina superou as crises financeiras, voltou a conquistar grandes títulos e extrapolou suas fronteiras, se tornando um rolo compressor na Libertadores. As quatro taças continentais erguidas nos anos 2000 vieram sob a gestão de Macri. Além de trazer Carlos Bianchi, o presidente investiu consideravelmente na formação de jogadores e na contratação de jovens promessas, criando alguns dos maiores ídolos do clube. Os xeneizes superaram a dominância do River Plate no período, se fortaleceram internamente e internacionalizaram sua marca – em questões muito bem explicadas pelo amigo Caio Brandão, no Futebol Portenho.

Quando ainda estava na presidência do Boca Juniors, Macri se elegeu deputado, em 2005. Para dois anos depois ganhar também as eleições à prefeitura de Buenos Aires – o que lhe afastou do comando xeneize oficialmente. Entretanto, o político permaneceu como voz influente nos bastidores em La Bombonera. Tanto que conseguiu eleger seu homem de confiança à frente do clube, Daniel Angelici, em 2011. E, ainda que as glórias da época de Macri não tenham se repetido nas gestões posteriores, sua reputação já estava construída pelo país. O reconhecimento como dirigente ajudou a dar visibilidade a suas ideias como político, até por apresentar uma terceira via em meio às duas forças dominantes do governo argentino, os peronistas e os radicais – algo que ele mesmo admitiu em 2010, durante conversa com a embaixadora americana Vilma Martínez, revelada pelo WikiLeaks.

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Reeleito prefeito de Buenos Aires em 2011, Macri lançou sua candidatura à presidência neste ano. Em eleições abertas, diante da falta de um nome forte a substituir Cristina Kirchner dentro do próprio partido, o ex-dirigente se tornou uma alternativa viável a encerrar os 32 anos de revezamento no poder entre peronistas e radicais. Foi o segundo mais votado no primeiro turno, mas conseguiu levar as eleições ao segundo turno, algo já inédito no país. E, neste domingo, teve a vitória confirmada sobre o governista Daniel Scioli. Pela primeira vez desde o retorno à democracia, o governo argentino contará com um presidente de centro-direita, prometendo conduzir o país a uma agenda liberal.

macri

Embora permaneça afastado oficialmente do Boca Juniors, no entanto, Macri foi acusado por opositores de se aproveitar do bom momento do clube no contexto político. Para eles, não seria mera coincidência que os xeneizes tenham buscado de volta Tevez e contratado estrelas justo no ano das eleições, assim como os erros da arbitragem na final da Copa Argentina levantaram suspeitas sobre outras motivações em meio ao pleito eleitoral. Nada, porém, que se comprove. E que não evita a mesma crítica aos governistas, que buscariam sustentar parte de seu apelo popular através do Fútbol para Todos. Segundo a oposição, os kirchneristas chegaram a fazer campanha contra Macri no intervalo do jogo entre Boca Juniors e Tigre, que definiu o título nacional no início de novembro. Extremismos histéricos que costumam permear qualquer debate político pré-eleições, sem qualquer embasamento.

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Neste momento, no entanto, nada mais muda o resultado das urnas. E, neste campo, a discussão se concentra sobre a maneira como a vitória de Macri impactaria sobre o Fútbol para Todos e o futebol argentino de uma maneira geral. Em seu passado como dirigente, Macri chegou a defender a transformação dos clubes em sociedades anônimas, enquanto se posicionou de maneira contrária à intervenção estatal na transmissão do esporte. Mas é difícil vislumbrar uma mudança radical dentro do cenário consolidado.

Por mais que defenda o retorno dos direitos de transmissão a grupos privados, o novo presidente não deve diminuir a ampla democratização dos jogos criada com o Fútbol para Todos. De certa maneira, seria em colocar em risco o seu próprio apelo popular, restringindo o acesso às transmissões a poucos – como acontecia anteriormente, com os direitos monopolizados pelo Grupo Clarín. “O Fútbol para Todos segue, mas sem política. Vou buscar que os custos voltem a ser o que eram”, declarou Macri, durante as últimas semanas de campanha. Sua intenção seria renegociar o contrato com o governo e garantir a publicidade privada, sem que isso afete o acesso amplo e gratuito aos jogos, com as transmissões na televisão ou na internet.

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Dentro deste contexto de mudanças, outro ponto-chave está na relação com a AFA, que também elegerá novo presidente em dezembro. Macri já manifestou o seu apoio à candidatura de Marcelo Tinelli, vice-presidente do San Lorenzo e nome influente na televisão argentina. E uma das plataformas do empresário e apresentador se concentra justamente sobre o Fútbol para Todos, com uma noção de abertura à iniciativa privada sem perder de vista a abrangência atual das transmissões. Ideias que se aproximam de Macri, por mais que Angelici (atual presidente xeneize) se oponha à candidatura de Tinelli.

Além disso, é ver como se desdobrará a própria reorganização do Campeonato Argentino, dentro de um modelo de 30 clubes bastante criticado, mas que teve vantagens políticas em sua constituição. Este debate, porém, deve se concernir muito mais à AFA do que ao governo. Por mais que seja um político surgido a partir do futebol, Macri não deverá se debruçar sobre todos os temas relativos ao esporte. Afinal, se foi eleito, o ex-presidente do Boca surge mais como uma resposta à insatisfação com os rumos do governo kirchnerista e da economia local. Sobretudo, para isso que deverá trabalhar, por mais que o futebol siga nas pautas do campeoníssimo ex-dirigente.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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