Argentina

Clube do presidente da AFA, o Barracas Central volta à elite argentina após 87 anos, cheio de acusações de favorecimento

Com um filho de Chiqui Tapia na presidência e outro como capitão, o Barracas Central venceu os playoffs de acesso na segundona

O Barracas Central está de volta à elite do Campeonato Argentino após 87 anos. O que poderia ser visto com simpatia por muitos torcedores adversários, no entanto, é tratado com repulsa pela politicagem nos bastidores da AFA. Os barraqueños são intimamente ligados a Chiqui Tapia, presidente da federação, que batiza o estádio do clube e tem dois filhos envolvidos no dia a dia da equipe – um como presidente, outro como capitão. A promoção dos alvirrubros foi vista de forma suspeita por muita gente, especialmente por decisões contestáveis da arbitragem favorecendo o time. A comemoração do acesso aconteceu nesta terça, com o triunfo nos pênaltis sobre o Quilmes, na decisão dos playoffs da segundona.

Fundado em 1904, o Barracas Central faz parte da AFA desde os seus primeiros anos e se integrou na segunda divisão nacional, até comemorar o primeiro acesso em 1919. Foram 14 anos na elite do Campeonato Argentino, até 1934. Após a instituição do profissionalismo no país, os barraqueños continuaram atuando no campeonato amador que tentou se estabelecer como primeira divisão. Porém, com a fusão das competições amadora e profissional, os alvirrubros acabaram relegados aos níveis inferiores, por onde vagaram durante quase nove décadas.

Até 1950, o Barracas Central ainda permaneceu parte do tempo na segunda divisão. O grosso de sua história a partir de então, todavia, se passou entre a terceira e a quarta divisão, inclusive com uma breve estadia na quinta durante a virada dos anos 1980 para os 1990. Nesse ambiente modesto é que Chiqui Tapia iniciou seu envolvimento com o clube. Morador de Barracas, o ex-atacante atuou nas categorias de base dos alvirrubros e teve uma curta passagem pelo time principal. Entretanto, encerrou sua carreira de maneira precoce para trabalhar no Sindicato dos Caminhoneiros, instituição de grande influência no país cujo secretário-geral era seu sogro, Hugo Moyano – que, anos depois, também viraria presidente do Independiente.

Diante do poder político, Chiqui Tapia voltou a trabalhar no Barracas Central e, em 2001, virou presidente do clube. Chegou até mesmo a atuar por um breve período como treinador e depois conquistou o acesso para a terceirona em 2010. Paralelamente, também ganhou poder nas estruturas da AFA, ao virar membro do Comitê Executivo, Secretário de Torneios e Vice-Presidente. Já em 2017, depois da morte de Julio Grondona e do escândalo do Fifagate, Tapia ocupou o vácuo de poder ao ser eleito presidente da federação. Por conta disso, licenciou-se do comando do Barracas Central, mas sem perder a ligação fortíssima com o clube. Filho mais velho, Matías era zagueiro antes de assumir a presidência em 2019, com apenas 24 anos. Já o meio-campista Iván Tapia, três anos mais jovem, é o capitão e também o cobrador de pênaltis do elenco atual.

O fortalecimento nos bastidores logo deu um impulso ao Barracas Central. Em 2019, os alvirrubros conquistaram o acesso na terceira divisão e retornaram à segundona depois de 69 anos, com a participação de Matías e Iván dentro de campo. Seria uma campanha marcada pela mudança de regulamento no meio da competição, com o aumento no número de acessos, e arbitragens polêmicas. Já na segundona, os barraqueños ainda fizeram uma campanha na parte inferior da tabela em 2019/20, mas sem descensos por causa da pandemia. Na edição seguinte, chegaram aos playoffs de acesso em 2020, com a derrota para o Estudiantes de Buenos Aires logo na primeira fase – coincidentemente, um time presidido por Jorge Barrios, dirigente próximo de Chiqui Tapia. Por fim, na atual campanha, a equipe se firmou como um dos principais candidatos ao acesso.

O Barracas Central terminou na liderança da Zona B da segunda divisão do Campeonato Argentino. A equipe tomou a liderança na reta final da campanha, ainda que tenha realizado uma disputa apertada com Ferro Carril Oeste e Independiente Rivadavia. A classificação só veio na rodada final, com uma vitória por 3 a 1 sobre o Villa Dálmine. Os adversários foram acusados de receber dinheiro para facilitar a derrota, num caso investigado pela polícia e que resultou na dispensa de 16 jogadores. Apesar disso, o resultado em campo foi mantido e os barraqueños ganharam o direito de disputar o acesso contra o Tigre, vencedor da Zona A. As duas equipes se enfrentaram em jogo único no Estádio Florencio Sola, casa do Banfield. Mas ainda não foi desta vez que o time do presidente conseguiu prevalecer, com o triunfo do Tigre por 1 a 0 e a promoção consumada.

Assim, o Barracas Central ganhou uma nova chance nos playoffs de acesso. A equipe entraria diretamente nas semifinais. Os barraqueños iniciaram sua jornada com a classificação em cima do Almirante Brown, depois de uma apertada vitória por 3 a 2. Não sem polêmica: depois de tomar os três gols no primeiro tempo, o Brown anotou dois gols na segunda etapa, mas viu um jogador expulso esfriar sua reação. Já na outra semifinal, o Quilmes despachou o favorito Ferro Carril Oeste com um pênalti escandaloso. Na decisão, Barracas Central e Quilmes fariam o jogo do acesso no Estádio El Cilindro, em Avellaneda. O duelo deveria acontecer no domingo, mas acabou subitamente remarcado para terça-feira. Segundo a justificativa oficial, foi para acertar os trâmites do campo neutro, mas nos bastidores se apontava mais um benefício aos barraqueños: principal jogador do time, Carlos Fernando Valenzuela voltava de lesão e dois dias fariam diferença em sua presença em campo.

A decisão guardaria uma partida bastante intensa desde o primeiro tempo, com os dois times buscando o gol e ambos acertando a trave. Contudo, à medida que o segundo tempo se desenrolou, o cansaço pesou e os oponentes preferiram se resguardar. O empate por 0 a 0 prevaleceu, até que a definição acontecesse nos pênaltis. Melhor para o Barracas Central, que ganhou por 5 a 4, sem necessitar de controvérsias desta vez. A série de cobranças foi iniciada por Iván Tapia. Na quinta batida do Quilmes, Rafael Barrios mandou para fora. Coube, então, a Valenzuela desatar a festa dos alvirrubros.

Ao longo da segundona, torcedores de outros clubes lançaram nas redes sociais uma campanha chamada “Penal para Barracas”, em que reclamavam de muitas marcações estranhas que favoreceram a equipe do presidente da AFA. Também aconteceram diferentes lances de penais contra os alvirrubros ignorados. Às vésperas do início da fase decisiva do acesso, Chiqui Tapia marcou um churrasco para “deixar de lado as diferenças” entre os dirigentes que o acusavam na imprensa. Ficou a impressão de que o evento servia mais para intimidar os concorrentes e alguns cartolas sequer compareceram.

Nesta reta final de campanha, o Barracas Central também precisou superar um drama, com a morte do juvenil Lucas González, assassinado numa ação policial ainda sob investigação. O caso gerou muita comoção ao redor dos barraqueños. Já dentro de campo, os alvirrubros tiveram seus predicados, com jogadores que atuaram na primeira divisão e inclusive no exterior. Nomes como Lucas Colitto, Fernando Valenzuela e Juan Manuel Vázquez foram essenciais. Já no banco de reservas, méritos de Rodolfo de Paoli, famoso narrador local. Com alguns trabalhos anteriores como treinador, De Paoli resolveu assumir o Barracas em janeiro e registrou seu principal feito na área técnica. Não sem antes correr riscos de ser demitido, ao barrar Iván Tapia num jogo.

O Barracas Central vai ser o time que todos os torcedores desejarão vencer no Campeonato Argentino. Além disso, decisões favoráveis dos árbitros tendem a ser mais reclamadas contra os alvirrubros – vale lembrar que o VAR ainda não está em ação no Campeonato Argentino. Podem até existir méritos na campanha de acesso, a despeito das acusações de favorecimento. Mas, diante de todo o contexto, é natural que a aparição dos barraqueños na elite depois de 87 anos cause mais ojeriza do que necessariamente um reconhecimento pelo trabalho. Chiqui Tapia, afinal, segue no comando da AFA.

 

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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