A história de Toresani, um sinal de alerta e uma oferta de ajuda
Júlio César Toresani incorporou o espírito que por muito tempo representou (e estereotipou) o futebol argentino. Era um meio-campista viril e de temperamento forte, mas também com sua dose de talento. O apelido resume muito de sua personalidade: Huevo, relacionado à maneira como tinha “ovos” para jogar. Vestiu as camisas de River Plate e Boca Juniors, assim como de Unión Santa Fe e Colón. Construiu uma longa carreira entre 1986 e 2004, antes de se tornar treinador. E nesta nova jornada, enfrentou situações difíceis, superando até mesmo um câncer. O falecimento do veterano, aos 51 anos, apresenta sua face mais sensível e vulnerável. A casca grossa de Toresani, a quem via de longe, talvez não expusesse suas dificuldades em lidar com a depressão. Nesta segunda, vítima da doença, infelizmente ele interrompeu sua própria vida. E o triste episódio ressalta a maneira como devemos tratar com seriedade um problema de saúde pública. Aos que encaram a depressão ou outros transtornos relacionados à saúde mental, admitindo a necessidade de apoio. A quem está ao redor, oferecendo compreensão e auxílio.
Toresani despontou por sua vontade em campo, bem como por seus gols importantes – como relata com mais detalhes o amigo Caio Brandão, em texto produzido para o Futebol Portenho e que serve como leitura complementar. O meio-campista tinha um gosto especial em balançar as redes contra os chamados “grandes”. Assim, depois de ser revelado pelo Unión de Santa Fe e de passar brevemente pelo Instituto de Córdoba, terminou contratado pelo River Plate. Fez parte de uma equipe que voltava a acumular títulos e novamente o volante apresentou sua aptidão aos tentos notáveis. Além de conquistar três títulos nacionais com os Millonarios, anotou o gol que valeu a conquista no Apertura de 1993. Ficaria em Núñez até 1995, saindo pouco depois que Ramón Díaz iniciou sua história à beira do campo com La Banda Roja.
Ao seguir para o Colón, rival do Unión, Toresani passou a ser lembrado pela briga com Maradona justo na reestreia do craque pelo Boca Juniors, ao final de sua suspensão por doping. Depois, vestiria justamente a camisa xeneize. Apesar da resistência inicial da torcida, conquistou o seu espaço e dividiu os vestiários com Diego, se aproximando do antigo desafeto. Ironicamente, Huevo anotou um gol memorável justo no clássico em que El Diez anunciou sua despedida do futebol. A cobertura em Germán Burgos valeu o empate à equipe, antes que Martín Palermo garantisse a virada no Monumental. Foi o ápice de uma passagem não tão vitoriosa e relativamente curta, mas marcante ao volante.
De La Boca, Toresani rumou a Avellaneda, vestindo a camisa do Independiente. Seria o início de seu declínio no futebol, rodando ainda por Audax Italiano e Patronato de Paraná, além de retornar outras duas vezes ao Colón. A carreira como técnico, iniciada em 2005, esteve distante de atingir a mesma relevância. Dirigiu equipes sem tanta expressividade no país, com destaque maior ao próprio Colón e ao San Martín de San Juan. Também teria suas oportunidades no exterior, trabalhando em The Strongest, LDU de Loja, Real Potosí e Orense. Seu último contrato foi com o Rampla Juniors, orientando a equipe uruguaia até fevereiro. Huevo se desentendeu com o presidente, o que abreviou sua passagem.
Um sinal de alerta
Em 2012, Toresani já havia superado um momento difícil. Depois de jogar futebol com os amigos, sentiu um nódulo e descobriu um câncer nos gânglios linfáticos. Realizou uma cirurgia para remoção do tumor e começou o tratamento, passando por sessões de quimioterapia, além de consumir um coquetel diário de remédios e tomar vacinas. Em entrevista ao Olé, admitiu a maneira como a doença o abalou e ao que se agarrou para superá-la. “Num momento você pensa: ‘Por que eu?'. Mas neste instante também contesta: ‘Quem sou eu para que não me toque?'. São coisas que Deus põe em seu caminho”, declarou, em 2013. “Foi chocante quando descobri, não sabia o que fazer. Muitas coisas vêm à cabeça. Sua vida, sua família, seus pais e todos os projetos. É uma incerteza total. No começo estava mal, me trancava no quarto para chorar ou ficava no banho por um bom tempo para que meus filhos não me vissem chorando. Chegava a pensar que amanhã não poderia mais estar aqui”.
Toresani agradecia principalmente ao apoio oferecido pela esposa, Ana María: “Tenho que fazer um monumento à minha senhora, pela maneira como me reergueu e me apoiou sempre. Ela contou aos meus filhos, disse que eu tinha um tumor e existia a possibilidade de me curar. Choramos todos, mas depois me encarreguei de mostrar força, porque a família sofre e é terrível. Meu filho mais novo, Conrado, de seis anos, não queria que eu o levasse à escola porque tinha vergonha. Seus colegas me viam e perguntavam o que se passava, ele ficava mal. Assim aconteceu por vários dias, até que o acompanhei e expliquei. Aí você se dá conta do sofrimento de todos”. Logo depois daquela entrevista, Huevo sofreu um acidente de automóvel. Resgatado por seu filho mais velho, precisou passar por uma cirurgia em um dos braços.
Após se recuperar do câncer, entretanto, Toresani se separou. O divórcio resultou em um processo litigioso em que perdeu a guarda de seus dois filhos mais novos. Ao mesmo tempo, lidava com as dificuldades financeiras e com a instabilidade na carreira como treinador. Tinha muitas expectativas ao acertar com o Rampla Juniors, que acabaram não se cumprindo com sua saída precoce. Depois de sua demissão, passou a morar no prédio da Liga Santafesina de Fútbol. Amigo de Axel Menor, presidente da LSF, ganhou abrigo e apoio. Porém, a depressão se agravou. O veterano indicava sua desilusão com a vida e com o futuro. Distante da família, isolou-se em seu quarto, onde foram encontradas cartas e pílulas. Diante dos sinais sérios, ex-companheiros tentavam encontrar uma meio para que fosse enviado a um centro de reabilitação especializado, a solução mais indicada para o caso.
O zelador do prédio da LSF interveio na primeira vez em que Toresani tentou tirar sua própria vida. O empregado mandou uma mensagem a Ana María, que foi ver o ex-marido, mas depois Huevo bloquearia o número de telefone da antiga parceira. Há duas semanas, o veterano foi encontrado desacordado em seu quarto e a rápida intervenção dos funcionários da liga permitiu que sua vida fosse salva, realizando uma lavagem estomacal no hospital. Desde então, recebera a visita de amigos, que tentavam não deixá-lo sozinho. Ele dizia que seu ato “foi uma loucura” e o minimizava. A LSF procurou um psiquiatra e Toresani trocou seu psicólogo. Através do Whatsapp, entretanto, manifestou sua dor durante o final de semana. Na madrugada desta segunda, voltou a repetir a ação extrema, sem que fosse socorrido a tempo.
“Toda semana há no prédio um movimento grande, jogos, crianças, professores, árbitros. Queríamos apoiá-lo. Ele tinha um desengano muito grande. Não possuía muitas pretensões, só queria estar em atividade. É uma falha que temos no futebol, há ex-jogadores ou técnicos que não sabem como seguir em frente”, declarou Menor, em entrevista ao La Nación nesta semana. “Queríamos encontrar um cargo para que ele não se sentisse sozinho como um hóspede, mas fazendo algum trabalho. Queríamos saber como ajudá-lo, era muito difícil encarar. Dói muito. Você sempre acredita que pode fazer algo a mais pelo próximo”.
O falecimento de Toresani provocou manifestações no futebol argentino. Diego Maradona esteve entre aqueles a falar sobre o ex-colega: “Pensar que quis brigar com você e hoje choro. Depois daquela famosa discussão, ele veio jogar no Boca e fomos grandes companheiros. Falei muitas vezes com ele por telefone. Eu pensei em trazê-lo para perto. Lamentavelmente, cheguei tarde. Não acreditei que fosse tão grave. […] Era uma pessoa muito trabalhadora. Lamento na alma. Meus pêsames a toda a sua família. Tomara que os filhos tenham o mesmo coração que seu pai”, apontou.
Uma oferta de ajuda
A história de Toresani liga um sinal de alerta e nos permite estender a mão. Caso você sofra de depressão ou possui algum entrave ligado à saúde mental, procure ajuda. Também o faça se você se sentir depreciado, com a autoestima baixa, desesperançoso com a vida e/ou se isolar das relações sociais. Não hesite em buscar auxílio ou o atendimento com um profissional – por exemplo, no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de sua cidade ou região, ligado ao SUS, ou mesmo na Unidade Básica de Saúde mais próxima. Você também pode procurar o CVV, o Centro de Valorização da Vida. O canal realiza apoio emocional e prevenção ao suicídio. Através do número 188, atende gratuitamente pessoas que desejam conversar, sob total sigilo. O contato também pode ser feito pelo site oficial, por e-mail ou mesmo por Skype. Quando você pede ajuda, você: “é respeitado e levado a sério; tem o seu sofrimento levado em consideração; fala em privacidade com as pessoas sobre você mesmo e sua situação; é escutado; é encorajado a se recuperar”.
E se você conhece alguém em uma situação de risco, não deixe de procurar essa pessoa e de oferecer ajuda. O Ministério da Saúde também possui uma página em que orienta como identificar, agir e prevenir o suicídio. Reconheça os sinais, conforme a indicação da Superinteressante e do Ministério da Saúde: “frases ou publicações nas redes sociais que falem de solidão, culpa, apatia, autodepreciação, desejo de vingança ou hostilidade fora do comum; isolamento, não atendendo a telefonemas, interagindo menos nas redes sociais, ficando em casa ou fechadas em seus quartos, reduzindo ou cancelando todas as atividades sociais, principalmente aquelas que costumavam e gostavam de fazer; preocupação com sua própria morte ou falta de esperança, com sentimento de culpa, falta de autoestima e visão negativa de sua vida e futuro; diminuição ou ausência de autocuidado; aumentar o uso de álcool ou drogas, mudanças drásticas de peso, dirigir perigosamente; perguntas sobre métodos letais, como facas, armas ou pílulas; enaltecer e glamorizar a morte; desfazer-se de objetos pessoais e dar adeus”. Vale ressaltar que, embora não seja a maioria das pessoas doentes que cogita ceifar a própria vida, os transtornos mentais são um fator de risco ao suicídio. Em compensação, há sempre uma saída. O avanço da medicina ligada à saúde mental é significativo e a atenção dada pelo sistema público de saúde ao tema cresceu nos últimos anos.
Diante da possibilidade de ajuda, o Ministério da Saúde orienta “a encontrar um momento apropriado e um lugar calmo para falar sobre suicídio com essa pessoa. Deixe-a saber que você está lá para ouvir, ouça-a com a mente aberta e ofereça seu apoio. Incentive a pessoa a procurar ajuda de profissionais de serviços de saúde, de saúde mental, de emergência ou apoio em algum serviço público. Ofereça-se para acompanhá-la a um atendimento. Se você acha que essa pessoa está em perigo imediato, não a deixe sozinha. Procure ajuda de profissionais de serviços de saúde, de emergência e entre em contato com alguém de confiança, indicado pela própria pessoa. Fique em contato para acompanhar como a pessoa está passando e o que está fazendo”.
Segundo dados da OMS, , “mais de 800 mil pessoas morrem por suicídio a cada ano em todo o mundo, o que equivale a uma morte a cada 40 segundos, sendo que a cada três segundos uma pessoa atenta contra a própria vida. No Brasil, foram 11.821 suicídios oficialmente registrados em 2012, o que representa, em média, 32 mortes por dia. Estima-se que o número de suicídios seja maior do que o registrado, devido ao estigma. Milhões de pessoas são afetadas pelo luto ao suicídio a cada ano. Estudos indicam que cada caso de suicídio tem sério impacto na vida de pelo menos outras seis pessoas de forma direta. Sentimentos ambivalentes são comuns em relação ao ente querido que faleceu de suicídio, como luto, raiva, culpa e outros. É importante aceitá-los como naturais, conversar com familiares e amigos, além de buscar atendimento médico e/ou psicológico, se necessário”. Não deixe de se abrir, se você enfrenta o luto por suicídio.
Por fim, sabemos também que a Trivela, através de seus textos, auxilia leitores em suas lutas diárias contra a depressão e outras doenças ou situações delicadas. Já recebemos relatos desse auxílio em nossa caixa de comentários, que dão um sentido ao trabalho que realizamos diariamente. Se você sofre de depressão ou de qualquer outro problema e quer contar com nosso ombro amigo, pode nos procurar. Estamos disponíveis através de nossas redes sociais ou do e-mail [email protected]. Pedimos gentilmente que este contato seja feito de maneira privada, para um apoio adequado. Se você quiser uma conversa específica, também pode procurar por “Leandro Stein” nas redes sociais ou enviar um e-mail para [email protected]. Estamos aqui para te informar e trazer histórias bacanas sobre futebol, mas também para tentar fazer o seu dia melhor e te ajudar da melhor maneira possível. Sinta-se abraçado.
* Este texto foi escrito seguindo orientações da Associação Brasileira de Psiquiatria e do Ministério da Saúde à imprensa, apoiado também em reportagem da BBC. Você, colega jornalista, pode se informar sobre a maneira de noticiar um suicídio através dos links.