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A história de Florencio Amarilla, o herói paraguaio na Copa de 1958 que fez parte de elenco ganhador do Oscar

Conexões entre esporte e cinema são bem antigas. Ao longo da história, algumas personalidades transitaram das competições às telonas, com trajetórias de sucesso em ambas as artes. O caso mais famoso é o de Johnny Weissmuller, dono de cinco medalhas de ouro na natação entre as Olimpíadas de 1924 e 1928, que depois da aposentadoria das piscinas virou o Tarzan em 12 filmes lançados nas décadas de 1930 e 1940. O futebol também tem uma relação curiosa neste sentido, mas menos conhecida. Florencio Amarilla é o nome do homem que conseguiu disputar uma Copa do Mundo e estar presente num elenco que ganhou o Oscar. O atacante paraguaio, herói na classificação de seu país ao Mundial de 1958, depois virou ator em papéis secundários de vários longas hollywoodianos. Entre eles, participou de Patton, filme ganhador de sete estatuetas em 1970 – incluindo a de melhor filme.

Florencio Amarilla nasceu em Coronel Bogado, uma pequena cidade do interior do Paraguai que fica próxima da fronteira com a Argentina. Órfão de mãe, o garoto chegou a passar uma parte da infância no país vizinho, antes de retornar ao território paraguaio. Foi por lá que iniciou sua carreira como jogador de futebol, nos anos 1950, com a camisa do Nacional de Assunção. Virou uma das grandes revelações dos tricolores, por mais que o clube tradicional não vivesse mais a bonança de outras décadas.

O bom momento de Amarilla no Nacional rendeu suas primeiras convocações à seleção do Paraguai em 1956, quando tinha 21 anos. O atacante participou de alguns amistosos, antes de viver seu primeiro grande desafio: as Eliminatórias para a Copa do Mundo de 1958. E o jovem seria um dos heróis da Albirroja. Os guaranis disputavam uma vaga no Mundial da Suécia com o Uruguai e a Colômbia. A Celeste perdeu muitos dos destaques da Copa de 1950 para o futebol italiano, mas contava com figuras históricas como William Martínez, Néstor Gonçalves e Oscar Míguez. Os paraguaios eram campeões da Copa América quatro anos antes, mas sem a representatividade dos uruguaios em Mundiais. Pois conseguiram surpreender.

Depois de duas vitórias sobre a Colômbia, a classificação do Paraguai foi garantida na partida de ida contra o Uruguai, em Assunção. A Albirroja enfiou 5 a 0 sobre a Celeste. E um nome especial acabou com aquele jogo: Florencio Amarilla. O atacante anotou os três primeiros gols do time, antes que Juan Bautista Agüero e Ángel Jara Saguier fechassem a contagem. Era o ápice do jovem de 22 anos, reconhecido como um ponta muito rápido e inteligente, dono de um chute bastante potente de canhota. Depois da traulitada, não foi a derrota para a Celeste por 2 a 0 em Montevidéu que tirou os guaranis do rumo da Copa. A equipe estaria na Suécia, para seu terceiro Mundial, o primeiro com a classificação conquistada em campo – algo que só voltaria a se repetir em 1986.

O Paraguai não passou da fase de grupos, mas Florencio Amarilla deixou boa impressão. O atacante estreou com dois gols, numa derrota de virada por 7 a 3 para a poderosa França, que contou com uma tripleta de Just Fontaine. Depois, a Albirroja bateu a Escócia por 3 a 2. Já a eliminação se deu com o empate por 3 a 3 diante da Iugoslávia, num compromisso em que só a vitória interessava aos paraguaios. Amarilla passou em branco nos embates seguintes, mas esteve em campo nos 270 minutos de sua seleção na Copa do Mundo. Assim como outros jogadores daquele elenco, o atacante permaneceria na Europa.

Naquele momento, o futebol espanhol já tinha um grande astro paraguaio: o atacante Eulogio Martínez, que fez muito sucesso no Barcelona bicampeão espanhol e depois até defendeu a seleção local, presente na Fúria que disputou a Copa de 1962. Enquanto isso, nada menos que sete jogadores do Paraguai presentes na Copa do Mundo de 1958 se transferiram a La Liga. Cayetano Ré, que assinou primeiro com o Elche, mas depois fez sucesso com Barcelona e Espanyol, é o mais aclamado. O zagueiro Ignacio Achucarro e o capitão Juan Bautista Agüero tiveram longa trajetória no Sevilla, por onde também passou Óscar Aguillera. José Raul Aveiro assinou com o Valencia, enquanto José Parodi foi para o Las Palmas. Já Amarilla desembarcou no Oviedo, ao lado de Jorge Lino Romero. Como era órfão de mãe, o atacante ganhou documentos falsos para dizer que era filho de uma catalã, em tramoia arranjada pelo próprio clube, e assim foi registrado nas competições.

A passagem de Florencio Amarilla pelo Oviedo não chama muita atenção. O atacante disputou três temporadas com o clube na primeira divisão do Campeonato Espanhol. Somou 33 partidas no total, com quatro gols marcados. Depois, em 1961/62, teve uma curtíssima passagem pelo Elche. Foram só duas partidas, atrapalhado pelas lesões, mas com um gol marcado. Depois disso, o paraguaio passou a rodar por times da segunda divisão espanhola. Esteve no Constancia e no Hospitalet, antes de peregrinar em divisões ainda menores e fixar residência na Andaluzia. Uma das antigas encarnações do Almería seria seu último time, com a aposentadoria em 1968, aos 33 anos.

Florencio Amarilla estava no lugar certo e na hora certa para emendar outra carreira de imediato. Naquela época, vários filmes de faroeste eram rodados na região de Almería. A locação no sul da Espanha recebia muitos dos “Spaghetti Western”, os filmes italianos sobre o Velho Oeste, e logo passou a atrair produções americanas por conta de seu baixo custo. Foi quando em certo dia, num bar de hotel tomando sua cerveja, Amarilla foi abordado por um produtor. Era Antonio Tarruella, que perguntou se o paraguaio não queria participar das filmagens de seu longa. Via em Amarilla um potencial ator por seus traços latinos, estereotipado para fazer papel de indígena.

No fim das contas, Florencio Amarilla agradou não apenas por sua aparência. O ex-jogador também tinha tino para atuar, assim como apresentava uma ótima capacidade física e também destreza para cenas com cavalos. Aquele seria apenas o primeiro de dezenas de filmes com sua participação. Amarilla estreou nas telonas em “100 rifles”, de 1969. A película tinha como astros Burt Reynolds e Raquel Welch. Coincidentemente, o papel de xerife era feito por uma lenda do esporte: ninguém menos que Jim Brown, considerado um dos maiores jogadores da história do futebol americano, que se tornou ator após encerrar a vitoriosa carreira na NFL.

Os papéis de Florencio Amarilla quase sempre eram pequenos, tantas vezes limitado a representar um nativo americano e nem sempre creditado. Suas falas por vezes eram até em guarani, para “parecer mais autêntico”. O grande filme que teve o paraguaio em seu elenco foi Patton, sucesso de bilheteria em 1970 – e curiosamente uma de suas raras participações fora do gênero Western. O longa ganhou sete Oscars, incluindo o de melhor filme, embora tenha ficado marcada a recusa de George C. Scott em receber a estatueta de Melhor Ator por criticar a maneira como a cerimônia era realizada. Tal postura seria repetida dois anos depois, por Marlon Brando, ao ser escolhido como Melhor Ator por seu papel em O Poderoso Chefão. Na ocasião, Brando criticava, entre outras questões, justamente a discriminação contra nativos americanos na indústria cinematográfica.

Florencio Amarilla passou mais de uma década fazendo suas pontas como ator. Participava quase sempre de filmes de faroeste e criou boas relações com vários astros, entre eles Bud Spencer e Charles Bronson. Outro filme famoso que teve sua presença no elenco foi ‘Conan, o Bárbaro', estrelado por Arnold Schwarzenegger e igualmente rodado em Almería. Mas não que o paraguaio tenha se afastado totalmente do futebol. Ele se tornou treinador de times amadores da região, passando por diversas equipes. Chegava a orientar treinamentos com seu figurino de indígena e pinturas no rosto, quando não tinha tempo de se trocar. Depois, se tornaria roupeiro nas divisões de acesso. Era uma figura muito querida por todos. Também costumava frequentar partidas do Oviedo, convidado por dirigentes por sua história como jogador do clube.

“Gosto de viver livre. Levanto cedo, ando, corro, bebo meu mate. Sou feliz assim. Depois, no resto do dia, organizo as chuteiras e fico à disposição do time”, contava Amarilla, sobre sua rotina. O paraguaio continuou a viver na Espanha (e mais especificamente na província de Almería) até seus últimos dias, já sem os dólares dos tempos de ator e com as limitações causadas por uma trombose. Com problemas financeiros, viveu de favor no estádio de um dos clubes onde trabalhou. Faleceu em 2012, aos 77 anos. Deixou bons amigos no futebol e no cinema, com um legado único: podia se gabar de estar nos palcos mais prestigiosos, a Copa do Mundo e o Oscar, nas duas áreas em que construiu sua carreira.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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