Servette: A lenta morte da tradição
Um breve comunicado no site oficial do Servette encerrou a rica história de 115 anos do clube. Mergulhado em dívidas, o segundo maior vencedor do futebol suíço fechou suas portas de forma melancólica. A tradição não resistiu a seguidos erros administrativos, acentuados em suas duas últimas gestões, que acumularam um saldo negativo da ordem de US$ 8,3 milhões. O time já nem faz mais parte da liga suíça, que ficou reduzida a nove equipes.
A falência do Servette revela a quantas anda o futebol em um país sinônimo de estabilidade financeira. Outros clubes passaram por crises semelhantes há pouco tempo: o Lugano e o Lausanne Sports foram declarados falidos em 2002 e por isso rebaixados. Da mesma forma, o Sion caiu para a segunda divisão, em 2003, por sua crise financeira. Com a nova bancarrota, sobrou apenas o Neuchatel Xamax como representante da zona francófona na elite da liga helvética. Para a torcida, resta o silêncio e a disposição para recomeçar tudo outra vez.
O Servette nasceu a partir de um presente de pai para filho. Ao voltar de uma viagem da Inglaterra, um homem trouxe para seu filho uma bola oval, própria para o rúgbi. Para poder jogar, o menino juntou seus amigos e fundou o clube, em 20 de março de 1890. O nome homenageia o bairro periférico de Genebra no qual foi fundado. As primeiras partidas aconteceram no Colégio de la Prairie, mas logo os garotos foram ´convidados´ a deixar o local. Um outro time passou a treinar no colégio e forçou os jovens a quase dissolver a associação. Porém, eles conseguiram se mudar para Plaine de Plainpalais.
Das mãos para os pés
Com a forte influência dos ingleses, não demorou para o futebol se difundir na Suíça. Em 1895, criou-se a Associação Suíça de Futebol (ASF), mas o Servette não participou de sua fundação. O clube ainda estava mais interessado no rúgbi. Déjerine, capitão do time, jogava futebol em outro clube, o Stellula. Ele incentivou a criação de uma seção da modalidade no Servette, o que ocorreu em 14 de janeiro de 1900, data da primeira partida – vitória sobre o Excelsior por 2 a 0. No mesmo ano, o novo time filiou-se à ASF.
Marcado pela instabilidade em seus primórdios, o futebol suíço assistiu ao desaparecimento de algumas equipes por falta de um lugar para atuarem. O Servette salvou-se desse incômodo e mudou-se para o Parc des Sports em 1901. Começou então um período de rápida ascensão, com o aumento no número de sócios e a supremacia regional. Na época, o campeonato suíço era dividido em três grupos regionalizados. Os vencedores de cada um deles disputavam entre si o título. Apesar de atingir a decisão em 1904 e 1906, a primeira taça veio só em 1907, quando o Servette derrotou o Basel por 5 a 2 e o Young Fellows por 1 a 0.
O clube cresceu e se estruturou rapidamente, graças ao trabalho organizado de seus presidentes. Um deles, Gabriel Bonnet (cuja gestão durou de 1915 a 1927), ficaria marcado também no cenário mundial. Ele foi nomeado vice-presidente da FIFA em 1923. Bonnet sugeriu ao comitê executivo da entidade, em 1927, organizar nos intervalos entre os Jogos Olímpicos um campeonato mundial entre seleções, sem restringir categorias de jogadores. Três anos depois, a idéia tornou-se realidade no Uruguai, com a disputa da primeira Copa do Mundo.
No campo, o Servette passou a colecionar troféus em seqüência, mas a fonte secou no início de 1933. Dois anos antes, a adoção do profissionalismo provocou a quebra de diversos times. Na temporada 1933/4, outra mudança de peso contribuiu para o aumento da crise financeira, com a disputa do campeonato nacional sob o formato de pontos corridos.
Dificuldades financeiras
A sociedade imobiliária ligada ao Servette declarou falência, e o clube apertou os cintos para conseguir sobreviver. As conquistas diminuíram, e a equipe permaneceu 11 anos em jejum (de 1950 a 1961). Mas os títulos nacionais em 1961 e 1962 não remediaram a situação. Apesar de vencer a Copa da Suíça em 1971, os bons tempos só retornariam em 1978/9. Para acabar com a má fase, o Servette fez barba, cabelo e bigode: venceu o campeonato nacional, a Copa da Suíça, a Copa da Liga e a Copa dos Alpes. Para completar, atingiu as quartas-de-final da Recopa. Nada mal para um país sem tradição em disputas continentais.
A euforia durou pouco, pois logo o clube entrou em queda. Seus principais jogadores foram embora e, com as finanças apertadas, pouco podia ser feito para melhorar o ambiente. Nesse período irregular, chegaria a salvação: o grupo francês Canal + assumiu o comando do clube, em 14 de janeiro de 1997. O Servette passou por uma remodelação estrutural, com uma sociedade anônima como responsável pelo setor profissional.
Por três anos, o Servette conheceu a estabilidade. Porém, em 2000, o Canal + começou a procurar novos investidores, pois estava prestes a abandonar o barco. A UEFA passou a apertar o cerco sobre o grupo de mídia, pois, de acordo com os regulamentos da entidade, dois clubes não podem pertencer a um mesmo dono (o Canal + é o sócio majoritário do Paris Saint-Germain). Em 4 de setembro de 2001, selou-se a venda de 43,2% do clube suíço ao empresário francês Michael Coencas.
Agonia e morte
A administração Coencas de nada adiantou para melhorar o panorama. Vender o zagueiro Philippe Senderos para o Arsenal foi a fórmula para tentar equilibrar o caixa. O Servette agonizou por mais três anos até a chegada de outro francês: Marc Roger, agente de jogadores, comprou 87% do time e adquiriu os direitos para explorar o novo estádio La Praille como parte da negociação.
Apesar do aporte inicial de cerca de US$ 3,1 milhões, Roger revelou ser um desastroso comandante. Segundo sua lógica, se ele montasse um time com jogadores consagrados, ganharia todos os torneios que viessem pela frente. Com isso, teria visibilidade e lucro na participação em competições européias e na venda de passes valorizados.
Mas, para organizar um ´dream team´, ele gastou os tubos, ampliando a dívida inicial, e a equipe não deu certo. Para piorar, os salários atrasavam freqüentemente. As estrelas saíram em debandada. Roger correu o chapéu para encontrar algum salvador da pátria que pudesse injetar dinheiro para salvar o clube. Pelé foi convidado a ser garoto-propaganda em uma tentativa desesperada de renascimento. Investidores sírios chegaram a se interessar, mas desistiram do negócio ao conhecer o tamanho do abacaxi.
Sem saída, o juiz Patrick Chenaux, do tribunal de comércio de Genebra, decretou a falência do Servette em 4 de fevereiro de 2005. Após 115 anos, sem nunca ter sido rebaixado em campo, o time terá que recomeçar seu caminho pela primeira divisão amadora. A humilhação pode ser mais dolorosa, com a possibilidade de seu novo estádio, um dos que serão utilizados na próxima Eurocopa, ser penhorado. Resta partir do zero, em busca do orgulho perdido.