Mirosevic: Entre ´bravos´ e (barra)bravas

A cena foi de filme policial. Quando o mocinho saiu do local de trabalho, homens violentos estavam à espreita. Perseguiram-no e interceptaram-no. O celular era sua única saída: com uma ligação, obteve o auxílio de alguns colegas. Os sujeitos ameaçadores propuseram uma conversa e, no fim das contas, ninguém saiu ferido. A imprensa registrou tudo nas páginas… esportivas! Sim, nosso herói é Milovan Mirosevic, acossado pelos barrabravas do Racing, que, devido à desastrosa campanha no Torneio Apertura, já haviam até ameaçado de morte o agora ex-treinador Ubaldo Fillol. O meia chileno, diante desse tormento psicológico, provavelmente pensou nos estudos que deixou para trás quando decidiu desfilar seu talento nos gramados, inicialmente no Universidad Católica.

Membro de uma família formada por pessoas afeitas ao meio acadêmico, ´Milo´ sempre se mostrou disciplinado e intelectualmente bem dotado, traços que facilitam tanto o contato com os livros quanto a prática desportiva. Apesar da péssima fase do time de Avellaneda e das pressões que daí decorrem, a maneira como o futuro de Mirosevic se esboça parece indicar que sua decisão foi correta. Juvenal Olmos, seu ex-técnico na UC, o tem convocado com freqüência para os jogos da seleção chilena, cujas chances de participar da Copa do Mundo de 2006 continuam grandes; além disso, há a Europa, que sempre observou com atenção seus remates de média distância e seus passes precisos, mas ainda não o convidou para uma travessia do Atlântico. ´´Bom, aquele dia com aquela hora / chegará e deixará tudo mudado´´, nos diz Pablo Neruda, grande voz poética e política da nação de Mirosevic.

Gols centenários e monumentais

A criatividade, marca de Neruda no manuseio das palavras, acompanha seu compatriota no trato da bola. ´Milo´ enxerga o jogo com absoluta limpidez, executa lançamentos eficazes e se desloca com inteligência. É dono de um estilo clássico e elegante, o que não o deixa pouco combativo. Pelo contrário: realiza elogiável esforço no trabalho de contenção. Mirosevic já jogou em todas as posições da faixa central, de volante a ´número 1´ (ou ´enganche´, como por lá se diz) e nisso se assemelha, por exemplo, a Juninho Pernambucano ou a Lucho González, os quais, assim como o chileno, marcam e apóiam o ataque, não raro desferindo petardos calibradíssimos.

Fazer gols, aliás, é uma das aptidões de ´Milo´. Em setembro de 2003, contra a Argentina, pelas eliminatórias da Copa de 2006, o inesquecível tento que abriu caminho para o empate em pleno Monumental de Nuñez, por 2 a 2, foi do ´chileno da sorte´, apelido que lhe foi dado após a histórica vitória do Racing sobre o Nacional no estádio Centenario, em Montevidéu, pela Libertadores de 2003. O clube argentino jamais havia triunfado na capital uruguaia em jogos oficiais, até que, numa de suas primeiras aparições com a camisa ´blanquiceleste´, Mirosevic, que entrara no transcurso da partida, aproveitou um cruzamento de Diego Milito (hoje no Genoa) e decretou o 2 a 1, tornando-se instantaneamente ídolo da torcida. ´´Sempre pensei em como seria entrar numa partida importante e defini-la na primeira bola que tocasse´´, disse tempos depois.

No dia do centenário do Racing (25 de março de 2003), fez o gol que garantiu o empate contra o Universitario, também pela Libertadores, no Cilindro de Avellaneda. Nas oitavas-de-final da competição continental, entretanto, Milo perdeu dois gols no conclave decisivo frente ao América de Cali, revelando a intranqüilidade que por vezes emperra guinadas em sua carreira.

As incertezas

Alguns adeptos do Racing o reputam incapaz de reverter situações adversas. De fato, em meio à crise atual, Mirosevic não tem regido o meio-campo com a costumeira maestria, ainda que ninguém possa contestar sua imensa disposição. Se a vitória não vem há várias rodadas, lá está o chileno, o dos ´sete pulmões´, como já se referiram a ele, fazendo a alma gotejar por meio do suor, exibindo o coração em cada dividida. Em certas ocasiões, o ímpeto de cooperar com a coletividade torna opaca sua atuação individual, fato que os precipitados confundem com ´sumir do jogo´.

Empenho idêntico o apoiador apresenta na Roja, desde a sub-17. No mundial da categoria disputado em 1997, no Egito, Mirosevic foi titular, ao lado de outros nomes importantes, como Claudio Maldonado. Fez um gol, contra a Tailândia (goleada de 6 a 2), mas não impediu a eliminação ainda na primeira fase.

Meses antes, ´Milo´ brilhara no Sul-Americano, tendo compartilhado o topo da artilharia (quatro gols) com o também chileno José Viveros e com o brasileiro Geovanni. Figurou na seleção do campeonato, onde também foram alinhados Ronaldinho Gaúcho e Gabriel Milito, beque argentino do Zaragoza. Em 1998, estreou na formação principal da UC e, no ano seguinte, foi chamado por Wladimir Bigorra, técnico da sub-17 em 1997, para o Sul-Americano sub-20 de Mar del Plata.

Enquanto isso, os amigos mais próximos ingressavam nas faculdades e Milo, com as notas que possuía, poderia escolher a que desejasse. ´´Ai! O que não podia ser / quando talvez pudesse ser´´, nos diz Neruda, parecendo se dirigir a Mirosevic. As boas perspectivas no futebol iam, contudo, delineando sua trilha. Ele só não esperava ser barrado por Bigorra, que preferiu David Pizarro, anos depois adquirido pela Udinese. A confiança demorou a regressar. Nelson Acosta não o levou ao Pré-Olímpico do Brasil, em 2000. A Sydney Mirosevic foi, mas não participou de nenhum jogo do honroso bronze chileno.

Dos Cruzados aos euros?

As dúvidas se dissipam quando Wim Rijsberger assumiu o comando dos Cruzados (Universidad Católica) e apostou em seu futebol. Já com Juvenal Olmos, deu-se o ponto culminante de ´Milo´ na equipe, em meados de 2002, com a conquista do Torneio Apertura e a chegada à segunda etapa da Libertadores. Na fase de grupos, o meia fizera dois gols contra o Flamengo, um na ida e outro na volta. Cruzeiro (na Mercosul 2000) e Vasco (na Mercosul 2001) também foram vítimas de seus chutes certeiros.

Chegou a hora de partir para um centro mais competitivo. Em 14 de fevereiro de 2003, num Racing x Huracán, a camisa 17 do Racing passa a vestir o chileno disposto a seguir os passos de Sergio Livingstone, goleiro da década de 40 que também efetuara o trajeto UC – Racing. Com quase dois anos de clube e certo desgaste na relação com a massa fanática, ´Milo´ aguarda o interesse europeu, que no fim de 2003 se manifestou timidamente por meio de sondagens do PSV. Em Buenos Aires, Milovan tem tomado aulas de francês. Mero exercício mental, como afirma sua mãe, ou transferência à vista?

A pífia campanha chilena na Copa América, durante a qual foi titular, talvez tenha prejudicado a concretização de seu intento no meio do ano. Nas eliminatórias 2006, tem se revezado entre o banco e a titularidade – disputa posição com Pizarro, Jiménez e Valdivia. Suspenso, não enfrentará o Peru neste mês de novembro. A namorada, estudante de veterinária e há oito anos a seu lado, visita-o periodicamente no bairro de Las Cañitas e o estimula a acreditar num futuro vitorioso. Os pais, assustados com o exagero dos ´bravas´, escondem do único neto a bola, presente do tio Milovan. ´´Com um futebolista, basta!´´, determina o Sr. Mario Albornoz.

Foto de Equipe Trivela

Equipe Trivela

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