“Todo técnico europeu vê treinar o Brasil como um grande desafio”, diz ex-colega de Felipão em Portugal

Fotos de David Martins
José Couceiro pode falar bem de intercâmbio cultural no futebol. O português trabalhou em grandes clubes de seu país, como Porto e Sporting, e teve passagens por Lituânia, Turquia e Rússia. Além disso, foi técnico das categorias de base da seleção portuguesa na década de 2000, trabalhando em conjunto com o brasileiro Luis Felipe Scolari. Para completar, é o técnico do Estoril Praia, equipe portuguesa controlada pela Traffic, uma empresa brasileira.
Toda essa experiência o fez ter convicção de que essa troca de ideias é importante para a evolução do futebol. Incluindo no Brasil, na seleção brasileira. “Sempre temos coisas a aprender, e não acho que seja só na Seleção, mas também nos clube e no trabalho de base”, afirma. “Nós treinadores europeus encaramos o Brasil como um grande desafio. É um país com um potencial fantástico, grandes jogadores, muita qualidade. Quem gosta de futebol não é indiferente ao Brasil. Há um sentimento especial”, completa.
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No entanto, não bastaria trocar a nacionalidade dos comandantes para tudo melhorar. Segundo ele, a derrota por 7 a 1 para a Alemanha não pode ser interpretada como um lapso, um branco de uma partida. O português considera que a goleada – bem como os 4 a 0 que a sua seleção sofreu para a mesma Alemanha duas semanas antes – é sintoma de um problema maior, estrutural. “A organização no Brasil precisa ser diferente para que os campeonatos sejam mais competitivos, menos longos. São muitas coisas a serem discutidas”, comenta.
Em entrevista à Trivela, concedida na antevéspera da estreia do Estoril na Liga Europa (derrota por 1 a 0 para o PSV em Eindhoven), Couceiro também falou da situação da seleção portuguesa e sobre as expectativas de seu clube para a temporada 2014/15.
Você já trabalhou em grandes clubes de Portugal e fora, e agora trabalha em um clube português administrado por uma empresa brasileira. Dá para perceber alguma diferença cultural na forma de gestão?
O Estoril é um bom exemplo de gestão, num plano geral e do ponto de vista esportivo. É um bom exemplo de como fazer as coisas de forma produtiva e, por isso, não temos essa pressão extra de termos de atingir objetivos inatingíveis. É um exemplo para outros clubes de como a gestão pode fazer a diferença nos resultados em campo.
Você trabalhou na Rússia, na Turquia, na Lituânia. E é comum ver técnicos portugueses em clubes por toda Europa. Por que Portugal se tornou um centro formador de técnicos?
Somos pequenos, temos só 10 milhões de habitantes, 5% da população do Brasil. Então, temos de apostar na qualidade porque não conseguimos ter a quantidade. Apostando na qualidade, conseguimos ao longo dos anos ter um conjunto de pessoas em diversas áreas que tenha de fato qualidade internacional. E depois disso vira algo cíclico. Pessoas começam a trabalhar e a ter sucesso, e uns puxam os outros. E é isso que tem passado conosco. E felizmente para nós somos cada vez mais reconhecidos porque isso abre perspectiva de outros mercados.
Os técnicos brasileiros não costumam fazer sucesso na Europa, e uma das explicações que se usa é o fato de o idioma português atrapalhar. Isso atrapalha mesmo?
Não acho. A língua é importante, é claro que é, mas a língua não condiciona tudo. A maior parte da nossa comunicação não é verbal, é corporal. É evidente que só a comunicação corporal não resolve, mas também ajuda muito a criar um clima muito mais próximo e a passar uma mensagem positiva. Obviamente que o ideal é falar a língua local, mas não falo turco, lituano e russo e consegui trabalhar. Bastava saber algumas palavras. Não acho que isso seja impeditivo de se fazer um bom trabalho.
Como ex-colega do Felipão nas seleções portuguesas, como você viu a participação do Brasil na Copa e aquele final melancólico?
O Brasil ficou marcado pela Alemanha, como Portugal também ficou. São daqueles jogos em que não há treinador, não há ninguém, que consiga aguentar aquilo. É uma derrota muito pesada. A equipe perdeu sua organização, os jogadores não conseguiram ter cabeça fria para minimizar a derrota. Mas eu penso que o problema, quer de Portugal, quer do Brasil, não se pode resumir a um jogo. É um trabalho mais profundo e os treinadores acabam sendo mais vítimas de um trabalho estrutural que não existe. O que acontece em um torneio é uma situação conjuntural, uma situação de momento. E eu acho que nas duas situações há razões mais profundas. O Brasil é um país com potencial fantástico, tem muitos jogadores, muita qualidade, mas a organização das competições precisa ser diferente para ter campeonatos mais competitivos, menos longos. São muitas coisas a ser discutidas.
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Uma discussão que se teve muito no Brasil foi a de trazer um técnico estrangeiro para a Seleção como uma forma de modernizar o futebol daqui, trazer ideias novas. Portugal até fez o contrário, contratou um brasileiro, mas você acha que um intercâmbio desse poderia ser positivo?
Acho que é positivo para todo mundo. Sempre temos coisas a aprender. Não penso que seja só na seleção, nos clubes e na base também. Nós treinadores europeus encaramos o Brasil como um grande desafio. O Brasil tem um potencial fantástico, tem grandes jogadores, muita qualidade. Quem gosta de futebol não é indiferente ao Brasil, tem um sentimento especial. Quando o Scolari veio para Portugal, o ambiente que se criou em torno da seleção foi incrível. Gosto desse intercâmbio cultural, não só de países que falam a mesma língua, com outras escolas também.
E como você vê a situação de Portugal? É um país com bons jogadores, mas a seleção está com dificuldade de decolar. Acabou de perder da Albânia e trocar de técnico.
É um momento difícil. Perdemos um jogo que todos achavam que íamos ganhar. Aconteceu uma surpresa, mas eu não concordo com a saída do treinador. Se fosse para sair, tinha de ter sido depois da Copa do Mundo e não a essa altura. Essas coisas não acontecem só no Brasil, acontecem em Portugal também. Mas é uma fase. Portugal tem tido uma história de sucesso. Dos países europeus com a dimensão de Portugal, somos claramente o primeiro. No mundo, o único país que pode ter comparação conosco é o Uruguai, que é pequeno e tem muito bons jogadores. Os outros países têm muito mais gente, com muito mais capacidade de recrutamento. Fazer o que Portugal faz com 10 milhões de habitantes é fantástico.

Bem, você está em um momento de comandar um clube português em uma competição internacional. Como o Estoril está encarando a Liga Europa?
Como uma boa oportunidade de poder jogar em um nível mais elevado. Vamos encarar como um desafio e jogar com equipes que estão acostumadas a jogar em competições europeias. Para conseguirmos isso, vamos ter de jogar um futebol positivo, e encarar como um prêmio para toda a equipe.
Na temporada passada, o Paços de Ferreira conseguiu uma vaga na Champions League, mas acabou eliminado cedo e ainda fez uma campanha muito ruim na liga. O que o Estoril faz para não sofrer o mesmo?
São situações diferentes. O Estoril claramente sabe que começou um ciclo diferente. Mudaram muitos jogadores e dessa forma o seu principal objetivo é o campeonato nacional, e não a campanha internacional. É bom sempre lembrar a situação do Paços de Ferreira, mas penso que não vai ter nada.
Qual foi a sensação quando vocês viram que estavam no grupo com equipes tradicionais como Dinamo de Moscou, PSV e Panathinaikos?
Poder defrontar adversários de tanta importância e habituados a jogar essas competições é um desafio interessante. É motivador para os jogadores enfrentar equipes de tanto prestígio.
A ideia que se tem do futebol português é que só tem três clubes: Porto, Benfica e Sporting. Mas, neste século, Boavista e Braga já foram muito longe na Copa da Uefa/Liga Europa. Vocês pensam tão grande assim?
Não. Nós neste momento só podemos pensar num jogo de cada vez. Começar a fazer uma aposta só na campanha internacional obviamente vai ter problema na campanha nacional. E o mais importante neste momento é a campanha nacional. Em termos de Liga Europa, o Estoril vai pensar em um jogo de cada vez e não vai criar nenhuma pressão extra. O primeiro objetivo do Estoril na Liga Europa é ganhar um jogo, pois nunca ganhamos nenhum jogo na Liga Europa. Se conseguirmos continuar para a fase seguinte, ótimo. Mas uma coisa de cada vez, sem pressão adicional.
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E na liga portuguesa, qual a perspectiva do Estoril? O time vem de dois bons campeonatos [quinto em 2012/13 e quarto em 2013/14] e se criou um patamar meio alto para seu trabalho.
Futebol é por ciclos. O Estoril teve um ciclo nos últimos anos brilhante, mas saíram muitos jogadores importantes. O clube fez dinheiro, o que é importante. Agora começa um novo ciclo, com muitos jogadores que têm uma primeira vez nesse nível. Esse primeiro ano não é fácil. Precisamos criar estabilidade e fazer crescer os jogadores. O objetivo é fazer um campeonato tranquilo e, no ano seguinte, buscar posições melhores.
Então, se o Estoril der um passo atrás em relação à classificação, não seria algo fora do normal? Já faria parte do projeto?
Claro. É evidente que do ponto de vista financeiro é interessante para o Estoril vender os jogadores. Mas é difícil do ponto de vista esportivo. Isso faz parte do projeto do Estoril.