O papa Francisco andava desanimado. Cabisbaixo e com as mãos nos bolsos de sua batina (se é que batinas têm bolsos, nunca vesti uma para saber), vagava sem rumo, chutando pedrinhas pelo Vaticano. Já havia se passado um bom tempo de seu pontificado, mas a aguardada reforma da Igreja Católica não saía do papel, nem com reza brava. Era mesmo difícil lidar com uma estrutura tão corroída, de seculares privilégios a serem cortados e tantas perversões a serem punidas com severidade.
Sentia-se pressionado pela Cúria Romana, que garantia que ele continuava prestigiado e cumpriria o seu vínculo até o final. Em algum momento de reflexão e penitência, talvez tenha até pensado em como os homossexuais se sentem ao terem os seus direitos negados por dogmas ultrapassados de instituições que, acredite, ainda pregam o amor ao próximo. Pensamentos dos quais ele deve ter se afastado muito rapidamente. Seja pela força de suas convicções, ou porque o carmelengo acabava de chegar com mais algumas resmas de papel, onde se encontravam impressos os mais recentes escândalos divulgados pelo Vatileaks.
A única coisa que fazia o Sumo Pontífice abstrair de tais encrencas era o seu amor pelo futebol. Quando a bola rolava nas partidas do seu time do coração, Francisco trocava todas as preocupações por… outras dores de cabeça. Afinal, o San Lorenzo de Almagro continuava afundado em uma crise que já perdurava desde que ele era apenas mais um cardeal cuja estrela não brilha. E foi durante uma fria madrugada romana, enquanto escutava no radinho (na verdade, por uma rádio sintonizada pela Internet, dica de um diácono antenado) mais um jogo estudado e aguerrido do Ciclón pela segunda divisão argentina, que ele encontrou o seu caminho.
Francisco decidiu ser o primeiro papa verdadeiramente boleiro da história. Está certo que João Paulo II havia sido goleiro em seus tempos de juventude, mas com essa alcunha declaradamente secundária, ele provavelmente era só mais um arqueiro reserva, daqueles que só são notados quando rolam as cenas lamentáveis de uma briga no gramado (no caso, Karol Wojtyla era da turma do deixa-disso; do contrário, nunca teria chegado a papa). Se não havia mais vitalidade para bater uma bolinha, o papa optou por valorizar a abandonada seleção de futebol do Vaticano, que até então só havia ido a campo em oito oportunidades.
Respeitem o amarelo-ouro do meu pavilhão
Apesar da insistência de Maradona e Sven-Göran Eriksson, que não cansavam de se autoconvidar para assumir o posto de treinador, e das especulações da imprensa, que colocava Paulo Autuori entre os mais cotados para exercer a função, Francisco decretou que ele mesmo seria o técnico do escrete canarinho-cristão, até como forma de terapia. Do seu grupo, formado integralmente por estudantes seminaristas e integrantes da Guarda Suíça, exigiria bastante disciplina tática. Seus valores franciscanos primavam por um futebol sem ostentação, evitando jogadas de efeito e priorizando a ligação direta, buscando o centroavante trombador enclausurado entre os beques rivais.
A intenção de Francisco não era inscrever o Vaticano em campeonatos oficiais. O importante não seria competir, mas divulgar uma mensagem de paz pelo mundo afora. Uma espécie de Harlem Globetrotters de batina e com a bola no pé. Com muita pompa, o papa quebrou o procolo sagrado e interrompeu a Missa do Galo para anunciar a primeira excursão mundial da seleção do Vaticano. Durante o período da quaresma, a equipe percorreria dezenas de países, entre Europa, Ásia e América Latina, para marcar gols e promover a palavra de Deus.
Romarias de fiéis lotaram os estádios, em tardes e noites de muita festa, onde os tradicionais xingamentos ao árbitro foram corretamente trocados por gritos de “Pai, abençoai esta pobre alma que não aceita Jesus Cristo e a devida aplicação das regras estipuladas pela International Board em seu coração”. Pouco importava para quem assistia, mas dentro de campo o escrete papal se portava como um verdadeiro bando. A defesa até mantinha certa pose de Guarda Suíça, mas contava com buracos dignos de um queijo de mesma procedência, dando sempre a outra face ao adversário, de mão beijada. O ataque então, se colocava de joelhos o tempo todo. Não para agradecer por uma graça concedida, mas para lamentar as chances desperdiçadas.
A última exibição foi no Pedro Bidegain, o Nuevo Gasómetro, estádio do San Lorenzo, o qual Francisco havia frequentado por muitos anos. Terminou em um 0x0 modorrento, evidenciando o mau momento dos dois times do papa. No retorno à sede do catolicismo, o Sumo Pontífice reuniu o elenco na Capela Sistina, onde, a portas fechadas, aproveitou a ausência da imprensa e dos fiéis para passar um verdadeiro sermão. O professor Francisco soltava fumaça pelas ventas, cobrando mais comprometimento de seus atletas. Bom orador, conseguiu fechar o grupo em torno de um objetivo. A partir dali, todos seguiriam os seguintes preceitos:
Fiat lux
Se adiantou alguma coisa? Não, não adiantou. O problema da equipe não era se prender a alguns vícios chatos do futebol moderno. Faltava qualidade, como se espera de um grupo formado por amadores. O papa Francisco tomou consciência disso e passou a encarar o futebol como uma grande diversão. A cada gol tomado pelo San Lorenzo, a serenidade de quem sabe que dias melhores virão. A cada lambança cometida por um craque meia-boca do Vaticano, o sorriso de quem sabe que o amor pelo futebol tudo vence, ao contrário do amor ao próximo, que acaba sucumbindo à (nem sempre boa) e velha rivalidade.
Engana-se quem pensa que Francisco não aumentou a sua popularidade através de sua investida futebolística. Os preceitos passados à seleção do Vaticano ganharam o mundo, apelidados agora de “Os Dez Mandamentos do Futebol”. Em cada vestiário, foram afixados à parede. Com o tempo, passaram a ser seguidos à risca, a ponto de um ou outro mais conservador confessar ao padre de sua paróquia que sente falta de ver uma chuteira verde-limão em campo.
O papa boleiro só não encontrou o seu espaço na hora do aperto, onde cada fiel continuará dirigindo suas preces desesperadas à Santíssima Trindade do futebol. Em nome do goleiro; do craque do time; e do centroavante. Amém.