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Data Fifa na pandemia: não dá para ficar surpreso que um plano que tinha pouquíssima chance de dar certo não está dando certo

Ninguém tem o direito de ficar surpreso que uma ideia que tinha pouquíssima possibilidade de dar certo de repente… não deu certo. Na semana em que o primeiro caso de Covid-19 completou um ano, o noticiário do futebol está infestado por jogadores com coronavírus. Que seja nessa data infelizmente marcante é coincidência. Que seja durante uma Data Fifa não é.

Não é um levantamento científico que agora há mais casos de Covid-19 no futebol do que em qualquer outro momento. Pode ser que março e abril, ainda considerados o auge da pandemia, tenham sido piores em números brutos. Mas a sensação é que sim. E, principalmente, assusta a naturalidade com a qual agora estamos tratando essa situação.

Covid-19 é a nova distensão muscular. Suárez deve perder o reencontro com o Barcelona porque testou positivo, um dos sete casos registrados pela seleção uruguaia.  Salah foi acrescentado à longa lista de desfalques do Liverpool após contrair a doença ao lado do seu compatriota Mohamed Elneny. Alan Franco, do Atlético Mineiro, cumpre isolamento no Equador.

Domagoj Vida testou positivo após um amistoso pela Croácia em Istambul. Tudo bem que ele já atua na Turquia, pelo Besiktas, mas teve contato com todos os outros jogadores da sua seleção – que, em um primeiro momento, testaram negativo. A Ucrânia apresentou quatro casos antes de enfrentar a Alemanha no último domingo. Depois, outros três jogadores testaram positivo e toda a delegação foi colocada em quarentena, o que levou ao cancelamento do jogo contra a Suíça pela Liga das Nações.

A Irlanda do Norte foi rebaixada na competição porque a Uefa determinou a vitória da Romênia por 3 a 0 sobre a Noruega, por WO. A seleção de Haaland foi impedida pelo governo local de viajar a Bucareste porque um dos seus jogadores testou positivo. Todos estão em isolamento.

Os surtos recentes no futebol brasileiro talvez não tenham a ver com o futebol internacional porque jogadores como Franco e Gabriel Menino ainda não retornaram ou testaram positivo assim que chegaram à seleção. Ou talvez seja uma rebarba da Data Fifa de outubro. Mas fica o registro que o Atlético Mineiro tem nove casos positivos, o Palmeiras tem 15 e, na última rodada do Campeonato Brasileiro, os times entraram em campo desfalcados por 43 jogadores e dois técnicos por causa da pandemia.

Estamos em um momento curioso (complicado) da civilização em que as pessoas têm opiniões sobre a ciência. No entanto, se você aquecer a água a 100 graus ela vai ferver. Se você pular de um prédio, você vai cair. Se você espalha jogadores que estão sob certos protocolos e dentro de um determinado controle da pandemia ao redor do mundo, e depois os traz de volta, você aumentará o risco de contaminação.

Eu não sou cientista, nem precisa de um PHD em infectologia para ter essa consciência. Então podemos presumir de maneira razoavelmente justa que a Uefa e a Fifa sabiam disso quando decidiram não apenas manter o calendário de seleções como até expandi-lo em certas situações. Alguns times europeus estão fazendo três jogos por paralisação, dois da Liga das Nações e um inexplicável amistoso – que, na verdade, tem uma explicação: compromissos comerciais de jogos previamente marcados para uma Data Fifa que não aconteceu.

É também justo presumir que pelo menos a Uefa conhecia o problema porque, quando ela trabalhou para retomar a Champions League, fez um esforço danado, inclusive mudando o formato da competição, para criar uma espécie de bolha em um único país e limitar a movimentação o máximo possível. Na hora de preparar a temporada seguinte, todo esse cuidado saiu pela janela.

Clubes viajam normalmente para as competições europeias. Alguns atuam em estádios com torcida depois voltam para jogar em estádios vazios em seus países, dependendo das restrições de cada governo. Quando chega a Data Fifa, os caras trocam até de continente e ficam horas dentro do avião.

A Uefa provavelmente apostou que o pior havia passado. Entre julho e agosto, não era uma ideia tão otimista quanto parece hoje. Casos e mortes haviam caído na maioria dos países da Europa, os protocolos pareciam funcionar, havia uma sensação de certo controle da pandemia. Outras áreas retornavam a uma normalidade controlada – o “novo normal”, se você, ao contrário de mim, não odeia o termo – e as pessoas pouco a pouco saíam mais de casa. Por que não o futebol?

Ainda era um pouco irresponsável porque outros continentes não estavam no mesmo estágio e, se é razoável o argumento de que o futebol de clubes precisava voltar em nome da sobrevivência da indústria, o de seleções poderia parar por mais seis meses ou um ano com danos muito menos catastróficos. É um bom debate quanto espaço ele deveria ter no calendário, mas é fato que hoje em dia, exceto em tempos de Copa do Mundo, os times nacionais são coadjuvantes.

Acontece que a Europa foi atingida com força pela segunda onda da pandemia – e a América do Sul mal saiu da primeira. Os cinco principais centros do futebol do continente (Espanha, Itália, França, Inglaterra e Alemanha) anunciaram novas medidas de lockdown, mesmo que mais leves que o anterior. As notícias sobre a vacina são boas, talvez este inferno acabe no primeiro semestre do ano que vem, mas o momento atual é pior do que o de alguns meses atrás, mesmo que não seja tão grave quanto em março.

Em um paralelo com o futebol, é mais ou menos como apostar que a Alemanha venceria a Espanha. Ok, não era uma aposta absurda, um pouco arriscada, mas, depois de levar 6 a 0, talvez seja um bom momento para parar e reavaliar a sua estratégia, e não há nenhuma indicação de que a Uefa ou a Fifa ou a Conmebol ou quem quer que seja estejam pensando nisso.

E uma coisa é arriscar dinheiro. Outra coisa é arriscar vidas. Por terem uma saúde privilegiada e acesso aos melhores serviços de saúde do mundo, é pouco provável que jogadores de futebol de alto nível sofram consequências sérias por causa da Covid-19. Ainda assim, há um risco, nem todos ganham milhões de euros, uma hora eles voltam para casa, vão ao supermercado e têm contato com funcionários do clube menos privilegiados. A gerência do futebol está tratando a vida de pessoas de uma maneira leviana e despreocupada que assusta – mas não surpreende.

Está basicamente segurando a respiração e torcendo para que ninguém morra até que todos estejam vacinados. Enquanto isso, como nosso colega Ubiratan Leal matou a charada, os protocolos não servem para proteger os jogadores. Servem para proteger o calendário e, consequentemente, as contas bancárias.

Foto de Bruno Bonsanti

Bruno Bonsanti

Como todo aluno da Cásper Líbero que se preze, passou por Rádio Gazeta, Gazeta Esportiva e Portal Terra antes de aterrissar no site que sempre gostou de ler (acredite, ele está falando da Trivela). Acredita que o futebol tem uma capacidade única de causar alegria e tristeza nas mesmas proporções, o que sempre sentiu na pele com os times para os quais torce.
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