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O encanto do Napoli possui um binômio: Osimhen e Kvaratskhelia, uma dupla irresistível e desde já inesquecível

O centroavante que manda dentro da área e o ponta que costura tudo fora dela se combinaram à perfeição para o Napoli voltar ao topo da Itália

O futebol gosta de duplas dinâmicas. Todo torcedor possui aquela parceria que cita com saudosismo, de jogadores que se combinavam por telepatia dentro de campo ou que se complementavam como metades perfeitas. O Scudetto do Napoli, com toda a dose de carisma ao redor do enredo, oferece uma dessas duplas para ficar na memória. O que Khvicha Kvaratskhelia e Victor Osimhen aprontaram nos últimos meses, afinal, foi magia pura – mesmo sem serem uma dupla, taticamente falando, dentro do trio de ataque. Muitas vezes os dois garantiram juntos as vitórias celestes, assim como tiveram seus momentos de brilho individual. O nigeriano domina a área como poucos centroavantes na atualidade, enquanto o georgiano certamente é dos pontas mais imprevisíveis com a bola grudada aos pés. As nacionalidades podem até sugerir uma mistura improvável. Quem se deleitou com as partidas dos napolitanos, porém, sabe como a história do Scudetto passa necessariamente por ambos – tal qual o gol de empate contra a Udinese, o do título, num chute de Kvara que Osimhen guardou no rebote. Vai ser doloroso escolher alguém para dar o prêmio de melhor do campeonato. Mais justo seria dividir, pela forma como ambos transformaram o time de Luciano Spalletti numa máquina de jogar futebol.

A beleza da conquista do Napoli é coletiva. São os 33 anos da espera de uma cidade inteira, historicamente oprimida na Itália. São as repetidas vezes em que a torcida se frustrou até que chegasse o momento em honra à memória de Maradona. São os muitos jogadores que passaram por Nápoles para que o renascimento de um clube que precisou se reconstruir nas divisões de acesso após falir chegasse a esse ápice. Neste contexto atual, o conjunto também pesa demais à forma como a equipe de Luciano Spalletti tem triunfado. O Napoli é uma ideia de jogo ofensivo que, num elenco que iniciou o campeonato sem tantos astros proclamados, conseguiu se potencializar a partir do trabalho de vários operários juntos. Futebolistas comprometidos estes que, com a taça nas mãos, acabaram se alçando também ao estrelato.

Alex Meret se mostrou um goleiro melhor que a encomenda, numa temporada em que quase Keylor Navas chegou. Giovanni Di Lorenzo arrebentou na lateral direita e foi uma liderança expressa. Mário Rui, longe de ser unanimidade, também brilhou com constância na esquerda. Kim Min-jae foi um verdadeiro colosso no miolo de zaga, um achado, bem acompanhado por Amir Rrahmani. André Frank Zambo Anguissa multiplicou-se no meio, com algumas atuações inacreditáveis, enquanto tinha ao seu lado Stanislav Lobotka e Piotr Zielinski servindo de termômetros à regularidade da equipe. Entretanto, o encantamento tantas vezes recai aos atacantes. Este Napoli campeão tem o seu binômio, os primeiros mencionados mesmo que alguns companheiros mais atrás tenham sido fantásticos. Será o Napoli de Osimhen e Kvaratskhelia.

(Francesco Pecoraro/Getty Images/One Football)

E não que os dois tenham sido os únicos do ataque a decidir. Pelo contrário, apesar de um elenco tantas vezes visto como curto, o Napoli contou frequentemente com gols importantes de jogadores menos visados. Giacomo Raspadori e Giovanni Simeone foram super substitutos em algumas ocasiões – não só na Serie A, mas também na Champions. Embora não tenha se firmado por completo, Eljif Elmas serviu como talismã. Mesmo Hirving Lozano e Matteo Politano, quem entrasse pelo lado direito do ataque e não acompanhasse o ritmo dos outros dois, tiveram suas partidas de destaque. Contudo, Osimhen e Kvaratskhelia foram mesmo de outro mundo.

A potência de Osimhen a torcida em Nápoles já conhecia, mas não com toda essa imposição. O centroavante custou caro, trazido do Lille por €75 milhões, e teve alguns momentos fantásticos em suas duas primeiras temporadas, sobretudo na segunda, quando os gols nas primeiras rodadas até botaram o Napoli na liderança da Serie A. Todavia, o nigeriano repetidamente sucumbiu às lesões. Por vezes pareceu sobrecarregado. Podia ter alguns ídolos napolitanos ao seu lado, mas a equipe sentia como o artilheiro precisava se fazer mais importante. E ele se fez na atual campanha, não apenas por ficar mais tempo saudável, mas também por se tornar mais dominante que nunca dentro da área. Além de encontrar outro protagonista para dividir o brilho individual.

E se alguns até imaginavam que Kvaratskhelia poderia se dar bem na Itália, pela bola que apresentava na seleção georgiana ou nos clubes russos, é difícil encontrar alguém que apostaria nesse impacto todo logo de cara. Não houve o que parasse Kvaradona em seus primeiros meses. Não houve adaptação ao país, à língua, à cultura, ao futebol ou a qualquer outra desculpa que o parasse. Pelo contrário, eram os adversários que precisaram se adaptar ao estilo ziguezagueante de Khvicha, tal qual um craque de outros tempos. Lorenzo Insigne tinha seus recursos, mas não com a dimensão que o novo ponta esquerda ofereceu logo de cara. Pode não ser um napolitano de sangue, mas já virou um filho adotivo da cidade. A habilidade com a bola, afinal, recorda aquele messias nascido na Argentina que resumiu a identidade de Nápoles melhor do que qualquer outro.

(ALBERTO PIZZOLI/AFP via Getty Images/One Football)

Eram dois protagonistas em um só time. Dois candidatos a craque do campeonato. Dois jogadores que decidiam sozinhos partidas e que, mesmo assim, vinham respaldados por um coletivo muito bem azeitado. Com tal conjunção de fatores, olhando em retrospectiva, fica fácil de entender os motivos que fizeram o Napoli nadar de braçada na Serie A – mesmo que ninguém cravasse isso antes da primeira rodada. Sobraram recursos a Luciano Spalletti, que teve diferentes formas de vencer. Em certos momentos, contou com o ponta estonteante que entortava os marcadores até achar o caminho do gol. Em outras horas necessárias, teve o centroavante completo que abriu rombos na muralha adversária. E nas partidas mais brilhantes, a dupla dinâmica se combinou junta para deslumbrar quem estivesse diante da televisão.

O campeonato já começou com o fascínio causado por Kvaratskhelia. Muita gente se hipnotizava com os dribles que aquele jovem de origem um tanto quanto exótica emendava dentro de campo. As primeiras rodadas foram de um fenômeno. O cartão de visitas perfeito para mostrar que o Napoli havia feito uma baita pechincha, ao aproveitar o contrato rompido com o recém-rebaixado Rubin Kazan, por causa da guerra, para desembolsar míseros €10 milhões ao talento do Dinamo Batumi. Talvez tenha sido o negócio do século – e só não é o maior da história do clube porque existiu um Maradona, independentemente de ter custado os olhos da cara, porque valeu cada centavo e ainda se valoriza.

Kvaratskhelia não decidiu todos os jogos, mas não dá para acusar o ponta esquerda de omissão. Ele sempre chamou a responsabilidade para si, e foram muito mais comuns as vezes em que isso beneficiou o Napoli. Os números falam por si: 12 gols, 10 assistências. Pode até ser que o georgiano às vezes abuse do individualismo ou que às vezes não tome a melhor decisão. Mas ele tem uma característica muito especial no futebol, e um tanto quanto em desuso nos últimos tempos: ele transforma um pequeno guardanapo num latifúndio. Prever os dribles de Kvaradona é uma das missões mais difíceis do futebol atual. Sobretudo, porque ele é apto a recortar as distâncias para qualquer lado.

(Francesco Pecoraro/Getty Images/One Football)

Os dois pés são bons. Os dois pés são capazes de provocar cortes desmoralizantes. Os dois pés finalizam com qualidade. Como se prevenir, se tantas vezes o drible de Kvaratskhelia vem sem nem mesmo ele dar pinta no movimento? Ou, se dá pinta, também não dá para cravar para onde vai partir? Nas últimas semanas, alguns adversários até encontraram certos antídotos com a marcação dobrada ou com a antecipação, vide o sucesso de Davide Calabria nos duelos contra o Milan. Apesar disso, são muito mais comuns os joões que se borram de medo quando Kvara parte com a bola dominada. Vide o estrago ocorrido em gols para aplaudir de pé, como no duelo contra a Atalanta no segundo turno, em que três ficaram no vácuo na mesma jogada.

Osimhen, por sua vez, marcou 22 gols nesta Serie A. O centroavante conseguiu manter um fôlego impressionante, não só limitado às boas fases mais curtas das temporadas anteriores. Dá até para dizer que seu começo não foi dos melhores, um tanto ofuscado pelo Kvaradona que surgia, outra vez atrapalhado por problemas de lesão. Dois gols em nove rodadas, quatro delas no estaleiro, não chamavam atenção. Isso até que começasse sua melhor etapa. Um momento avassalador que também se combinou com o período em que o Napoli provou que não seria só fogo de palha.

Durante 17 rodadas consecutivas, as 17 que consolidaram o Scudetto do Napoli, Osimhen quase sempre contribuiu com gols ou no mínimo uma assistência. “Quase” porque em duas partidas o nigeriano passou em branco: exatamente as derrotas para Internazionale e Lazio, até que se machucasse e perdesse a goleada sofrida contra o Milan. Neste intervalo de 17 duelos, em 15 os napolitanos venceram, e em todos estes houve pelo menos uma contribuição do centroavante no placar. Um de seus atos preferidos é tirar a máscara de proteção para comemorar seus gols. Nem a sombra de Gio Simeone ou de Raspadori como alternativas no banco de reservas fizeram o nigeriano relaxar. Longe disso, ele estava disposto a se provar como o melhor de todos. De fato, é um dos melhores centroavantes do mundo na atualidade.

(MARCO BERTORELLO/AFP via Getty Images/One Football)

E isso vai pela infinitude de virtudes de Osimhen. É um jogador muito forte e muito físico, como pede a posição. É alto e tem um jogo aéreo muito perigoso. Alia tudo isso à potência, de quem acelera nas arrancadas e fuzila nos arremates. E sem precisar ser um tosco com a bola, como bem demonstram suas conduções ou então as acrobacias que às vezes tenta. É muitíssimo inteligente em suas escolhas. Sabe se colocar e sabe também servir, se necessário, oferecendo seu pivô na criação. Pode ter faltado um pouco mais a Osimhen apenas nos últimos compromissos, quando voltou de lesão e realmente não jogou o seu melhor. Mas, enquanto estava em seu máximo naquelas 17 rodadas, era pesadelo certo ao zagueiro que fosse o marcar – e precisava sempre ser mais de um.

Jogos foram resolvidos entre a imposição de Osimhen e a imprevisibilidade de Kvaratskhelia. E as maiores vitórias do Napoli tiveram uma fusão dessa magia toda. Nenhuma dupla se entendeu melhor na Serie A. As seis assistências do georgiano para o nigeriano, dentre as cinco grandes ligas europeias nesta temporada, só ficam abaixo das oito de Kevin De Bruyne para Erling Braut Haaland na Premier League e das dez de Lionel Messi para Kylian Mbappé na Ligue 1. Não é pouco. E a irmandade celeste ainda teve um ápice dessas combinações justo na vitória que, muito provavelmente, será lembrada como a mais simbólica desse Scudetto: os 5 a 1 sobre a Juventus no Estádio Diego Armando Maradona.

Aquela noite teve dois gols de Osimhen e um de Kvaratskhelia. Os protagonistas do Napoli trocaram gentilezas. O primeiro gol nasceu num voleio do georgiano, que o nigeriano aproveitou o rebote. O segundo então seria um presente do centroavante, com um passe limpo para o ponta só dar um tapa no canto e guardar o seu. Já o quarto da equipe ofereceu uma inversão de papéis, no que naturalmente era até mais comum: o camisa 77 cruzou com um toque de efeito e o camisa 9 partiu feito uma locomotiva para definir de cabeça. O jogo ofereceu mais, e de mais gente, mas nada com a assinatura da dupla especial. Uma amostra do que se repetiria também em outros triunfos, embora nenhum outro tão sonoro e tão pesado.

(Gabriele Maltinti/Getty Images/One Football)

Esse Napoli, de certa maneira, possui uma aura que lembra o Leicester de 2015/16. São contos de fadas totalmente distintos em suas narrativas, mas que tal fascínio provocado pelos napolitanos só tenha sido visto nos últimos anos com as Raposas. E se também há trajetórias muito distintas entre as duplas principais, na forma notam-se semelhanças entre as parcerias dos protagonistas. Kvaratskhelia é o ponta habilidoso e imparável do calibre que se apresentou Riyad Mahrez há oito anos; Osimhen tem um faro de gol e também uma fome insaciável que recorda a eclosão de Jamie Vardy. O nigeriano somado ao georgiano representam o toque irresistível do time de Luciano Spalletti, assim como era naquelas tardes inspiradas do argelino com o inglês sob Claudio Ranieri.

E isso para não cair na tentação de mencionar a dupla mais venerada de Nápoles, Maradona e Careca, numa cidade que ainda teve o trio Hamsik-Cavani-Lavezzi ou então os pequeninos Mertens e Insigne esmerilhando juntos. Certo é que, independentemente do futuro, Osimhen e Kvaratskhelia já formam um dueto para ser cantarolado pelos napolitanos por décadas e décadas. Até pela forma como ambos se valorizaram nesta temporada, talvez nem fiquem tanto tempo juntos com a camisa celeste. Entretanto, com eles será mais fácil para os partenopei almejarem feitos maiores. Conseguir uma tempestade perfeita como a desta temporada não será simples a Luciano Spalletti nos próximos anos. No entanto, o caminho fica bem mais aberto quando se conta com um centroavante que manda dentro da área e com um ponta que costura qualquer um fora dela. Melhor ainda quando eles se entendem tão bem dentro de campo.

(ALBERTO PIZZOLI/AFP via Getty Images/One Football)
Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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