Acima de tudo, Roberto Mancini foi o técnico que recuperou o orgulho da seleção italiana
A derrota para a Macedônia do Norte não pode ser esquecida, mas os três anos que culminaram no título europeu marcaram Mancini como o responsável por reerguer uma potência

Roberto Mancini pegou todo mundo de surpresa. Da torcida e imprensa à federação. Neste domingo, a seleção italiana afirmou que o técnico responsável por reerguê-la, e também por ficar fora de mais uma Copa do Mundo, decidiu renunciar ao cargo, a cerca de um ano do começo da Eurocopa de 2024. Com compromissos pelas Eliminatórias em setembro, um substituto deve ser anunciado nos próximos dias. Antonio Conte e Luciano Spalletti pintam como favoritos.
“Surpreso e perplexo” foi como o ministro dos Esportes, Andrea Abodi, descreveu a notícia. “O tempo ajudará a entender os motivos dessa saída e o momento (em que ela aconteceu)”, escreveu no Twitter. Porque embora tenha sido uma viagem com turbulências, nenhuma maior do que a perda do amigo e colega Gianluca Vialli, Mancini havia acabado de assumir a coordenação das seleções sub-20 e sub-21 e ainda tinha moral pela maneira como recuperou a Itália, principalmente, claro, pelo título da Eurocopa em 2021.
– A Federação Italiana de Futebol informa que tomou conhecimento da renúncia de Roberto Mancini ao cargo de técnico da seleção italiana, recebida no final da noite de ontem (sábado). Assim se encerra uma página significativa na história da Azzurra, que começou em maio de 2018 e terminou com as finais da Liga das Nações de 2023. No meio dela, a vitória na Euro 2020 (disputada um ano depois por causa da pandemia), conquistada por um grupo em que todos os indivíduos conseguiram formar um time. Tendo em conta os importantes e próximos compromissos pelas Eliminatórias da Euro 2024 (10 e 12 de setembro contra a Macedônia do Norte e a Ucrânia, a FIGC anunciará o nome do novo treinador nos próximos dias – escreveu a federação.
❗️#Mancini ha rassegnato le dimissioni da CT della Nazionale. La FIGC valuterà la migliore opzione per gli Azzurri
Il comunicato ?? https://t.co/Uy56yfLJ2M pic.twitter.com/Qe2dv5CY5x
— FIGC (@FIGC) August 13, 2023
Renovação e alegria
Não foram apenas os resultados que abalaram a alma da seleção italiana. Não me entenda errado. Eles eram bem ruins: fase de grupos na Copa de 2014 no Brasil e uma chocante derrota para a Suécia na repescagem para o Mundial da Rússia. Entre eles, houve um pequeno alento com a ótima campanha na Eurocopa de 2016 sob o comando de Antonio Conte que, no contexto, pode ser mais creditado ao técnico do que ao projeto como um todo – e ainda bateu apenas quartas de final. A Itália não disputaria o maior torneio do mundo pela primeira vez desde 1958. Acima de tudo, porém, o clima era péssimo. O trabalho do técnico Gian Piero Ventura foi criticado com franqueza rara. Problemas de vestiário. Lideranças, como Gianluigi Buffon, Andrea Barzagli e De Rossi, se aposentaram. Ninguém curtia jogar pela Itália.
Roberto Mancini, um dos técnicos mais vitoriosos deste século, havia dado um passo atrás após a segunda passagem pela Internazionale. Estava no Zenit de São Petersburgo e aceitou a empreitada de tentar reconstruir a Azzurra. Para o futebol de seleções, era um treinador excepcionalmente qualificado, por mais que durante toda a carreira tenha sido criticado por ser pragmático, defensivo, ortodoxo. Mas não são características que combinariam perfeitamente com a seleção italiana? Até são, mas ele chegou com outra ideia: queria que os jogadores começassem a se divertir quando defendessem a seleção e, para isso, era necessário que a proposta fosse diferente.
Conseguiu beber da fonte de trabalhos da Serie A que também haviam quebrado com o estereótipo do futebol italiano, como a base deixada por Maurizio Sarri no Napoli, a Atalanta de Gian Piero Gasperini e o Sassuolo de Roberto de Zerbi. Em fevereiro de 2020, disse que gostava de futebol ofensivo, o que foi uma novidade para torcedores de Internazionale e Manchester City. “Eu sei que nós ganhamos quatro Copas do Mundo jogando do modo italiano, mas eu acho que podemos jogar de modo mais ofensivo. Os dias de jogar um futebol defensivo e de contra-ataque acabaram”, afirmou. E àquela altura, ele já havia provado que conseguia colocar isso em prática.
Outra marca da passagem de Roberto Mancini pela seleção italiana foi a renovação. Buscar novos talentos depois do trabalho de Ventura foi uma das prioridades, embora aquela não fosse uma geração tão fraca assim. O ex-treinador da Azzurra também fez um trabalho importante de frequentemente, quase em todas as suas entrevistas coletivas, cobrar que a Serie A desse mais oportunidades para a juventude. E corroborava o discurso com ações porque fez muitas convocações de jogadores que mal haviam sido utilizados por seus clubes no time principal. Recentemente, começou até a mapear possíveis convocações de atletas com outras nacionalidades que tinham passaporte italiano, como o argentino Mateo Retegui, que estreou marcando na Inglaterra em março.
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Do sucesso inesperado ao fracasso – também inesperado
A Era Mancini começou em maio de 2018 com vitória em amistoso contra a Arábia Saudita. Os primeiros compromissos foram irregulares. Perdeu de França e Portugal, empatou com Holanda e Polônia. Começava a esboçar uma Itália no 4-3-3, com um meio-campo leve e propositivo e pontas rápidos e habilidosos. Em outubro daquele ano, ficou no 1 a 1 com a Ucrânia. Seria o começo de uma invencibilidade que duraria três anos e 37 jogos. A maior sequência da história do futebol de seleções. Ela foi alcançada com atuações exuberantes e uma campanha dominante nas Eliminatórias para a Euro 2020 – que seria disputada em estádios de vários países, incluindo o Olímpico de Roma.
Quando a competição começou, um ano depois do previsto por causa da pandemia, a Itália estava entre as candidatas, mas não era franca favorita. Atuou como uma, porém, misturando a segurança de Donnarumma no gol, a liderança de Chiellini e Bonucci na defesa, as subidas potentes de Spinazzola, um meio-campo qualificado com Jorginho, Verratti e Barella e a contundência de Federico Chiesa, Lorenzo Insigne e Domenico Berardi.
Alguns desses jogadores estiveram disponíveis para a administração anterior, outros não, mas, com Mancini, todos atuaram como um time. A busca por um jogo ofensivo foi importante, mas o título da Itália foi construído principalmente em cima de um clima de irmandade e um ambiente em que claramente todos queriam estar. Bastava olhar para a intensidade dos jogadores cantando o hino ou para as brincadeiras que pipocavam nas redes sociais. Chiellini chegou a dizer que estava disputando a Eurocopa com a “mente leve, curtindo o momento e uma faísca de loucura”.
Era um contraste claro com a passagem anterior e funcionou. A Itália passeou pela fase de grupos e soube navegar o mata-mata, com uma vitória sofrida contra a Áustria e outra impositiva sobre a Bélgica nas quartas de final. Precisou se adequar a uma dinâmica diferente contra a Espanha e resistiu até prevalecer nos pênaltis. E contra um Wembley lotado por torcedores ingleses que esperavam o fim de um longo jejum de títulos, foi o italiano que caiu: a primeira Eurocopa desde 1968. A Itália estava de volta e, principalmente, o orgulho de defender a seleção italiana estava de volta.
O que veio depois foi um pouco mais chato. A Itália, ainda comemorando sua conquista, emendou empates com Bulgária e Suíça pelas Eliminatórias da Copa do Mundo. No segundo jogo contra os suíços, Jorginho desperdiçou um pênalti que quase garantiria os italianos no Catar. Tudo ficou para a última rodada, e a Itália precisava vencer a Irlanda do Norte e ainda brincar de saldo de gols com a Suíça. Essa segunda parte se tornou irrelevante porque o zero não saiu do placar em Belfast. Novamente na repescagem veio a grande tragédia: a Itália perdeu da Macedônia por 1 a 0 e, pela segunda vez consecutiva, não se classificou ao Mundial.
Como era de se esperar, o fracasso nas eliminatórias afetou um pouco o clima. A história de Roberto Mancini na seleção italiana será dividida entre a ausência em mais uma Copa e o sucesso na Euro. Você pode escolher em qual dos dois prefere focar. Sem esquecer o primeiro, eu fico com o segundo.