Uma tragédia em cinco atos: o que está acontecendo com o Liverpool?

O divisor de águas do Liverpool é muito claro. Em 22 de março deste ano, o time de Brendan Rodgers recebeu o Manchester United, em Anfield, com chances de se classificar à próxima Champions League, e foi derrotado por 2 a 1, com Steven Gerrard expulso e uma atuação abaixo da que se esperava. Depois do clássico, entrou em uma sequência de 18 partidas, em que venceu apenas cinco, empatou outras cinco e perdeu oito. Resultados que representam 37% dos pontos, um aproveitamento um pouco menor do que o que rendeu a 13ª posição para o West Brom na última edição do Campeonato Inglês.
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Na última quarta-feira, aconteceu o 19º jogo. O segundo maior campeão da Inglaterra jogou contra o Carlisle United, pela Copa da Liga Inglesa, com um time próximo do melhor que Rodgers tem à disposição (Sturridge e Mignolet ficaram fora, Coutinho entrou no segundo tempo), e precisou da disputa de pênaltis para avançar à próxima fase. Quando um time que investiu € 220 milhões nos últimos dois anos não consegue sair do 1 a 1 contra a pior defesa da quarta divisão, em casa, depois de dar 47 chutes a gol, chega a hora de parar um pouco e pensar: o que está acontecendo com o Liverpool?
Não precisa chutar mais, precisa chutar melhor

Começando pela parte técnica e mais óbvia de todas: não adianta chutar para o gol de qualquer jeito. Contra o Carlisle United, teve aproveitamento de 2% nas finalizações, que na melhor das hipóteses é 2% a mais que qualquer time amador conseguiria. Fosse um problema isolado, era o caso de apenas ficar alerta, mas na Premier League os números de finalização do Liverpool também são ruins.
Nesses seis primeiros jogos, foram, em média, 14.2 chutes por partida, a sexta marca da liga, e um pouco inferior à da temporada passada, quando o time chutou 15.5 vezes por jogo. O problema: dez desses chutes, tanto com os números atuais quanto com os do último campeonato, não vão em direção ao gol. O Liverpool precisa arrematar três vezes para levar perigo ao goleiro adversário. Como referência, na temporada passada, apenas Manchester City (11.6) e Queen Park Rangers (10.2) desperdiçaram mais chutes que o Liverpool (10.4).
O problema crônico

Não é um problema novo, está presente no trabalho de Brendan Rodgers desde o primeiro dia de aula, mas a fragilidade defensiva fica mais séria se o ataque não compensa os gols que Mignolet leva. O goleiro nem está tão mal quanto no começo da temporada passada, mas a zaga continua cometendo muitos erros. Ela não foi vazada nas três primeiras rodadas, mas voltou rapidamente ao normal contra o West Ham, quando Manuel Lanzini comandou a vitória por 3 a 0. Gomez falhou no primeiro gol, e Lovren, nos outros dois.
O gargalo está no sistema, que deixa mesmo os zagueiros desprotegidos, mas também em nomes. Gomez veio do Charlton e basicamente quebra um galho na lateral esquerda porque Alberto Moreno tem sérios problemas defensivos. Skrtel e Sakho são zagueiros tão bons quanto lentos e sofrem demais tendo que correr atrás dos adversários. Isso geralmente fica claro em botes desesperados causados por falhas de posicionamento. O Liverpool sofreu 48 gols em 38 partidas na última temporada, a segunda pior defesa entre os sete primeiros.
A transição nunca termina

Se você quiser definir outro divisor de águas recente para o Liverpool, o primeiro, tem que lembrar a saída de Suárez. Nas duas primeiras temporadas em Anfield, Brendan Rodgers montou aquele time que encantou e quase foi campeão da Premier League. Quase conseguiu cumprir as duas promessas que havia feito à direção: jogar um futebol bonito e ganhar títulos. Mas, então, o melhor jogador foi vendido. Vieram meia dúzia de promessas com potencial, e começou a transição, que era natural diante daquele cenário.
O problema é que já faz mais de um ano que Suárez trocou a Inglaterra pela Espanha, e a sensação é que o Liverpool continua nesse processo. Gerrard, o capitão, e Sterling, a principal revelação, também foram embora. O novo líder, Jordan Henderson, está fora por dois meses, e Sturridge acaba de voltar à boa forma. Mais meia dúzia de apostas chegaram ao elenco, e Rodgers não consegue mostrar o caminho que está seguindo. É difícil perceber quando a transição acaba se ninguém sabe aonde se quer chegar.
E isso é o que mais depõe contra Rodgers. O Liverpool não evolui ou evolui devagar demais, e algumas vezes passa a impressão de que está dando passos para trás. Sintoma de duas situações difíceis de reverter: a dificuldade para contratar jogadores prontos e as frequentes mudanças táticas, muitas vezes emergenciais, pelas quais o time passa.
O ciclo financeiro

Os prejuízos financeiros que um clube com grandes aspirações na Europa sofre quando fica fora de uma edição da Champions League vão além de menos dinheiro entrando no caixa. É também mais difícil contratar jogadores, porque todos querem disputar o principal torneio de clubes do continente. Resta ao excluído duas opções: pagar (muito) mais ou apostar em jogadores periféricos com potencial de se tornarem estrelas.
A situação do Liverpool agrava-se porque ficou vários anos fora da Champions League, e quando voltou, não passou da fase de grupos. Sempre adotou a segunda estratégia e teve algum sucesso com ela, descobrindo talentos como Suárez, Sturridge e Coutinho. Quase nunca, porém, as apostas chegam comendo a bola, e o discurso é sempre o da paciência para que esses talentos se desenvolvam, adaptem-se e evoluam. O que intensifica a transição que nunca termina.
Reforços mais ou menos dessa linha foram Christian Benteke e Roberto Firmino, mas a tolerância está se esgotando. Os torcedores perguntam-se se, ao invés de gastar mais de € 40 milhões em cada, não seria melhor gastar € 60 milhões em alguém mais estabelecido. Seria uma alternativa, também sem nenhuma garantia de dar certo, mas continuar fazendo a mesma coisa esperando resultados diferentes é a definição de loucura.
Rodgers tem ideias demais ou na verdade elas acabaram?

O primeiro time de Rodgers no Liverpool, na temporada 2012/13, foi uma tentativa de implementar o mesmo sistema que havia funcionado no Swansea, com posse de bola e controle do jogo. Resultado: sétima posição. Não deu certo. O técnico adaptou-se ao que tinha em mãos. Com os velozes Sturridge, Sterling, Suárez e Coutinho, montou um time de rápida transição e bola mais longas, muito mais vertical e agressivo. Resultado: segundo lugar. Deu muito certo.
Suárez foi curtir o sol de Barcelona e Sturridge passou a temporada inteira machucado. O Liverpool começou muito mal a temporada seguinte, caiu na fase de grupos da Champions League e foi escorregando pela tabela. Até chegar dezembro, e Rodgers mudar o esquema para três zagueiros, com Emre Can muitas vezes compondo o trio. O meio-campo ficou mais sólido e deu liberdade para Lallana e Coutinho aparecerem nos espaços vazios, e para Sterling infernizar a defesa adversária.
Funcionou mais uma vez, e vieram 13 jogos invictos pela Premier League e a semifinal da Copa da Inglaterra. Mas duas derrotas seguidas em clássicos, para Manchester United e Arsenal, corromperam o espírito da equipe, e os resultados pioraram. Mais uma vez, o começo de campanha é muito ruim. O Liverpool venceu o Stoke City graças a um golaço de Coutinho aos 43 minutos do segundo tempo, o Bournemouth, também por 1 a 0, e só.
Rodgers não pode ser culpado de preguiça porque segue em busca de soluções. Começou com um 4-2-3-1, com Milner e Henderson na retaguarda do meio-campo. Inseriu Lucas Leiva contra o Arsenal, e mudou para o 4-3-3, com Firmino, Benteke e Coutinho. Contra o Bordeaux, pela Liga Europa, voltaram os três zagueiros, o sistema das últrimas três partidas, e todas elas tiveram o placar de 1 a 1.
A busca obsessiva pela melhor formação é uma qualidade, mas o Liverpool não pode começar a conquistar pontos apenas em dezembro todos os anos. Na temporada passada, conquistou 24 pontos no primeiro semestre e 38 no segundo. A campanha do vice-campeonato foi parecida, embora em menor escala: 36 pontos antes de janeiro, e 48 a partir do Ano Novo.
Quando ajustes de percursos são constantemente necessários, o questionamento é se o motorista sabe mesmo qual é o melhor caminho. Por isso, não espanta que a diretoria do Liverpool esteja ponderando colocar outra pessoa atrás do volante.