Francis Lee mudou a história do Manchester City e quase atrapalhou o Brasil em 70
Um dos maiores ídolos da história do Manchester City, decisivo no timaço do final dos anos 1960, Francis Lee faleceu aos 79 anos
A história do Manchester City possui grandes marcos. Momentos em que o clube se via estagnado, antes de um estalo que o levou a grandes glórias. E a idolatria de Francis Lee entre os celestes se explica pelo estopim que o craque ajudou a provocar em Maine Road durante o final dos anos 1960. A contratação de Franny fez os Citizens deslancharem rumo às conquistas do Campeonato Inglês, da Copa da Inglaterra e da Recopa Europeia em temporadas consecutivas. O artilheiro anotou gols fundamentais em todas as campanhas vitoriosas, eternizando-se como uma verdadeira lenda do clube. Lee também é um prata da casa célebre do Bolton, enquanto já veterano foi campeão pelo Derby County. Ainda teve uma passagem expressiva pela seleção inglesa, inclusive cruzando o caminho do Brasil em 1970. Um atacante singular na história do futebol da Inglaterra, que deixa saudades ao falecer nesta semana, vítima de um câncer aos 79 anos.
O prodígio do Bolton
Francis Lee nasceu em Westhoughton, Lancashire, e iniciou sua carreira num dos clubes mais tradicionais da região, o Bolton. Tudo aconteceu de maneira muito precoce para o atacante, que fez sua estreia como profissional em novembro de 1960, quando tinha apenas 16 anos. Ironia do destino, sua primeira partida aconteceu exatamente contra o Manchester City. E o novato logo mostrou a que veio, com um dos gols na vitória por 3 a 1 dentro de Burnden Park. Naquela estreia, Franny compôs o ataque ao lado de Nat Lofthouse, com quem aprenderia bastante. O veterano já tinha sido campeão da Copa da Inglaterra e eleito o melhor do país pelos Whites, enquanto disputou a Copa de 1954 com a seleção. É um personagem tão grande que possui até estátua na casa dos Wanderers.
Sob a tutela de Lofthouse, 19 anos mais velho, Francis Lee ascendeu no Bolton. O atacante ganhou seu primeiro contrato profissional em 1961. Já em 1962/63, o adolescente se firmou como o artilheiro dos Whites na primeira divisão – feito que repetiria também na temporada 1963/64. Apesar da tradição, a equipe não vivia mais os bons momentos dos anos 1950 e transitava na metade inferior da tabela da Football League. Tanto é que os gols de Franny não impediram o rebaixamento em 1963/64. O jovem atacante continuou fazendo miséria no Bolton pela segundona, por mais que o time batesse na trave na tentativa do acesso.
A carreira de Francis Lee virou do avesso na temporada 1967/68. O atacante de 23 anos viveu um momento esplendoroso pelo Bolton, com direito a gols em sete jogos consecutivos pela segunda divisão do Campeonato Inglês. Naquele momento, estava claro como o talento do jovem era grande demais para a estagnação dos Wanderers. Assim, ele aceitaria uma proposta para se transferir ao Manchester City em setembro de 1967. O novato se transformava na transferência recorde dos Citizens, sob a bagatela de £60 mil. Enquanto isso, deixaria saudades no Bolton como um dos pratas da casa mais queridos que passaram pelo clube. Foram 106 gols em 210 aparições
O herói do Manchester City
Francis Lee estava predestinado a fazer história no Manchester City. O atacante assinou com um clube em ascensão, que havia conquistado o acesso na segunda divisão do Campeonato Inglês em 1965/66. Ainda assim, o 15° lugar na temporada 1966/67 não explicitava totalmente o estrondo que os celestes provocariam, sob as ordens da dupla formada pelo técnico Joe Mercer e pelo inventivo assistente Malcolm Allison. A contratação de Lee é considerada um ponto de virada na história do City. “Nós achamos que estamos começando a montar um bom time. Só nos falta um jogador, e acreditamos que esse jogador seja você”, declarou Joe Mercer, na chegada do reforço. Não estava errado. De certa maneira, Lee virou o que Sergio Aguero seria décadas depois para o clube.
O Manchester City, afinal, já conquistou o Campeonato Inglês de 1967/68 – contra todos os prognósticos. A chegada de Francis Lee foi essencial para os celestes darem um salto na tabela e se consolidarem como candidatos ao título. Conseguiram um troféu que não faturavam desde 1936/37, num jejum de 31 anos na liga nacional. Franny anotou 16 gols dos Citizens na campanha. Entre eles, um na essencial vitória por 3 a 1 no clássico contra o Manchester United, durante o segundo turno. Porém, nenhum outro se compara ao gol que botou a faixa no peito do City na rodada final. Os celestes fizeram um maluco 4 a 3 sobre o Newcastle em St. James' Park e o quarto tento, justamente o da taça, pintou numa definição de Lee aos 18 do segundo tempo.
Francis Lee tornava-se de imediato um herói eterno do Manchester City, mas num timaço de vários nomes célebres na história do clube. Figuras como Alan Oakes, Neil Young e Tony Book fazem parte do Hall da Fama do City. De qualquer maneira, os dois grandes sócios de Franny eram outros nomes, com quem formava uma “Santíssima Trindade” do clube: Colin Bell e Mike Summerbee. Enquanto Bell era o meio-campista completo que conduzia o time, Summerbee era o ponta técnico e raçudo que providenciava passes açucarados. Lee os complementava como um atacante brilhantemente dinâmico e repetidamente decisivo, que também misturava doses de catimba e malandragem. Daqueles artilheiros canastrões e explosivos, amados pela própria torcida, mas odiados pelos outros torcedores e especialmente pelos zagueiros.
Os feitos do Manchester City não se restringiram à conquista do Campeonato Inglês. Em 1968/69, os Citizens levaram a Copa da Inglaterra depois de 13 anos de jejum. Francis Lee seria igualmente decisivo na campanha, em especial pelo gol que valeu a classificação nas quartas de final contra o Tottenham. Já em 1969/70, os Citizens conquistaram a Recopa Europeia. Lee também foi destrutivo no feito continental, com direito ao gol que selou o título na final contra o Górnik Zabrze. Cobrou o pênalti no triunfo por 2 a 1 e ainda garantiu uma coleção de grandes jogadas para atordoar a defesa polonesa. Franny, que tinha sido o artilheiro do City na temporada de 1968/69, repetiu o feito em 1969/70 e ainda foi eleito o melhor jogador do clube. Era essa a sua grandeza.
Atacante da seleção
A fase de Francis Lee era tão boa que, a partir de 1968, ele passou a ser convocado para a seleção da Inglaterra. Não teve problemas para se encaixar como titular no ataque dos então campeões do mundo e conquistou a confiança do técnico Alf Ramsey, tomando o lugar de Roger Hunt. Foram seis gols ao longo da preparação para a Copa de 1970. Franny chegou com moral ao México e atuou ao lado de Geoff Hurst na linha de frente dos Three Lions. Teria uma excelente estreia no Mundial, entre os destaques na vitória sobre a Romênia por sua astúcia e mobilidade, furando a retranca adversária.
A partida mais famosa de Francis Lee pela seleção da Inglaterra, de qualquer maneira, é o encontro com o Brasil pela segunda rodada. A história daquele duelo poderia ser bem diferente por um lance de Franny, que infernizava os zagueiros brasileiros com sua velocidade. Depois que Pelé exigiu o famoso milagre de Gordon Banks, Lee também desferiu uma cabeçada mortal do outro lado do campo. A defesa de Félix naquele arremate não é tão impressionante, mas foi até mais decisiva – e sua mais difícil ao longo de toda a campanha. O goleiro frustrou o inglês e permitiu que Jairzinho selasse aquele triunfo por 1 a 0. Francis Lee ficaria em campo até os 18 do segundo tempo, substituído pouco depois do tento da Canarinho. Décadas depois, o veterano ainda dizia que o desfecho poderia ter sido outro se ele não tivesse saído.
Fato é que, reserva contra a Tchecoslováquia, Francis Lee depois retomou a titularidade e não evitou a eliminação contra a Alemanha Ocidental nas quartas de final da Copa do Mundo. O atacante ainda manteve a boa forma na seleção durante a sequência do ciclo seguinte. Sua despedida da equipe nacional aconteceu em 1972, durante outro trauma da Inglaterra contra os alemães. O Nationalelf venceu os Three Lions por 3 a 1 dentro de Wembley, em confronto que valia vaga na fase final da Eurocopa. Lee até anotou o gol dos ingleses, seu décimo em 27 aparições pela equipe. Porém, sequer entraria em campo na volta, um 0 a 0 em Berlim que classificou os germânicos rumo ao título.
Se a passagem de Francis Lee pela seleção da Inglaterra se limitou a uma Copa do Mundo, pelo Manchester City o atacante faria mais. Os títulos minguaram na sequência da década de 1970, mas não necessariamente os gols de Franny. O atacante foi o artilheiro do time também nas temporadas 1970/71, 1971/72 e 1973/74. O auge ficou para os 33 gols anotados no Campeonato Inglês de 1971/72, que renderam a artilharia do torneio para Lee. Pouco importava que muitos desses tentos viessem de pênaltis, quase todos cavados pela malandragem do veterano. Outra marca honrosa de Lee foi o recorde de gols no Dérbi de Manchester. Balançou as redes dez vezes, numa marca que seria batida somente quatro décadas depois, por Wayne Rooney.
Outra vez campeão e o empresário
Francis Lee deixou o Manchester City em 1974. Foram 148 gols em 330 partidas, sétimo maior artilheiro da história celeste. Àquela altura, o veterano de 30 anos se uniu ao Derby County, treinado por Dave Mackay, num negócio que custou £110 mil. A adição de Franny à linha de frente dos Rams seria novamente impactante: ele chegou para conquistar logo de cara mais um título no Campeonato Inglês, em 1974/75. Foram 12 gols em 34 partidas, formando uma linha de frente incensada ao lado de Kevin Hector e Roger Davies. Entre os tentos de Lee, ele deixou sua marca na vitória por 2 a 1 sobre o Manchester City em Maine Road. Também garantiu um triunfo essencial contra o Liverpool no Baseball Ground, resultado importante pela disputa com os Reds no topo da tabela.
A estadia de Francis Lee no Derby County não seria tão longa. O atacante ficou no Baseball Ground apenas por mais uma temporada, em 1975/76. A equipe terminou na quarta colocação do Campeonato Inglês e sucumbiu nas oitavas da Champions, contra o Real Madrid. Franny seria mais lembrado por uma espetacular briga com Norman Hunter, seu companheiro de seleção, num jogo contra o Leeds United. Aos 32 anos, Lee resolveu pendurar as chuteiras de maneira relativamente precoce, quando já tocava negócios em diferentes áreas – e ganhava mais dinheiro como empresário do que como jogador de futebol. A prova de que o atacante ainda estava em forma veio em sua última partida: anotou dois gols nos minutos finais da goleada por 6 a 2 sobre o Ipswich Town. Foram 30 tentos totais em 80 aparições pelo Derby County. Ao todo, assinalou 229 gols pelo Campeonato Inglês, com 500 partidas cravadas entre primeira e segunda divisão.
Depois de pendurar as chuteiras, Francis Lee tomou caminhos curiosos. Continuou ligado ao esporte e resolveu jogar críquete, com certo destaque local na modalidade. Também foi um vitorioso treinador de cavalos de corrida. Além disso, ganhou muito dinheiro com diferentes empresas, sobretudo como dono de uma fábrica de papel higiênico, famosa em todo o Reino Unido. Já o elo com o Manchester City se renovou em 1994, quando comprou £3 milhões em ações do clube e se tornou proprietário dos celestes. Seu retorno gerou grande empolgação entre os torcedores, enquanto Lee fazia promessas grandiosas. Todavia, os resultados em campo não vieram e o veterano saiu de cena da presidência em 1998, depois de ter sido rebaixado à segunda divisão e de deixar os Citizens à beira da terceirona. Suas ações seriam totalmente vendidas apenas em 2007, quando Thaksin Shinawatra chegou ao comando dos mancunianos.
A desastrosa passagem como dirigente não manchou a imagem de Francis Lee como jogador. Tanto é que a lembrança do craque prevalece, acima das desventuras vividas como cartola. Não à toa, existe um projeto em andamento para eternizá-lo como estátua no Estádio Etihad, ao lado de seus eternos companheiros Mike Summerbee e Colin Bell. Será assim que o ex-atacante permanecerá lembrado, após falecer nesta segunda-feira, vítima de um câncer. Poucos podem dizer que transformaram a história de um clube. Franny conseguiu fazer isso com o City, e sem que uma fortuna fosse gasta para impulsionar um crescimento irreal ao clube. Foi o herói em outros moldes de bonança.