Bobby Charlton, o jovem que sobreviveu para ser um imortal do Manchester United e da Inglaterra
Sobrevivente de Munique, campeão europeu, campeão mundial e uma lenda inigualável, Charlton morreu neste sábado aos 86 anos
Bobby Charlton era um jovem dando seus primeiros passos no futebol profissional que precisou lidar com a culpa da sobrevivência quando seus colegas morreram no acidente aéreo que golpeou a alma do Manchester United. Era um dos líderes da reconstrução sob o comando de Matt Busby, parte de um dos maiores tridentes da história, líder do primeiro título inglês na Copa dos Campeões da Europa. Era um campeão do mundo que marcou os dois gols da vitória sobre Portugal que colocou a Inglaterra na decisão da Copa do Mundo que sediou, e venceu, em 1966. Um detentor da Bola de Ouro, um embaixador do clube que defendeu por quase 20 anos e uma pessoa amada e respeitada por todos.
Bobby Charlton era uma lenda insuperável do Manchester United e do futebol inglês que morreu neste sábado aos 86 anos.
– O Manchester United está em luto após a morte de Sir Bobby Charlton, um dos maiores e mais amados jogadores da história do nosso clube. Sir Bobby era um herói para milhões de pessoas, não apenas em Manchester ou no Reino Unido, mas em qualquer lugar onde futebol é jogado ao redor do mundo. Era admirado tanto pelo seu espírito esportivo e integridade quanto pelas suas incríveis qualidades como jogador. Sir Bobby sempre será lembrado como um gigante do esporte – disse o United, em comunicado.
A man that truly embodied the values of Manchester United.
Thank you for everything, Sir Bobby — you'll never be forgotten 🙏❤️ pic.twitter.com/ley2YMLTpJ
— Manchester United (@ManUtd) October 21, 2023
Um aeroporto em Munique
Matt Busby recebeu a extrema-unção. Duas vezes. E quando se recuperou, precisou encarar o pesar da morte de mais de uma dezena de colegas no acidente de avião do Manchester United em um aeroporto cheio de neve em Munique. O elenco retornava de uma partida de quartas de final da Copa dos Campeões da Europa contra o Estrela Vermelha. Um empate por 3 a 3, com dois gols de Bobby Charlton, outro sobrevivente, que escapou com ferimentos leves. O desastre marcou o Manchester United. E o fim de um time incrível.
Os Busby Babes são tanto uma história do que poderia ter sido quanto do que realmente foi. O clube que se ergueu na era Premier League como o mais forte do país em cima do pacotão de jovens de 1992 teve outro nos anos cinquenta. Naquela época, afinal, apenas o campeão inglês disputava a Copa dos Campeões da Europa, e o Manchester United havia conquistado o direito com o bicampeonato entre 1955 e 1957.
Charlton participou apenas do segundo. Como tantos jogadores da sua época, e das que viriam em seguida, era da classe trabalhadora, filho de um mineiro de Ashington, ao norte de Newcastle. O seu destino seria outro. Chegou às categorias de base do Manchester United em 1953 e estreou no time principal três anos depois, mas passaria a aparecer com regularidade apenas na temporada 1956/57. Contribuiu com 10 gols em 14 partidas pela liga inglesa, ainda um garoto tentando se encaixar.
Sinal da força daquele time relativamente jovem – e por isso o apelido – é que a Tríplice Coroa passou perto. A Copa da Inglaterra de 1957 escapou em derrota por 2 a 1 para o Aston Villa, e a primeira campanha do Manchester United na Copa dos Campeões terminou com derrota para o Real Madrid nas semifinais. A segunda contou com vitórias sobre Shamrock Rovers e Dukla Prague, antes de encarar o Estrela Vermelha em Old Trafford. O placar de 2 a 1, com gol de Charlton, significava que os Red Devils precisavam retornar de Belgrado apenas com empate para chegar à semifinal. Conseguiram o empate.
O avião parou na Alemanha para reabastecer. Nevava. As duas primeiras tentativas de decolar foram mal sucedidas e, após a terceira, o avião caiu. Foram 23 mortes, incluindo oito jogadores do time de Busby, e as suas idades deixam claro por que eram chamados de bebês: Geoff Bent (25 anos), Roger Byrne (28), Eddie Colman (21), Duncan Edwards (21), Mark Jones (24), David Pegg (22), Tommy Taylor (26) e Liam Whelan (22). Além deles, faleceram três funcionários do clube, oito jornalistas, dois tripulantes, um agente de viagem e um torcedor amigo de Matt Busby.
A quantidade seria maior, não fossem os esforços de Harry Gregg, o ex-goleiro que encarou os destroços flamejantes do avião para salvar quem conseguisse. Resgatou o jogador Dennis Viollet. Um bebê (de fato) de 20 meses e a sua mãe grávida. E resgatou Bobby Charlton. Duas semanas depois, manteve a sua meta intacta em uma vitória por 3 a 0 sobre o Sheffield Wednesday porque o futebol é uma completa loucura às vezes e o Manchester United teve que terminar a temporada como se nada tivesse acontecido. Naturalmente, não passou pelo Milan nas semifinais europeias e venceu apenas uma rodada do Campeonato Inglês depois do desastre.
– Mesmo agora… ainda me toca todos os dias. Às vezes eu sinto bem de leve, uma mera pincelada em um dia de bom humor. Às vezes toma conta de mim com terríveis lamentação e tristeza, e culpa de que eu sobrevivi e consegui tanta coisa. O desastre aéreo de Munique está sempre aqui, sempre um fator que nunca pode ser descartado – escreveu Charlton, em sua autobiografia lançada em 2008.
– Eu simplesmente tive sorte e estava sentado no lugar certo – continuou, em entrevista a um documentário da BBC em 2017 – Nós nunca saímos do chão. Batemos em uma casa e em outros obstáculos. Foi um pesadelo. Quando chegamos ao hospital, eu estava reclamando e delirando. Eu apenas não conseguia entender. Os médicos me deram uma injeção na nuca e eu desmaiei. Não acordei até a manhã seguinte. Um rapaz alemão estava lá e tinha um jornal. Ele tinha uma lista de todos os jogadores e leu o nome deles e, se eles estivessem vivos, ele dizia ‘sim’. Se estivessem mortos, dizia ‘não’.
A Santíssima Trindade do Manchester United
O acidente foi em 6 de fevereiro. Em 4 de abril, Charlton não apenas já estava jogando, como havia até marcado em um empate com o Sunderland. Porque a vida continuou, talvez rápido demais, depois de um episódio tão traumático. Como seria a década de 1960 do Manchester United se aquele time tivesse recebido permissão do destino para crescer e se desenvolver junto é um exercício de imaginação que o torcedor deve ter feito várias vezes. A realidade é que foi um período de reconstrução.
O segundo lugar em 1958/59 foi milagroso. O Manchester United sofreu nos quatro anos seguintes. Embora não fosse tanto a sua fazer gols, Charlton foi artilheiro de duas temporadas pós-Munique, mas aquele vice-campeonato foi uma exceção. Ficou preso entre o meio da tabela e a parte de baixo, correndo até risco de rebaixamento em 1962/63. Salvou-se com apenas três pontos de folga, no mesmo ano em que conquistou a Copa da Inglaterra, o primeiro sinal concreto de recuperação depois do desastre.
Além do trabalho meticuloso de um técnico da qualidade de Busby, o que impulsionou o Manchester United de volta às glórias foi a reunião de três talentos excepcionais. O dia 18 de janeiro de 1964 foi a primeira vez que Bobby Charlton, Denis Law e George Best foram titulares ao mesmo tempo. Todos marcaram em uma vitória por 4 a 1 sobre o West Brom. Law, aliás, faria 46 gols naquela temporada e se tornaria o primeiro jogador do clube a ganhar a Bola de Ouro da revista France Football. Os outros dois também a receberiam nos anos seguintes por feitos diferentes.
O Manchester United retornou de vez ao conquistar o seu sexto título inglês em 1964/65. Significava o passaporte para outra Copa dos Campeões da Europa, para outra derrota nas semifinais e, por crueldade do destino, outra viagem a Belgrado. O obstáculo por uma vaga na decisão seria o Partizan. A partida foi realizada no mesmo estádio daquela de 1958, e os donos da casa venceram por 2 a 0. Não dava, claro, para subestimar o peso emocional.
O United não conseguiu ir além de uma vitória pelo placar mínimo em Old Trafford e foi eliminado. A derrota levou Busby às lágrimas e a uma notória declaração em que disse: “Nós nunca ganharemos a Copa dos Campeões agora”. Nunca, em uma longa e brilhante carreira, Matt Busby esteve tão errado.
O Manchester United foi apenas quarto colocado no Campeonato Inglês enquanto aquela campanha decorria, mas voltou a ser campeão na temporada seguinte. Estava de volta à Copa da Europa e desta vez superou a barreira das semifinais, com uma simbólica vitória sobre o Real Madrid. Por outra ironia do destino, a primeira chance de um time inglês de conquistar a Europa foi marcada para Wembley, e a torcida local pode ver com os próprios olhos o fim improvável e apoteótico daquela história.
Charlton uma vez disse a um jornalista do Guardian que nunca se imaginava um goleador, era um “jogador de meio-campo ou um ponta”. E realmente, 249 em 758 jogos não é uma média tão alta, embora tenha perdurado como o recorde do Manchester United até Wayne Rooney superá-lo em 2017. Mas ele tinha o talento de fazer os gols certos. O ditado era que, se não era o maior goleador, Charlton marcou alguns dos maiores gols.
Como o que abriu o placar contra o Benfica, aos oito minutos, com uma rara cabeçada. Jaime Graça, porém, empatou aos Encarnados, e Alex Stepney teve que fazer uma defesa fundamental contra ninguém menos do que Eusébio para forçar a prorrogação.
E o que começou com Bobby Charlton com ele terminou, apenas dez anos depois do sonho do título europeu e tantos outros morrer na pista de um aeroporto de Munique. George Best e Brian Kidd abriram 3 a 1 para o Manchester United, mas foi o capitão Charlton quem marcou o último gol da vitória por 4 a 1. A obsessão de Matt Busby estava entregue. A reconstrução estava concluída. As emoções afloravam.
A maioria dos jogadores, segundo o goleiro Stepney, foram diretamente abraçar Charlton e Bill Foukes, outro sobrevivente de Munique que continuava no elenco, quando a partida terminou. Nada planejado, escreveu no Guardian, “acho que o subconsciente fez com que todos pensassem daquela maneira”.
– Para ser honesto, não posso dizer com precisão o que sentia no momento – escreveu Charlton em sua autobiografia – Cansaço, certamente. Eu me lembro o que significava abraçar companheiros como Bill Foulkes, Nobby Stiles e Shay Brennan, que estiveram envolvidos por tanto tempo, e especialmente Bill porque, como eu, estivera naquela pista nevada e viu nosso time, nossos amigos, serem dizimados. Eu sei que havia uma compreensão de que algo havia se encerrado. Algo que dominara nossas vidas por tanto tempo. Eu caminhei aos vestiários e virei duas garrafas de cerveja rapidamente, uma depois da outra.
George Best ganhou a Bola de Ouro por aquela temporada. Bobby Charlton já havia recebido a sua por ter feito uma outra coisinha importante também.
Campeão do mundo
“A Inglaterra conseguiu nos derrotar em 1966 apenas porque Bobby Charlton foi um pouco melhor do que eu”.
Essa frase teria significados diferentes dependendo de quem a falasse. Como foi Franz Beckenbauer, um dos maiores jogadores de todos os tempos, significa muita coisa.
A Inglaterra sediou a Copa do Mundo de 1966 e duas horas de bola rolando haviam se passado sem que marcasse um gol. O empate por 0 a 0 com o Uruguai não havia deixado boas impressões, e o placar continuava zerado na segunda rodada, contra o México, quando Charlton pegou a bola no círculo central e foi avançando em zigue-zague, passando-a de pé em pé – porque, além de tudo, era ambidestro. De fora da área, soltou uma bomba de perna direita, um golaço, a faísca que gerou a combustão da campanha inglesa.
– Eu marcava muito assim graças ao assistente de Sir Matt, Jimmy Murphy, que me dizia: “Não olhe para o goleiro, apenas chute a coisa e mantenha baixo, e se você não souber para onde vai, o goleiro também não saberá”. Tantos gols que eu marquei foram perto do goleiro, mas eles ficavam surpresos pelo chute, então conseguiam defender. Jimmy também dizia: “Não se preocupe se errar. As pessoas vão te perdoar se você errar, mas não vão se você tiver a chance de chutar e não chutar”. Até hoje eu digo para nosso rapazes: “Não pense, apenas chute a maldita coisa” – disse Charlton, na época diretor do Manchester United, em entrevista à Four Four Two, em 2017.
Charlton foi titular nas seis partidas da Inglaterra na Copa do Mundo, junto com o irmão Jack, e teve outra partida marcante na semifinal ao fazer todos os gols da vitória contra Portugal. Esses dois e aqueles dois contra o Benfica foram considerados por eles os mais importantes da sua carreira.
Ele mal teve a chance de acrescentar uma na final contra a Alemanha à lista porque recebeu uma missão inusitada de Alf Ramsey. O que levou Beckenbauer a fazer aquele elogio é que o craque do time inglês foi escalado para ser a sua sombra, marcá-lo homem a homem, acompanhá-lo para onde fosse.
Não era o que ele esperava, como escreveu em outro dos seus livros, “Minha História na Copa do Mundo”.
Eu imaginava que jogaria do jeito que funcionou tão bem contra Portugal, que enquanto Roger Hunt e Geoff Hurst atacassem a defesa, com Alan Ball e Martin Peters dando amplitude e pegada e energia, eu usaria minha habilidade de correr e de atacar com um propósito majoritariamente criativo. Mas isso foi antes de Alf sentar comigo e dizer que meu trabalho era marcar Franz Beckenbauer.
Sem nenhum preâmbulo, ele disse: ‘Bobby, eu quero que você faça algo para mim. Eu quero que você cole em Beckenbauer cada minuto, cada segundo da partida. Esse rapaz é o único jogador alemão que pode nos vencer. Eles têm alguns outros jogadores muito bons, mas eu consigo planejar contra cada um deles, exceto Beckenbauer. Eu não sei o que ele fará de um minuto para o outro e acho que nem ele sabe. Então não posso planejar. Eu não sei quando ele de repente vai tentar correr atrás dos nossos zagueiros. Significa que eu tenho apenas um plano para ele: você’.
Alf não disse com todas essas letras, mas a implicação era clara o suficiente. Eu tinha tido meu gosto da glória, agora eu tinha que fazer um trabalho para o time e, se isso significasse que eu talvez não tenha a oportunidade de fazer algo espetacular, bom, que pena. Não era uma busca por glória pessoal, era a perseguição do prêmio mais importante do futebol. Era a expressão final de um time vencedor. Eu havia feito as pazes com isso. Ele, afinal, havia me dado 24 horas inteiras.
Para Alf, era uma equação simples. Se eu conseguisse neutralizar Beckenbauer, se eu conseguisse me tornar sua única preocupação, o cálculo era que qualquer efeito negativo na minha própria produtividade não seria tão significativo. Tínhamos o bastante em outros lugares para executar o trabalho.
Sem dúvida eu teria sido mais filosófico se eu soubesse que, por volta do momento em que Alf me deu minha tarefa, uma conversa quase idêntica estava acontecendo entre Beckenbauer e o técnico alemão Helmut Schöen. Schöen havia me identificado como a maior ameaça à defesa alemã e, disse ele, era o trabalho de Beckenbauer ser minha sombra em cada estágio da partida
E naquele dia, Bobby Charlton foi um pouco melhor que Franz Beckenbauer.