França

Patrice Evra: “Dizer não ao racismo não basta, precisamos educar as pessoas”

Por trás da persona divertida e leve que demonstra nas redes sociais, Patrice Evra carrega experiências pesadas e formadoras de caráter enquanto homem negro. Diante da recente onda de protestos antirracistas suscitada pela morte de George Floyd nos Estados Unidos, em maio deste ano, o ex-jogador considera que as mensagens de apoio do futebol não são suficientes para combater o racismo: “Precisamos educar as pessoas”.

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Em entrevista ao Guardian, Evra revisitou algumas de suas memórias mais duras enquanto homem negro na França e no futebol, iniciando sua carreira profissional na Itália. Para o ex-jogador, o momento agora é de se levantar: “O silêncio é um crime. Você não pode mais ficar em silêncio”.

“A primeira vez que aprendi sobre as pessoas negras na escola teve a ver com escravidão. Na França, você fala da revolução e de Napoleão. Mas quando você fala de pessoas negras, é escravidão. Mesmo hoje, tenho amigos que dizem: ‘Patrice, amamos você. Mas será difícil se minha filha ou meu filho estiver com um rapaz ou uma mulher negra, porque meus avós não vão aceitar isso’. Mas essas pessoas precisam ser fortes, como eu sempre fui em toda minha vida.”

Evra reconhece que a missão pode não ser das mais simples, mas não resta outro caminho. Apenas dizer não ao racismo não é o bastante: “Eu sei que não é fácil. Um dos meus irmãos se chama Mamadou. Quando ele liga em busca de emprego, logo que ele diz Mamadou, eles desligam o telefone. Ele mudou de nome para Claude e conseguiu alguns empregos. Mas não basta dizer não ao racismo. Precisamos educar as pessoas”.

Mesmo fazendo sua formação na França, Evra teve suas primeiras oportunidades profissionais na Itália. Em 1998, foi defender o Marsala, da Serie C, e, já cedo, teve que se deparar com situações de discriminação enquanto jogador.

“Quando eu fui para a Sicília, eu tinha 17 anos. Uma criança e seu pai estavam olhando para mim. Eles se aproximaram, e o pai disse: ‘Posso tirar uma foto?’ Eu pensei: ‘Nossa, já sou famoso’. A criança começa a tocar minha pele, e seu pai diz: ‘Mas por que você não lavou seu corpo?’ Eu não fiquei bravo, porque eles não tiveram educação. Meus colegas de time eram a mesma coisa. Eles me receberam bem, mas me perguntavam: ‘Você sabe usar seu celular?’ Eu chamo isso de ignorância, então não fiquei triste. Eu amei a Sicília e o povo de lá.”

No ano seguinte, Evra subiu uma divisão, indo atuar pelo Monza, na Serie B. Lá, a situação não foi tão diferente, e o lateral teve que ser firme para estabelecer limites dentro de sua própria equipe.

“Eles tinham outro jogador negro e o chamavam de Nero (negro em italiano). Quando gritaram para mim: ‘Ei, Nero, passa a bola’, eu parei de jogar e disse: ‘Você sabe que minha mãe me deu um nome, Patrice. Se você me chamar de Nero, vou te chamar de Bianco di Merda’. Ninguém me chamou mais de Nero. Algumas pessoas não têm essa coragem (de confrontar a situação), então precisamos encorajá-las”, defende Evra.

Hoje comentarista da Sky Sports na Inglaterra, o francês observa o envolvimento da liga na campanha Vidas Negras Importam como positivo, mas não suficiente. A solução, para o ex-jogador, passa pela educação sobretudo das crianças.

“Podemos jogar com camisas que dizem que Vidas Negras Importam, mas o mais importante é o que seus pais te ensinam, o que você ensina a seus filhos. Quando faço minha mensagem contra o racismo, me visto de panda, porque quero educar as crianças. O panda é negro, branco e gordinho. Quero que as crianças sejam como aquele panda. Seja legal, seja engraçado, mas respeite todo mundo.”

Ao longo de sua carreira profissional, Evra passou por oito clubes, entre eles West Ham, Olympique de Marseille, Juventus, Monaco e Manchester United. Foi neste último, no entanto, em que mais teve destaque, tempo e identificação. Foram mais de oito anos vividos no Old Trafford, entre 2006 e 2014, o que significa que o ex-lateral esteve lá o tempo todo durante a reta final da carreira de Alex Ferguson. As recordações com o ex-comandante são boas, e Evra traz algumas anedotas que ajudam a pintar a figura do escocês como treinador.

“Minha primeira apresentação ao verdadeiro Sir Alex foi na minha estreia contra o Manchester City (depois de um péssimo primeiro tempo, Evra foi substituído). No intervalo, ele deu o ‘tratamento do secador de cabelo' (expressão que ficou famosa na Inglaterra para descrever as impiedosas sessões de broncas de Ferguson a seus jogadores) por um minuto a cada jogador. Foram longos 15 minutos. No fim, ele diz para mim, em cinco segundos: ‘Patrice, senta. Você aprenderá como jogar na Inglaterra’. Naquela noite, meu empresário disse: ‘Cometemos um grande erro vindo para cá, sinto muito’.”

Alex Ferguson e Patrice Evra (Divulgação/Manchester United)

Evra persistiu, e sua adaptação, a bem da verdade, não tardou muito. Já nas duas temporadas seguintes, 2006/07 e 2007/08, o francês começava a se firmar como um dos melhores de sua posição no mundo. Para isso, contou não só com sua capacidade técnica, mas com a mentalidade apropriada para ser bem-sucedido em um clube como o United, sob o comando de alguém exigente como Ferguson.

“A nova geração é mais sensível do que nós éramos, te dou um exemplo: no intervalo, estávamos vencendo o Tottenham por 2 a 0. Todo mundo estava dizendo: ‘Patrice, você está jogando incrivelmente’. O pior é quando o Ferguson fica quieto. Naquele dia, ele ficou quieto por cinco minutos. Então, ele olha direto nos meus olhos e diz: ‘Patrice, você acha que está jogando bem?’, e eu respondo: ‘Sim’. Ferguson então diz: ‘Eu vi você passar a bola atrás para o van der Sar’. ‘Sim, chefe, mas só uma’. E ele responde: ‘Se você passar a bola para trás de novo, eu vou te substituir, porque esse é um dos piores jogos que você já fez’”, relembra.

Aquilo incendiou Evra. A vitória acabou vindo, por 4 a 0, mas o francês não deixou isso para lá, porque, em suas palavras, não gosta de injustiça. “No dia seguinte, fui até o escritório dele. ‘Oi, filho, qual o problema?’, ele diz. ‘Chefe, o problema foi ontem.’ Ferguson então fala: ‘Patrice, alguns jogadores estavam desrespeitando o adversário, e eu queria todos focados. Escolhi você para passar uma mensagem a eles porque você é forte.”

Entre pequenos atritos e muita cumplicidade e respeito mútuo, Evra e Ferguson mantiveram a relação para além da carreira.  “Ainda hoje somos muito próximos. Converso com o chefe três vezes por mês, e os sobrinhos dele amam meus vídeos. Um dia ele me mandou uma mensagem dizendo: ‘Patrice, amei aquele vídeo’, e eu disse: ‘Chefe, um dia você está me dando o tratamento do secador de cabelo, agora você está rindo com os meus vídeos’.”

Como ficou claro nos anos seguintes, a aposentadoria de Alex Ferguson em 2013 foi um divisor de águas para o Manchester United, perdido como instituição desde então, quase uma década depois.

“Quando o Ferguson saiu, o United perdeu seu DNA, sua filosofia. Ele inspirava muito respeito, muito medo, e se qualquer jogador começasse a pensar que era maior que o time, ele te destruía. Os jogadores sempre quiseram jogar pelo Ferguson. Eu tentei o meu melhor pelo David Moyes, mas eu sabia que seria um desastre, porque os jogadores não o respeitariam da mesma maneira. Era uma missão impossível.”

Sob Ole Gunnar Solskjaer, o clube parece estar na melhor direção desde a saída de Ferguson. José Mourinho e Louis van Gaal, mais experientes e vencedores, passaram por Old Trafford e fracassaram, mas o norueguês parece entender a instituição bem o bastante para reconduzi-la aos caminhos de antes.

Tendo chegado ao United em janeiro de 2006, Evra foi colega de equipe de Solskjaer no último ano e meio de carreira do norueguês como jogador. O francês recorda o comportamento do ex-companheiro ainda como atleta para reforçar que ele é o nome certo para comandar o clube em sua busca por melhores dias.

“Eu amo o Ole. Teve um jogo em que estávamos no banco, e eu comecei a falar. Ele disse: ‘Patrice, estou focado’. Ele analisava tudo, então ele sabia qual zagueiro estava ficando cansado. É por isso que o chamávamos de ‘Assassino com cara de bebê’. Ele ajudou o United a vencer a Champions League (em 1999, marcando o gol do título) dessa maneira”, afirmou.

Embora o trabalho de Solskjaer ainda esteja na metade, distante de lutar lá no topo do futebol inglês, Evra aprova o caminho que está sendo tomado: “O United não pode competir com o Liverpool ou o Manchester City, ainda não. Houve muitos danos (no passado), mas estamos nos movendo na direção certa”.

Foto de Leo Escudeiro

Leo Escudeiro

Apaixonado pela estética em torno do futebol tanto quanto pelo esporte em si. Formado em jornalismo pela Cásper Líbero, com pós-graduação em futebol pela Universidade Trivela (alerta de piada, não temos curso). Respeita o passado do esporte, mas quer é saber do futuro (“interesse eterno pelo futebol moderno!”).
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