França

Henry faz importante relato sobre como a depressão tomou conta de sua vida pela pressão no futebol

Em entrevista ao podcast The Diary of a CEO, Thierry Henry revelou ter sofrido com a depressão quando jogador e detalhou traumas vividos na infância

Quando jogador, o atacante Thierry Henry era uma máquina de gols, marcado por sua frieza frente a frente dos goleiros e pouca vezes sentindo a pressão. Conquistou Copa do Mundo, venceu uma Premier League invicto, se tornando ídolo do gigante Arsenal, e ainda teve tempo de brilhar no Barcelona de Pep Guardiola. Em meio ao sucesso dentro dos gramados, convivia com a depressão, vinda a partir da pressão da vida de jogador e de um trauma de infância, marcado pelas cobranças incessantes do pai do francês, Antoine Henry.

As revelações foram feitas em uma pesada e necessária entrevista a Steven Bartlett, do podcast The Diary of a CEO, disponível no YouTube. O ex-jogador da Seleção Francesa detalhou também que não sabia que tinha a doença e como tudo veio a tona durante a pandemia da Covid-19. Antes, Henry já tinha abordado a importância de falar sobre os problemas psicológicos quando Alexis Beka Beka, do Nice, tentou tirar a própria vida em 29 de setembro de 2023 e, felizmente, contou com apoio profissional e familiar para sair dessa situação.

Ao longo da minha carreira, devo ter estado em depressão. Eu sabia? Não. Fiz alguma coisa a respeito? Obviamente não. Mas eu me adaptei de uma certa maneira. Isso não significa que estou trabalhando direito. Mas estou caminhando. Você tem que colocar um pé de cada vez.

A conversa teve quase duas horas e o hoje técnico do sub-21 da França abordou toda carreira, desde o garoto que não teve amor do pai. Antoine Henry era extremamente severo com o filho, sempre procurando erros e não dando valor para conquistas do menino. Isso causou em Thierry uma dificuldade em se mostrar vulnerável para outras pessoas e o impediu de celebrar e sentir feliz com as realizações da carreira.

– Quando eu era jovem não via muito amor e carinho. Meu pai, na primeira vez que me pegou nos braços, disse: ‘Esse bebê vai ser um jogador de futebol incrível’. E a partir desse ponto fui programado para ter sucesso. Meu pai assumiu o controle total do meu corpo e foi difícil – afirmou, emendando:

– Eu tinha 15 anos e já dá para ver se alguém é bom ou não. Um dia, meu time venceu por 6 a 0 e marquei seis gols. Eu conhecia a aura do meu pai, sabia se o homem estava feliz ou não. Chegamos no carro, silêncio. Eu fico, tipo, ‘devo falar ou não falar?' Éramos assim. Ele disse: ‘Você está feliz?' Devo responder? ‘Sim'. ‘Sim, mas você não deveria estar porque errou aquele gol, errou aquele cruzamento'. Chegamos na casa da minha mãe, eu estou andando assim [de cabeça baixa] e ela perguntou: ‘Você perdeu?' Muitas vezes era assim – revelou.

Os luxos da vida de jogador são sempre celebrados. O dinheiro, a fama, o mundo aos pés de um homem. Mas há um preço. Henry deixou a casa aos 13 anos para tentar a sorte no mundo do futebol. Em pouco tempo, passa a lidar com uma pressão descabida e a exigência eterna de desempenho a todo custo.

– Minha felicidade e minha tristeza sempre foram expressas através das pessoas. Eu não sabia o que costumava me deixar triste e feliz. Eu não diria [que estava morto por dentro], mas aprender expressar meus sentimentos foi muito difícil. O ser humano estava sentindo falta de quase tudo. Saí de casa quando tinha 13 anos e as pessoas não percebem isso. Você já está lidando com a pressão do sucesso.

Covid-19 fez o adulto Henry derrubar as lagrimas da época de garoto

Em 2020, quando iniciou a pandemia, Henry treinava o Montreal e, como sua família não havia se mudado para o Canadá, passou todo período do isolamento completamente sozinho. Ele revelou chorar quase todos os dias. Disse ainda como tentou reprimir o sentimento que sabia ter.

– Tudo veio de uma vez, especialmente na época da Covid. Eu sabia disso antes, mas estava mentindo para mim mesmo. Eu estava me certificando de que esses sentimentos não estavam indo longe demais, coloquei a ‘armadura'. Mas quando você não é mais jogador, você não pode mais colocar essa proteção. Tendemos a correr em vez de enfrentar os nossos problemas, é isso que fazemos o tempo todo. Tentamos nos manter ocupados, tentamos evitar o problema ou não pensar nele. A Covid aconteceu e eu perguntei ‘por que você está correndo, o que você está fazendo?' Fiquei isolado e não poder ver meus filhos por um ano foi difícil. Nem preciso explicar isso.

– Algo assim teve que acontecer comigo para entender a vulnerabilidade, a empatia, o choro. Entender que emoções são emoções. […] Eu chorava quase todos os dias sem motivo, as lágrimas vinham. Não sei por que, mas talvez eles estivessem esperando há muito tempo. Não sei se isso precisava ser revelado. Foi estranho, mas no bom sentido. Havia coisas que eu não conseguia controlar e nem tentei.

Henry ficou sozinho no Canadá (Foto: Icon Sport)

Aquelas lágrimas, na verdade, eram do jovem Henry, que não pôde se expressar quando era o jogador, garante o hoje técnico.

– Desde que você é jovem, você ouve, seja em casa ou no trabalho, ‘não seja aquele cara, não mostre que você é vulnerável. Se você chorar, o que eles vão pensar? Eu estava chorando, mas, tecnicamente, era o jovem Thierry chorando. Ele estava chorando por tudo que não conseguiu.

Jogadores não são preparados para se aposentar, diz Henry

Tratar o jogador apenas como uma máquina de desempenhar cobra também um valor ao término da carreira do atleta. Quando se está no campo, todos os problemas podem ficar em segundo plano, enquanto foca em jogos a cada três dias. Mas o que fazer quando se aposenta? Henry não foi ensinado a isso e sofreu.

– Você morre quando para. O atleta, o competidor, morre. ‘Nunca mais poderei jogar no meu melhor, nunca mais poderei jogar pela França. Não me importa o que você diga, não posso jogar futebol, não nesse nível, não competir como antes competia’. Essa parte de mim morreu. As pessoas não ensinam você a aposentar. Então agora você vai enfrentar todos os seus problemas.

– Você pode colocá-los de lado [os problemas] quando estiver jogando. Porque você tem outras coisas que vão suprir isso. Mas quando você para… Não estamos acostumados a ficar em casa. Não estamos acostumados a lidar com uma vida normal. Desde os 13 anos nunca tive uma vida normal. Não estou reclamando, só estou dizendo que voltar ao mundo normal é um choque para o sistema – completou.

Assista a entrevista completa

Uma oferta de ajuda

Caso você sofra de depressão ou possui algum entrave ligado à saúde mental, procure ajuda. Também o faça se você se sentir depreciado, com a autoestima baixa, desesperançoso com a vida e/ou se isolar das relações sociais. Não hesite em buscar auxílio ou o atendimento com um profissional – por exemplo, no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de sua cidade ou região, ligado ao SUS, ou mesmo na Unidade Básica de Saúde mais próxima. Você também pode procurar o CVV, o Centro de Valorização da Vida. O canal realiza apoio emocional e prevenção ao suicídio. Através do número 188, atende gratuitamente pessoas que desejam conversar, sob total sigilo. O contato também pode ser feito pelo site oficial, por e-mail ou mesmo por Skype. Quando você pede ajuda, você: “é respeitado e levado a sério; tem o seu sofrimento levado em consideração; fala em privacidade com as pessoas sobre você mesmo e sua situação; é escutado; é encorajado a se recuperar”.

E se você conhece alguém em uma situação de risco, não deixe de procurar essa pessoa e de oferecer ajuda. O Ministério da Saúde também possui uma página em que orienta como identificar, agir e prevenir o suicídio. Reconheça os sinais, conforme a indicação da Superinteressante e do Ministério da Saúde: “frases ou publicações nas redes sociais que falem de solidão, culpa, apatia, autodepreciação, desejo de vingança ou hostilidade fora do comum; isolamento, não atendendo a telefonemas, interagindo menos nas redes sociais, ficando em casa ou fechadas em seus quartos, reduzindo ou cancelando todas as atividades sociais, principalmente aquelas que costumavam e gostavam de fazer; preocupação com sua própria morte ou falta de esperança, com sentimento de culpa, falta de autoestima e visão negativa de sua vida e futuro; diminuição ou ausência de autocuidado; aumentar o uso de álcool ou drogas, mudanças drásticas de peso, dirigir perigosamente; perguntas sobre métodos letais, como facas, armas ou pílulas; enaltecer e glamorizar a morte; desfazer-se de objetos pessoais e dar adeus”. Vale ressaltar que, embora não seja a maioria das pessoas doentes que cogita ceifar a própria vida, os transtornos mentais são um fator de risco ao suicídio. Em compensação, há sempre uma saída. O avanço da medicina ligada à saúde mental é significativo e a atenção dada pelo sistema público de saúde ao tema cresceu nos últimos anos.

Diante da possibilidade de ajuda, o Ministério da Saúde orienta “a encontrar um momento apropriado e um lugar calmo para falar sobre suicídio com essa pessoa. Deixe-a saber que você está lá para ouvir, ouça-a com a mente aberta e ofereça seu apoio. Incentive a pessoa a procurar ajuda de profissionais de serviços de saúde, de saúde mental, de emergência ou apoio em algum serviço público. Ofereça-se para acompanhá-la a um atendimento. Se você acha que essa pessoa está em perigo imediato, não a deixe sozinha. Procure ajuda de profissionais de serviços de saúde, de emergência e entre em contato com alguém de confiança, indicado pela própria pessoa. Fique em contato para acompanhar como a pessoa está passando e o que está fazendo”.

Segundo dados da OMS, “mais de 800 mil pessoas morrem por suicídio a cada ano em todo o mundo, o que equivale a uma morte a cada 40 segundos, sendo que a cada três segundos uma pessoa atenta contra a própria vida. No Brasil, foram 11.821 suicídios oficialmente registrados em 2012, o que representa, em média, 32 mortes por dia. Estima-se que o número de suicídios seja maior do que o registrado, devido ao estigma. Milhões de pessoas são afetadas pelo luto ao suicídio a cada ano. Estudos indicam que cada caso de suicídio tem sério impacto na vida de pelo menos outras seis pessoas de forma direta. Sentimentos ambivalentes são comuns em relação ao ente querido que faleceu de suicídio, como luto, raiva, culpa e outros. É importante aceitá-los como naturais, conversar com familiares e amigos, além de buscar atendimento médico e/ou psicológico, se necessário”. Não deixe de se abrir, se você enfrenta o luto por suicídio.

Este texto foi escrito seguindo orientações da Associação Brasileira de Psiquiatria e do Ministério da Saúde à imprensa, apoiado também em reportagem da BBC. Você, colega jornalista, pode se informar sobre a maneira de noticiar um suicídio através dos links.

Foto de Carlos Vinicius Amorim

Carlos Vinicius AmorimRedator

Nascido e criado em São Paulo, é jornalista pela Universidade Paulista (UNIP). Já passou por Yahoo!, Premier League Brasil e The Clutch, além de assessorias de imprensa. Escreve sobre futebol nacional e internacional na Trivela desde 2023.
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