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O Kosovo e o papel do esporte na construção de sua imagem nacional e reconhecimento internacional

Por Emanuel Leite Jr.

Desde que se declarou independente da Sérvia em 17 de fevereiro de 2008, o Kosovo tem lutado pelo reconhecimento internacional de sua independência. Por razões geopolíticas, a declaração unilateral kosovar é razão de uma complexa disputa e, por isso, o Kosovo até hoje não foi aceito como membro das Nações Unidas (ONU). Apenas 98 dos 193 integrantes da ONU (51%) reconhecem-no como um país. Cientes das dificuldades no campo da diplomacia tradicional, as autoridades públicas e políticas kosovares passaram, então, a apostar na diplomacia do esporte na busca pela construção de sua imagem nacional e do desejado reconhecimento internacional. E como esporte é também geopolítica, na noite de 31 de março de 2021, a televisão estatal espanhola RTVE se recusou a tratar o adversário da seleção da Espanha como o time de um estado soberano, inclusive grafando a abreviatura “kos”, em letras minúsculas. Isso porque a Espanha é um dos cinco de 27 membros da União Europeia que não reconhecem o Kosovo.

Ao longo do século 20, o esporte, como fenômeno cultural e espetáculo de massas que representa, foi se consolidando como uma manifestação de caráter internacional. Como nos lembra o historiador Eric Hobsbawm, foi no período entre as duas grandes guerras mundiais que o esporte se tornou, definitivamente, “uma expressão de luta nacional, com os esportistas representando seus Estados ou nações, expressões fundamentais de suas comunidades imaginadas”. Falando mais especificamente do futebol, Hobsbawm acrescenta que “a imaginária comunidade de milhões, parece mais real na forma de um time de onze pessoas com um nome. O indivíduo, mesmo aquele que apenas torce, torna-se o próprio símbolo de sua nação”.

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O historiador recorre ao termo de Benedict Anderson – “comunidade imaginária” – para fundamentar que a ideia de que as pessoas que vivem em um mesmo país estão ligadas umas às outras, mesmo sem nunca se conhecerem, se torna mais latente quando a seleção nacional de futebol entra em campo. Em outra obra, Hobsbawm volta a ressaltar o que considera poder dinamizador do futebol. “Praticamente desde que adquiriu um público de massa, esse esporte tem sido o catalisador de duas formas de identificação grupal: a local (com o clube) e a nacional (com a seleção nacional)”.

Para o sociólogo Richard Giulianotti “o futebol é uma das grandes instituições culturais, como a educação e os meios de comunicação de massa, que forma e consolidam identidades nacionais no mundo inteiro”. Por essa razão, vários autores, de diversos campos das ciências humanas, reforçam a ideia de que o esporte tem sido usado na construção da identidade nacional, servindo como um forte recurso simbólico e cultural, bem como fomentador do orgulho nacional ou da reputação e do reconhecimento internacional (Brentin & Tregoures), por isso é impossível dissociar a história do esporte moderno destes elementos e também da diplomacia pública (Cha).

Sabendo desta capacidade instigadora do esporte, em particular o esporte de alta competição internacional, a diplomacia kosovar, sem deixar de lado, obviamente, os meios da diplomacia tradicional, voltou suas atenções e seus esforços para o campo da diplomacia do esporte, buscando o reconhecimento internacional na arena esportiva, principalmente no Comitê Olímpico Internacional (COI) e no futebol na Fifa e Uefa. Uma estratégia de soft power com o objetivo de criar em um primeiro momento uma imagem deste novo país, para depois, a partir da existência deste reconhecimento simbólico, moldar uma imagem positiva e, portanto, atrativa, o que na literatura especializada se define como “nation branding“. Ao mesmo tempo em que esse esforço de mobilização internacional também permite ao poder político local estabelecer um senso de unidade nacional, a tal comunidade imaginada. E, assim, nestas duas frentes – doméstica e internacional – criar e consolidar os elementos de Estado (governo, território, povo) na “seleção nacional”.

Utilizando-se de outro instrumento da diplomacia pública suave (agentes não-estatais), o Kosovo recorreu, por exemplo, a futebolistas de origem kosovar, mas que atuavam por outras seleções nacionais, para persuadirem as instâncias futebolísticas. Em 2012, Lorik Cana (Albânia), Xherdan Shaqiri, Valon Behrami e Granit Xhaka (Suíça) escreveram uma carta aberta endereçada à Fifa, pleiteando que o Kosovo tivesse o direito a disputar amistosos internacionais. Na ocasião, o então vice-ministro das Relações Exteriores kosovar, Petrit Selimi, afirmou que “ser reconhecido no campo do futebol tem uma ressonância muito maior do que num bastidor qualquer em Bruxelas”. O fundamental, na avaliação das autoridades do país, era marcar presença na esfera internacional.

Após muitas discussões e negociações que também envolveram a Sérvia, país do qual, recorde-se o Kosovo se proclamou independente unilateralmente, em 2013 a FIFA sinalizou que iria aceitar que um selecionado kosovar realizasse jogos amistosos, desde que não houvesse bandeiras e execução de hinos nacionais. Ao entrar em campo pela primeira vez, no dia 5 de março de 2014, para um amistoso com a seleção do Haiti, a sensação que seu povo teve foi de como se, finalmente, a sua nação estivesse reconhecida. E foi precisamente o futebol que deu aos kosovares o senso de reconhecimento internacional à sua identidade nacional.

O triunfo da diplomacia do esporte do Kosovo, contudo, ainda levaria um tempo até se concretizar. Primeiro, o reconhecimento olímpico. Quando a 9 de dezembro de 2014, o COI aceitou a adesão efetiva do Comitê Olímpico do Kosovo. No futebol, isso só aconteceria em maio de 2016. No dia 3, a Federação Kosovar de Futebol passa a ser membro pleno da UEFA e no dia 16, da FIFA. Desde então, antes da atual eliminatória para a Copa do Mundo 2022, o Kosovo já participou das eliminatórias para a Copa do Mundo 2018 e Euro 2020, além de ter jogado no quarto escalão da Liga das Nações 2018/19, subindo para o terceiro nível em 2020/21.

A recusa espanhola

A Espanha é o único país da Europa Ocidental a não reconhecer a independência do Kosovo. Ao contrário do que acontece com relação à posição de países como Rússia e China, que não reconhecem o Kosovo por causa das suas relações próximas com a Sérvia, o caso espanhol tem a ver com a política doméstica. A alegação do governo espanhol é que a autoproclamação de soberania fere o direito internacional. Assim, a Espanha manda um recado aos independentistas bascos e catalães. Aliás, o governo da Comunidade Autonôma Basca de pronto sinalizou como “positiva” a independência kosovar, enquanto os partidos independentistas da Catalunha traçaram paralelos entre a situação deles e a do Kosovo.

Foi a influência política e os interesses do governo espanhol que ditaram o posicionamento da TV estatal RTVE. Na transmissão, para além das letras minúsculas “kos” em oposição às maiúsculas “ESP” nas abreviaturas dos nomes dos países (na emissão internacional da UEFA “KOS” estava em maiúsculas), evitava-se a referência ao adversário espanhol como um país, usando-se termos como “equipe do território do Kosovo”. Na crônica da partida no site oficial da seleção espanhola, tampouco há a referência ao Kosovo como um país. Enquanto o time espanhol foi referenciado como “seleção espanhola”, os kosovares apenas “combinado kosovar”. Já na ficha técnica vem ESPANHA, assim, em letras garrafais e “seleção kosovar”.

O episódio espanhol apenas reforça que a estratégia do Kosovo pela diplomacia do esporte tem sido acertada e eficaz. Por um lado, o país marca presença na arena global ao participar de jogos deste calibre. Por outro, demonstra que o incômodo da Espanha ao lidar com a situação deixa bem claro que a presença kosovar na esfera internacional é um fato inevitável. No dia 8 de setembro a Espanha vai ter que se deslocar até o “território do Kosovo”. Vamos ver como os espanhóis vão lidar com a incômoda realidade.

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