Mircea Lucescu pendurou a prancheta: dez momentos que explicitam sua história especial
Mircea Lucescu revolucionou o Shakhtar Donetsk, mas possui uma lista de façanhas no futebol bem mais extensa - de levar a Romênia à Euro até vencer uma final europeia contra o Real Madrid
Por mais de meio século, Mircea Lucescu foi um rosto comum no futebol internacional. O talentoso atacante começou a despontar na seleção da Romênia no final dos anos 1960 e disputou até Copa do Mundo como capitão. Ainda assim, sua contribuição como treinador é incomparavelmente maior. Não são poucas as histórias ao redor de Lucescu, mesmo que naturalmente seu nome acabe atrelado ao Shakhtar, clube que mudou de patamar. O veterano conquistou oito títulos ucranianos em 12 temporadas em Donetsk, além de faturar uma Copa da Uefa, mas fez muito mais. Em seu país, levou a Romênia pela primeira vez à Eurocopa, enquanto também liderou temporadas inesquecíveis a clubes de diferentes dimensões – sobretudo o seu Dinamo, rompendo a hegemonia de um poderoso Steaua. Já no exterior, Lucescu dirigiu craques nos anos dourados da Serie A e foi bicampeão por clubes rivais na Turquia, além de ganhar até Supercopa Europeia contra o Real Madrid. Rivalidade, aliás, não foi problema nem para assumir o Dynamo Kiev no final da carreira e se consagrar pela última vez no Campeonato Ucraniano.
Aos 78 anos, Lucescu finalmente resolveu dar uma trégua à prancheta. Na última sexta-feira, o treinador anunciou sua aposentadoria após um Shakhtar x Dynamo. Apaixonado por futebol, o romeno trabalhou enquanto pôde, mas já era hora de descansar – ainda mais num contexto de guerra no país que tão bem o acolheu. Abaixo, em tributo ao veterano, relembramos dez grandes momentos de sua carreira como técnico e um pouco de sua trajetória como jogador. Obviamente, o Shakhtar é parte fundamental desse reconhecimento, mas o mestre pôde viver e conquistar muito mais.
Ver essa foto no Instagram
– O craque de bola abriu caminhos
Mircea Lucescu teria seu nome na história do futebol romeno mesmo se não se tornasse treinador. O veterano se colocou entre os maiores atacantes da Romênia em todos os tempos. Já seria uma trajetória excepcional desde o início, inclusive pelas particularidades. Lucescu estreou no Campeonato Romeno em 1964, aos 18 anos, com a camisa do poderoso Dinamo Bucareste. No entanto, o garoto decidiu conciliar o começo nos gramados com a faculdade de economia. Assim, passou duas temporadas emprestado ao Stinta Bucareste. A saída foi importante para que seu futebol florescesse e ele chegasse à seleção romena. A estreia pela equipe nacional aconteceu em novembro de 1966, aos 21 anos, numa vitória sobre a Suíça. O jovem seria imprescindível na consolidação de uma das gerações mais importantes da história da Romênia. Os tricolores se classificaram a uma Copa do Mundo depois de 32 anos, com Lucescu entre seus destaques.
Naquele momento, Lucescu já transparecia ser um jogador diferente dos demais. Era taticamente muito inteligente, como um ponta que não guardava posição e circulava pelo campo. Além disso, a liderança também se expressava dentro dos vestiários. Às vésperas de completar 25 anos, ganhou a braçadeira de capitão do técnico Angelo Niculescu rumo à Copa de 1970. A Romênia foi sorteada no “grupo da morte”, mas caiu em pé. Venceu a Tchecoslováquia, além de dar muito trabalho a Inglaterra e Brasil. Perdeu para os favoritos, mas deixou boa impressão no Mundial. Assim também fez o próprio Lucescu, que tinha até propostas para deixar o futebol local. Entretanto, com a Romênia sob o regime comunista, o craque cumpriria toda a sua trajetória dentro da liga nacional.
Lucescu possui um lugar especial na história do Dinamo Bucareste. O atacante estrelou um dos períodos mais vitoriosos do clube, ao lado de outras lendas como Florea Dumitrache, Dudu Georgescu e Cornel Dinu. Lucescu participou de sete títulos no Campeonato Romeno, além de dois na Copa da Romênia. Era um time acostumado a fazer bons papéis inclusive nas competições internacionais, dando trabalho a adversários mais badalados. Lucescu ficou no Dinamo até 1977, quando decidiu se mudar para o interior da Romênia depois de um terremoto que atingiu Bucareste e destruiu sua casa. Vestiria a camisa do modesto Corvinul Hunedoara, clube de pouca expressão na elite romena. E seria exatamente por lá que o atacante faria sua transição de carreira.
Mesmo num time pouco expressivo, Lucescu continuou sendo convocado à seleção. Vestiu a camisa da Romênia até 1979, com 70 partidas e nove gols, mas sem novas aparições em competições internacionais além da Copa de 1970. A despedida de Lucescu da Tricolor aconteceu no mesmo momento em que se tornou jogador-treinador do Corvinul, no fim do Campeonato Romeno de 1978/79. O time estava em crise e o novo comandante não evitou o rebaixamento, mas ainda assim chegou a ser carregado nos braços pela torcida após o descenso. Seguiu no comando durante a segundona, ainda conciliando as atividades como atleta. Foi quando realmente deslanchou e se apresentou como um técnico de primeira.
Lucescu convenceu Florea Dumitrache, seu companheiro no Dinamo e na seleção, a assinar com o Corvinul. A equipe conquistou o acesso de imediato na segunda divisão e passou a fazer boas campanhas também na elite. Ainda como jogador-treinador, Lucescu liderou o Corvinul a um honroso terceiro lugar no Campeonato Romeno de 1981/82, a melhor colocação do clube. De maneira surpreendente, o time disputaria a Copa da Uefa pela primeira e única vez. Entretanto, Lucescu não ficou para a competição continental. O atacante pendurou as chuteiras, ao mesmo tempo em que seguiu em frente para um novo desafio profissional. Antes mesmo de completar 40 anos, o ex-capitão já tinha voltado à seleção da Romênia como treinador.
– A vaga inédita na Eurocopa
Mircea Lucescu se tornou treinador da seleção da Romênia em novembro de 1981, quando tinha apenas 36 anos. Existia plena confiança na capacidade do ex-capitão, por suas virtudes já conhecidas, assim como pelo talento que demonstrava para armar equipes agressivas. Os resultados não demoraram a chamar atenção. Mesmo conciliando os afazeres no Corvinul com a Tricolor, Lucescu passou a emendar vitórias de forma consistente. Já a partir de 1982, o técnico se dedicou completamente ao time romeno. Fez muito bonito nas eliminatórias da Eurocopa. A Romênia corria por fora num grupo em que competiam Itália, Suécia, Tchecoslováquia e Chipre, no qual apenas o líder conseguiria se classificar à fase final do torneio continental. Pois o jovem comandante conseguiu o milagre.
A Romênia largou muito bem na campanha, ao vencer Chipre e Suécia dentro de casa. Depois, segurou o empate contra a Itália em Florença. Já a grande partida aconteceu em abril de 1983, menos de um ano depois que a Azzurra havia conquistado a Copa do Mundo. László Bölöni anotou o gol da vitória por 1 a 0 sobre os italianos em Bucareste. Com isso, os romenos fincavam o pé como candidatos à classificação para a Euro 1984. Até perderam em casa para a Tchecoslováquia, mas venceram a Suécia no Rasunda e o Chipre em Limassol. Na rodada final, bastou o empate por 1 a 1 com os tchecoslovacos em Praga para selar a vaga inédita da Tricolor na Eurocopa. Os italianos, campeões mundiais, passaram longe da vaga.
Aquela foi a primeira participação da Romênia numa Eurocopa. A equipe até empatou na estreia com a Espanha, mas perdeu para Alemanha Ocidental e Portugal em derrotas apertadas. Caiu cedo, mas saiu com moral. Lucescu não teve a mesma sorte nas Eliminatórias para a Copa do Mundo de 1986, com os romenos superados por Inglaterra e Irlanda do Norte em seu grupo. O treinador seguiu no comando do time até agosto de 1986, com 23 vitórias e 19 empates em 57 jogos. E seu legado durou por bem mais tempo. Marca de seu trabalho desde o Corvinul, Lucescu promoveu as estreias de vários jovens, sobretudo depois da Euro 1984. A lista de novatos incluía futuras lendas como Gheorghe Hagi, Marius Lacatus e Miodrag Belodedici – uma geração que levaria o país a três Copas do Mundo.
– O Dinamo que quebrou a hegemonia dos rivais
De novo, Mircea Lucescu conciliou trabalhos entre clube e seleção. Antes mesmo de deixar a Tricolor, em novembro de 1985, o ex-atacante retornou ao Dinamo Bucareste. Aquela seria uma temporada histórica ao rival Steaua Bucareste, que conquistou a Copa dos Campeões da Europa de 1985/86. Os Cachorros Vermelhos, ainda assim, ganharam o clássico na final da Copa da Romênia. Não seria um período tão condecorado para o Dinamo, até pela maneira como o Steaua se via beneficiado pelas arbitragens, como um clube diretamente ligado ao poder da Romênia naquele momento. O episódio mais famoso aconteceu na final da Copa da Romênia de 1987/88, quando o Steaua teve um gol anulado durante os minutos finais e saiu de campo com o empate no placar, entregando o título ao Dinamo. Durante a comemoração, a polícia secreta do país tirou o troféu das mãos dos Cachorros Vermelhos e, dois dias depois, a federação ratificou a conquista do Steaua. Seria um título tão vergonhoso que, anos depois, o Steaua o ofereceu de volta ao Dinamo – que não aceitou.
Apesar dos pesares, Lucescu fazia um trabalho que recebia constantes elogios no Dinamo. O treinador primou por dar espaço a muitos jovens jogadores, que floresceriam no clube e também despontariam na seleção. Figuras como Florin Raducioiu, Bogdan Stelea, Ionut Lupescu, Danut Lupu, Ioan Sabau e Dorin Mateut estavam entre os pupilos do comandante. E se os vices para o Steaua se repetiam, de maneira que gerava necessários questionamentos apesar da força dos rivais, o jogo não demoraria a virar. Lucescu tornou-se um símbolo exatamente dessa mudança de realidade no país.
A temporada que botou Lucescu de vez na história do Dinamo Bucareste aconteceu em 1989/90, ocorrida concomitantemente com a Revolução Romena, que derrubou o regime comunista. Foi quando a hegemonia do pentacampeão Steaua se encerrou e os Cachorros Vermelhos voltaram a levar a taça do Campeonato Romeno depois de um hiato de seis anos. Como se não bastasse, o Dinamo também ficou com a dobradinha ao faturar a Copa da Romênia. E não pararia por aí. O time também celebrava momentos brilhantes nas competições internacionais. Um aviso ocorreu na Recopa Europeia de 1988/89, quando o Dinamo parou nas quartas de final, após dois empates com a Sampdoria e a desvantagem nos gols fora. Já em 1989/90, os romenos alcançaram as semifinais da mesma Recopa. Eliminaram Panathinaikos e Partizan Belgrado, antes da queda diante do Anderlecht. O nome de Lucescu ganhava dimensões além das fronteiras.
– Respeitado nos anos dourados da Serie A
Mircea Lucescu ganhou tanto moral que recebeu um convite para trabalhar no Campeonato Italiano, justo no auge da liga nacional na virada dos anos 1980 para os 1990. O ambiente era modesto, mas não deixava de ser uma baita oportunidade ao assumir o comando do Pisa. Lucescu não chegou a completar a temporada de 1990/91 à frente da equipe, que reunia figuras como os argentinos Diego Simeone e José Chamot. Diante da ameaça do rebaixamento, foi demitido em março de 1991. Todavia, ainda continuava bem avaliado entre os dirigentes italianos e ganhou uma nova oportunidade meses depois, para trabalhar no Brescia. Assumiu um time na Serie B, mas não ficou por muito tempo na segundona.
Lucescu ganhou de imediato o acesso na Serie B, em 1991/92, recolocando os biancazzurri na elite depois de cinco anos. Já na primeira divisão, o treinador romeno tratou de se cercar de compatriotas. O Brescia trouxe em 1992/93 figuras como Gheorghe Hagi, Ioan Sabau, Florin Raducioiu e Dorin Mateut. Lucescu não evitou o rebaixamento, mas ainda manteve Hagi e Sabau para a segundona em 1993/94. O acesso veio de imediato, bem como o título da Copa Anglo-Italiana, com uma vitória sobre o Notts County em Wembley. Foi uma preparação importante especialmente a Hagi, antes do estrelato na Copa de 1994. Lucescu também ficou para a Serie A 1994/95, mas sem evitar novo descenso. Na passagem pelo Mario Rigamonti, ajudou a promover ainda alguns jovens, entre eles um adolescente chamado Andrea Pirlo. E as inovações no clube deixaram marcas profundas: o romeno participou da criação do primeiro software de análise de desempenho de futebolistas. A venda do programa renderia milhões ao técnico em 1996.
Apesar da gangorra no Brescia, Lucescu conseguiu outros trabalhos na Itália. Ficaria pouco tempo à frente da Reggiana em 1996/97. Sem sucesso, o romeno voltou ao seu país e conquistou a Copa da Romênia com o Rapid Bucareste. Foi quando recebeu sua grande chance no Campeonato Italiano, ao assumir a Internazionale em dezembro de 1998. Os nerazzurri não conseguiam engrenar e por isso recorreram aos serviços do comandante. Ganhou a chance de dirigir um timaço com Ronaldo Fenômeno, Roberto Baggio, Iván Zamorano, Giuseppe Bergomi, Gianluca Pagliuca, Diego Simeone e outras feras. De início os resultados até foram bons, com direito a uma goleada sobre a Lazio. Entretanto, a eliminação para o Parma nas semifinais da Copa da Itália e para o Manchester United nas quartas de final da Champions League pesaram contra. Durou apenas 17 partidas no cargo, com só quatro vitórias.
– Na Turquia, bicampeão por rivais
Depois do insucesso na Internazionale, Lucescu retornou à Romênia mais uma vez, para dirigir de novo o Rapid Bucareste. Não seria um trabalho qualquer. Se na primeira passagem pelos ferroviários o treinador conquistou a Copa da Romênia, desta vez ele conseguiu faturar o Campeonato Romeno – encerrando um jejum de 32 anos do clube grená, no segundo título da história da agremiação dentro da liga nacional. Lucescu juntou forças com velhos conhecidos e também promoveu novos talentos no Rapid. Nomes como Razvan Rat, Danut Lupu, Ioan Sabau e Bogdan Lobont fizeram parte daquela campanha. O feito se expandiu em pouco tempo e o clube de Bucareste até conquistou a liga pela terceira vez em 2002/03. Naquele momento, porém, Lucescu já tinha embarcado em nova aventura.
Em 2000, Mircea Lucescu assumiu o Galatasaray. Não era uma missão qualquer, considerando que Fatih Terim havia conquistado até a Copa da Uefa com os Leões e saiu valorizado rumo à Fiorentina. Lucescu teve a chance de disputar inclusive a Supercopa Europeia. Liderou uma das maiores vitórias da história do Gala, com os 2 a 1 sobre o Real Madrid em Mônaco. Recém-contratado, Jardel anotou os dois gols num time que reunia outros brasileiros como Taffarel e Capone, além dos romenos Gheorghe Hagi e Gheorghe Popescu. Lucescu não levou o Campeonato Turco em 2000/01, mas conduziu seu time às quartas de final da Champions, dando trabalho ao Real Madrid. Já em 2001/02, o treinador não foi tão longe no torneio continental, mas celebrou o título na Süper Lig. Cinco de seus comandados ainda fizeram sucesso com a Turquia na Copa do Mundo de 2002.
O Galatasaray optou por dispensar Mircea Lucescu em 2002/03, com a volta de Fatih Terim ao clube. O romeno, porém, continuou em Istambul: aceitou uma proposta do Besiktas, num momento especial da agremiação, que vivia seu centenário. Lucescu conseguiu ser bicampeão da Süper Lig, levando as Águias ao troféu de 2002/03. Era um time bem forte do Besiktas, que reunia nomes como Óscar Córdoba, Antônio Carlos Zago, Sergen Yalçin e Ilhan Mansiz. De quebra, os alvinegros também alcançaram as quartas de final da Copa da Uefa, superados pela Lazio. Lucescu passou ainda mais uma temporada com o Besiktas, sem colher os mesmos resultados. Era o momento de buscar um novo destino e, mesmo com tantas histórias grandiosas, iniciar o maior capítulo de sua carreira.
– A revolução em Donetsk
O Shakhtar Donetsk era um clube relevante antes da chegada de Mircea Lucescu. Era um participante costumeiro na elite do Campeonato Soviético e, embora nunca tenha conquistado a liga nacional, faturou quatro vezes a Copa Soviética. Também foram cinco participações nas copas europeias naqueles tempos, com direito a uma aparição nas quartas de final da Recopa Europeia em 1983/84. Já depois da dissolução do país e da independência da Ucrânia, os Mineiros acumularam suas primeiras glórias. Faturaram quatro troféus da Copa da Ucrânia entre 1995 e 2002, enquanto quebraram a hegemonia do Dynamo Kiev no Campeonato Ucraniano em 2001/02. O técnico Nevio Scala foi o responsável pelo feito, já ganhando os investimentos do presidente Rinat Akhmetov.
No entanto, o Shakhtar Donetsk transformou sua história mesmo a partir de maio de 2004, quando Mircea Lucescu foi nomeado novo treinador. Mais do que um técnico, os Mineiros ganharam um revolucionário. O dinheiro até podia pingar nos cofres do clube, mas as dimensões se expandiram a partir de um trabalho transformador realizado pelo comandante romeno. Lucescu trouxe principalmente uma nova visão. Conseguiu formar uma equipe bastante competitiva e sólida, mas sem perder de vista a qualidade técnica. O Shakhtar tirou o Dynamo Kiev do trono na Ucrânia, enquanto passou a intimidar diversos adversários ao redor da Europa. O romeno se firmou como um verdadeiro rei em Donetsk, numa dinastia que durou por 12 anos.
A lista de conquistas de Mircea Lucescu à frente do Shakhtar Donetsk fala por si. Se antes o clube tinha apenas um troféu no Campeonato Ucraniano, essas taças se multiplicaram com mais oito conquistas. O novo comandante chegou logo com um bicampeonato em 2004/05 e 2005/06, antes de recuperar a taça em 2007/08. Já o grande momento veio com o penta, emendado de 2009/10 a 2013/14. Paralelamente, conquistou também cinco vezes a Copa da Ucrânia, incluindo em sua temporada de despedida em 2015/16. Mesmo que o Dynamo Kiev possua uma história riquíssima, o Shakhtar de Lucescu não deixava em nada a desejar para os maiores times do passado dos rivais.
É interessante notar como a imposição de Mircea Lucescu na Ucrânia não se encerrou nem com seus dramas pessoais. O treinador chegou a sofrer um ataque cardíaco em julho de 2009, que o colocou na mesa de cirurgia em estado grave. Voltou para ampliar sua grandeza em Donetsk. Já em janeiro de 2012, foi um acidente de automóvel que botou a vida do veterano em risco. Ele também se recuperou para levar o Shakhtar mais longe em sua lista de conquistas. O grande entrave para Lucescu foi mesmo o início da guerra civil no leste da Ucrânia, a partir de 2014. O treinador não deixou o país por conta dos conflitos. No entanto, o estádio do Shakhtar foi bombardeado e o clube não pôde mais mandar seus jogos em Donetsk, enquanto perdeu talentos. Num momento de recuperação do Dynamo Kiev, Lucescu sucumbiu em duas edições seguidas do Campeonato Ucraniano, o que nunca tinha acontecido antes. Mas que não diminuía em nada sua importância aos Mineiros.
– A conexão com os brasileiros
A ligação de Mircea Lucescu com o Brasil é antiga. As primeiras viagens do então atacante ao país aconteceram ainda nos anos 1960, nos tempos em que a seleção da Romênia procurava aprimorar seu time em busca da Copa do Mundo. Lucescu veio ao Brasil duas vezes, entre 1967 e 1970, para disputar uma série de amistosos contra clubes. Conheceu diferentes cidades e aprendeu bastante sobre a paixão do brasileiro pela bola – também pela praia, pelo samba, pelo sexo, pela cerveja e por tudo mais que regia o ambiente ao redor do futebol. O próprio Lucescu teve experiências neste sentido, enquanto arrebentava até no Maracanã. E o encantamento com o Brasil se reforçou quando pôde enfrentar a mágica Seleção de 1970. Além das memórias da derrota por 3 a 2, também levou para casa a camisa 10 que trocou com Pelé.
Lucescu teve a chance de trabalhar com algumas lendas do futebol brasileiro ao longo de sua carreira. Treinou por alguns meses Ronaldo, além de ver de perto a idolatria de Taffarel na Turquia e o faro de gols de Jardel em sua passagem por Istambul. Mesmo o Shakhtar Donetsk já tinha aberto as portas para os brasileiros quando Brandão foi contratado em 2002/03. Entretanto, a relação com os atletas do Brasil se tornou uma identidade do trabalho de Lucescu e um passo fundamental da revolução que implementou na Ucrânia. Era um projeto, ao unir a força de jogadores do Leste Europeu do meio para trás, enquanto contava com a habilidade e a ginga dos brasileiros do meio para frente. Assim, o treinador aprimorou talentos e montou seus esquadrões.
Há muitas lendas do Shakhtar que se eternizaram nas mãos de Lucescu. Darijo Srna, Tomas Hübschman, Andrey Pyatov, Razvan Rat, Dmytro Chygrynskyi e Anatoliy Tymoshchuk são alguns ídolos que se consagraram do meio para trás. Já do meio para frente, quase sempre a estrela era brasileira, salvo raras exceções como Henrikh Mkhitaryan. Difícil imaginar a carreira tão condecorada de tantos brasileiros sem a influência de Lucescu. Fernandinho, Luiz Adriano, Jadson, Willian, Alex Teixeira, Douglas Costa, Ilsinho, Matuzalém, Taison, Eduardo da Silva, Elano, Marlos, Fred e Bernard passaram pelas mãos do romeno, vários deles chegando à Seleção e à Copa do Mundo depois.
Lucescu realizava um trabalho de amadurecimento com esses garotos. Pegava os jogadores ainda em processo de transição e muitas vezes tinha paciência no desabrochar. No fim das contas, quase todos vingavam sob as ordens do comandante. Não perdiam sua essência no trato com a bola, mas viravam futebolistas muito mais completos e capazes de encarar as exigências do futebol em alto nível. Fernandinho talvez seja o melhor exemplo, pela maneira como estourou no Shakhtar e depois estava pronto para se firmar inclusive como volante no Manchester City. A inteligência tática de Lucescu, presente desde os tempos de jogador, ele sabia ensinar aos seus pupilos.
Ajudava também a aptidão do treinador com as letras. Lucescu chegou a trabalhar como jornalista ainda no início de sua carreira como técnico, enquanto também conciliava as atividades como jogador. Escrevia para um jornal local, enquanto estava à frente da ascensão do Corvinul. Não continuou na imprensa, até pelo aumento das responsabilidades na casamata. Mas aproveitou para aprender diversos idiomas. Além do romeno, o comandante também domina o inglês, o espanhol, o italiano, o francês, o russo e o português. Este último, de grande serventia para se aproximar de tantos craques e tirar o melhor deles.
– A conquista da Europa
O maior título de Mircea Lucescu aconteceu em 2008/09. Não era o primeiro troféu europeu do comandante, mas nem dá para comparar os 90 minutos da Supercopa com a longa caminhada na Copa da Uefa. Foi quando o Shakhtar, definitivamente, entrou para um rol seleto de clubes do continente e conferiu mais valor ao domínio que reproduzia no Campeonato Ucraniano. Aquela campanha começou na Champions League, vale lembrar. Os Mineiros ficaram na terceira posição do Grupo C, mas com três vitórias, chegando a bater o Barcelona de Pep Guardiola por 3 a 2 no Camp Nou – apesar do time misto dos catalães na rodada final. Já nos mata-matas da Copa da Uefa, Tottenham, CSKA Moscou e Olympique de Marseille foram vítimas de peso.
Aquela campanha teve um momento bastante especial nas semifinais. O Shakhtar Donetsk encarou o rival Dynamo Kiev, para ver quem estaria na decisão continental. Os alviazuis possuíam glórias passadas nos torneios da Uefa. Entretanto, o momento era dos Mineiros. Depois do empate por 1 a 1 em Kiev, o Shakhtar conquistou a classificação com a vitória por 2 a 1 em Donetsk, selada por um gol de Ilsinho aos 44 do segundo tempo. Já na decisão, o Werder Bremen também era um adversário que até parecia com mais pinta de favorito. Sucumbiu nos 2 a 1 definidos na prorrogação. Luiz Adriano marcou no tempo normal, antes de Naldo empatar. Já o herói da conquista foi Jadson, num chute rasteiro que o goleiro Tim Wiese aceitou. A história estava feita.
O Shakhtar não chegou a conquistar a Supercopa da Uefa, derrotado pelo Barcelona no reencontro em Mônaco. Já na Champions, o time virou um incômodo oponente ao longo dos anos seguintes. Foram três campanhas lideradas por Lucescu até os mata-matas. O melhor desempenho aconteceu em 2010/11, quando os Mineiros pontearam um grupo que tinha o Arsenal e venceram as duas contra a Roma nas oitavas. De novo, o Barça foi a pedra no sapato durante as quartas de final. Os ucranianos alcançariam as oitavas em 2012/13, com direito a vitória sobre o Chelsea, campeão no ano anterior e que seria eliminado logo cedo. Saiu diante do Borussia Dortmund. O time voltou às oitavas em 2014/15, mas numa chave mais acessível, antes de ser goleado pelo Bayern de Munique.
– Uma nova história na Ucrânia
Mircea Lucescu deixou o Shakhtar Donetsk em maio de 2016, quando acertou sua assinatura com o Zenit. Se aquele movimento soa como um disparate, no contexto atual da guerra na Ucrânia, não gerou tanta rejeição na época. E nem provocou o impacto esperado. Os celestes tiveram um desempenho morno sob as ordens do romeno. Ele conquistou apenas a Supercopa da Rússia, com o terceiro lugar no Campeonato Russo acelerando sua demissão. Já em 2017, Lucescu voltou à Turquia depois de 13 anos. Assumiu a seleção nacional, novamente como sucessor de Fatih Terim. O trabalho terminou em fracasso, sem a classificação para a Copa do Mundo de 2018. Durou míseras 17 partidas, com só quatro vitórias, e a saída no início de 2019.
A esta altura, a aposentadoria de Mircea Lucescu parecia compreensível. No entanto, ele assumiu um compromisso impensável em julho de 2020, ao assinar com o Dynamo Kiev: sim, o nome mais importante da história do Shakhtar dirigiria os amargos rivais. A escolha da presidência gerou protestos massivos dos ultras alviazuis, que relembravam episódios nos quais o romeno menosprezou a equipe da capital. Mesmo antigos ídolos vieram a público para criticar a decisão, incluindo Oleg Blokhin e Igor Belanov, dois antigos vencedores da Bola de Ouro. Lucescu chegou a pedir demissão, mas a diretoria o bancou. Deu tão certo que terminou em troféus logo no primeiro ano.
Depois de um tetracampeonato do Shakhtar, o Dynamo Kiev reconquistou o Campeonato Ucraniano em 2020/21. Estava claro que Lucescu era um Midas no país. Os ultras seguiram fazendo pressão contra o técnico, enquanto o surto de covid-19 oferecia outras limitações. Mesmo assim, os alviazuis foram bastante regulares e consagraram o veterano de 75 anos. Era a prova definitiva de seu lugar especial no futebol do Leste Europeu. Encarar o Shakhtar não era problema, e ele também conquistou a Supercopa da Ucrânia logo de cara contra o antigo time, bem como venceu um clássico decisivo na reta final do Ucraniano. De quebra, ainda faturou a Copa da Ucrânia, diante do Zorya Luhansk.
As complicações para Lucescu seriam outras no Dynamo Kiev. Especialmente quando a invasão russa na Ucrânia estourou, em 2022. Aquela temporada de 2021/22 não seria concluída, com o Shakhtar na liderança do Campeonato Ucraniano, dois pontos à frente dos alviazuis. Já depois, com a debandada de jogadores estrangeiros, os Mineiros se valeram bem mais do trabalho das categorias de base e conseguiram se impor sobre os maiores rivais. O Dynamo foi um modesto quarto colocado na retomada da liga em 2022/23 e ocupa a oitava posição na atual edição. Lucescu chegou a fazer pausas por problemas de saúde e justamente uma derrota no clássico para o Shakhtar o levou a sair de cena na última sexta.
– O legado que se reflete até no filho
Em sua despedida do futebol, Mircea Lucescu confessou como a realidade da guerra na Ucrânia impacta a motivação ao redor do trabalho. Prevalecia a preocupação com o país e com aqueles diariamente no front. Porém, não foi o conflito que o fez deixar a nação que o acolheu ao longo de 15 anos como treinador profissional. Lucescu ensinou muitas coisas aos ucranianos, e não apenas a vencer dentro de campo. A maneira como o futebol do Shakhtar auxiliou talentos locais e também a acolhida a ídolos estrangeiros são marcas de seu legado. De certa maneira, os feitos dos Mineiros se sustentam a partir do caminho que o romeno trilhou. A vitória sobre o Barcelona na Champions League nesta terça ainda tem o dedo de Lucescu, mesmo mais de sete anos depois de sua saída.
E as lições de Lucescu se notam no sucesso de seu filho, Razvan, também um treinador vitorioso. O ex-goleiro teve uma carreira bem mais limitada que o pai em campo e rodou por diferentes clubes da Romênia, mas sem trabalhar com o progenitor. Curiosamente, parte de seu sucesso aconteceu à frente do Rapid Bucareste, com o qual ganhou a liga como jogador em 2002/03 e depois duas vezes a Copa da Romênia já como treinador. Chegaria ao comando da seleção da Romênia entre 2011 e 2012, sem participar da Eurocopa. Já as conquistas mais notáveis vieram fora do país. Em 2018/19, faturou o Campeonato Grego com o PAOK e encerrou um jejum de 34 anos no clube. Logo depois se mudou para o Al-Hilal e levou a Champions Asiática de 2019, expurgando uma seca que perdurou por 19 anos. Também foi campeão saudita, antes de retornar ao PAOK em 2021. A fama dos Lucescu segue honrada pelo comandante de 54 anos, enquanto seu pai irá desfrutar de uma merecida aposentadoria.