O Depor foi (em teoria) rebaixado à terceirona, mas o tumulto na rodada final deve arrastar a briga aos tribunais
Depois de 40 anos, o Deportivo de La Coruña pode voltar à terceira divisão do Campeonato Espanhol. Os galegos sofreram seu segundo rebaixamento em três temporadas nesta segunda-feira e, em teoria, precisarão disputar a Segunda B em 2020/21. Teoria porque a rodada final caótica da segundona não permite qualquer certeza. O Depor sequer entrou em campo para defender sua honra. O time deveria encarar o Fuenlabrada no Estádio Riazor, mas a partida acabou suspensa de última hora depois que seis jogadores visitantes testaram positivo à COVID-19. Apesar da importância do duelo, que teria desdobramentos na briga contra o descenso e também pelas vagas nos playoffs de acesso, o restante da rodada seguiu em frente. E, nas últimas horas, diversos clubes manifestaram a intenção de entrar na justiça contra a situação – incluindo também o Deportivo.
O Deportivo de La Coruña atravessou a temporada na gangorra. Durante o primeiro turno da segunda divisão, passou por uma fase tenebrosa e permaneceu 19 rodadas sem vencer, amargando a lanterna. A recuperação a partir de dezembro permitiu que o Depor deixasse a zona de rebaixamento com sete vitórias consecutivas, mas as oscilações mantinham o sinal de alerta ligado. E o final da campanha não seria nada fácil aos galegos. Apesar do triunfo sobre o futuro campeão Huesca no início de julho, a equipe sofreu três derrotas nas três partidas seguintes e entrou na última rodada dentro da zona de rebaixamento. Precisava derrotar o Fuenlabrada, que brigava pelos playoffs de acesso, e ainda torcer contra os concorrentes diretos ao Z-4 – Albacete ou Lugo, um dos dois, teria que perder.
No sábado, um jogador e três funcionários do Fuenlabrada testaram positivo ao coronavírus. Apesar disso, o restante do elenco ganhou permissão de La Liga para viajar à Galícia. A prefeitura de A Coruña realizou exames com o grupo que desembarcou na cidade e detectou os outros oito infectados, sendo seis atletas, todos assintomáticos. O caos seria anunciado horas antes da partida no Riazor. La Liga preferiu suspender o embate, provisoriamente remarcado para 30 de julho. Após conversa com a federação, sob mediação do Conselho Superior de Esportes, a liga justificou que “esta era a solução que melhor protegia a saúde dos jogadores e a integridade global da competição”. Com isso, apenas este jogo seria postergado, mas não os demais duelos interligados às brigas na tabela da segundona.
Numa edição bastante acirrada da segunda divisão, outros oito jogos estariam envolvidos na definição dos rebaixados ou dos classificados aos playoffs. Com isso, os concorrentes de Deportivo e Fuenlabrada acabaram entrando em campo. Obviamente, não haveria solução de La Liga sem controvérsia e certamente muitos clubes reclamariam se o adiamento fosse geral, atrapalhando viagens e fazendo diversos elencos adiarem suas férias pelas duas semanas de quarentena, até a realização das partidas em 30 de julho. Por outro lado, esportivamente, a definição adotada nesta segunda-feira abriu bem mais margens aos problemas.
Concorrentes do Deportivo, Albacete e Lugo se salvaram do descenso. Com um gol aos 45 do segundo tempo, o Albacete derrotou o Cádiz fora de casa por 1 a 0 e respirou aliviado. Já o Lugo precisou virar por 2 a 1 contra o Mirandés, balançando as redes a cinco minutos do fim. O Numancia, que também lutava contra a queda e ganhou do Tenerife por 2 a 1, não conseguiu se salvar com esse resultados. E o Depor, mesmo que vença o jogo postergado contra o Fuenlabrada, não escapa mais do rebaixamento. Pode até igualar a pontuação da Ponferradina, mas leva a pior nos critérios de desempate. Já não terá mais motivação para barrar seus adversários dentro de campo.
Na parte de cima da tabela, o Elche fechou a noite na zona de classificação aos playoffs, mas não está garantido na briga pelo acesso. A equipe cumpriu sua missão ao bater o Real Oviedo por 2 a 1, mas pode se dar mal se o Fuenlabrada ao menos empatar com o Depor na partida adiada. Com um ponto a menos, o Fuenlabrada tem vantagem no confronto direto e, se ultrapassar o Elche, enfrentaria o Zaragoza nos mata-matas de promoção. Isso, é claro, se os tribunais não melarem o campeonato nos próximos dias.
O Rayo Vallecano (outro que almejava os playoffs) ameaça acionar os tribunais. O clube se manifestou antes mesmo de entrar em campo nesta segunda: “O Rayo Vallecano quer expressar sua mais profunda indignação ante a adulteração da competição que se tenta perpetrar. Suspender ou adiar o Deportivo x Fuenlabrada, sem adiar as outras partidas envolvidas, pode significar que Albacete e Lugo ganhem seus encontros e o Deportivo seja matematicamente rebaixado, para que saia sem forçar a disputa no duelo contra o Fuenlabrada. O Rayo Vallecano se vê obrigado a jogar sob ameaça de perda de pontos, enquanto o Fuenlabrada não se vê, sendo que eles poderiam disputar a partida com os jogadores ainda à disposição”.
Apesar da vitória sobre o Racing de Santander, o Rayo Vallecano acabou um ponto abaixo de Elche e Fuenlabrada. Segundo o técnico Paco Jémez, um jogador de seu elenco precisou ser poupado porque teve contato com os atletas do Fuenlabrada nos últimos dias e estava sob suspeita de testar positivo à COVID-19. O Elche também emitiu uma nota oficial reclamando, assim como o Oviedo, derrotado pelo Elche e que já não tinha ambições na tabela: “Nossa maneira de entender a integridade da competição, além dos possíveis riscos que podem se derivar da exposição da saúde de nossos jogadores, nos fazem estar em discordância com a decisão de jogar. Disputamos nosso jogo contra o Elche porque, se tivéssemos tomado outra decisão, poderíamos ter ficado expostos a uma sanção esportiva pela ausência”.
Fernando Vidal, presidente do Deportivo, convocou uma coletiva e endereçou palavras duras a La Liga: “Eu pensava que a rodada inteira seria adiada. A adulteração é total e absoluta. Vamos denunciar que não se cumpriu o princípio de igualdade da competição. Iremos às mais altas instâncias, foi lamentável e vergonhoso. Um clube que viola os protocolos foi beneficiado. Queremos que a rodada seja cancelada. O que precisava ser feito era adiar tudo. Dizem que somos a melhor liga do mundo, mas isso é uma verdadeira desgraça. Creio que não seremos os únicos que impugnaremos a rodada. Haverá uma chuva de protestos por uma decisão desleixada. Sabemos que o Numancia vai fazer. Tem que se repetir”.
Da mesma forma, a prefeitura de A Coruña vai pedir esclarecimentos às autoridades do futebol por consentirem a viagem do Fuenlabrada quando já se sabia dos casos positivos, o que poderia colocar em risco a saúde pública. O advogado dos jogadores do Fuenlabrada que deram positivo é filho de Javier Tebas, presidente de La Liga, o que gera ainda mais discussões ao redor dos casos e da postura da organização. Tebas, o pai, havia afirmado antes do retorno das competições que era “impossível ver um clube com três ou mais contagiados” e que, se isso ocorresse, “seria por negligência ou descumprimento das normas sanitárias”. O Fuenlabrada garante que cumpriu todo o protocolo normalmente.
A tabela da segunda divisão se encerrou com o Huesca campeão e o Cádiz vice, ambos já promovidos à primeira divisão. Zaragoza, Almería e Girona passarão aos playoffs, enquanto o Elche aguarda a situação do Fuenlabrada. Já na parte inferior da tabela, Racing de Santander e Extremadura estavam previamente rebaixados. Numancia e Deportivo de La Coruña foram os dois confirmados nesta segunda-feira. Mas é bem possível que os tribunais ao menos arrastem a segundona além de sua previsão de encerramento – agora marcada para agosto, com o postergamento dos playoffs. Por tabela, o imbróglio também pode afetar a primeira divisão e o seu próprio início.
A incerteza, além do mais, coloca em xeque o futuro do Deportivo de La Coruña. Com uma situação econômica delicada, o clube focava suas receitas em reduzir as dívidas com bancos e aliviar os débitos na casa dos €80 milhões. Na terceira divisão, semiprofissional e com menores possibilidades comerciais, os riscos se tornam bem maiores. Ainda que nada garantisse a vitória sobre o Fuenlabrada, não é isso que tira o direito dos galegos de se queixarem. Por uma decisão mal pensada, La Liga sofre um impacto enorme sobre a legitimidade de seu campeonato.