Espanha

A derrota espanhola não foi em campo, mas nos vestiários

Entre um treino e outro, a Alemanha passeou na praia, foi visitar comunidade carente, interagiu com a população local. A Holanda jogou frescobol e subiu no Cristo Redentor. A Inglaterra foi à favela e tentou uns golpes de capoeira. A Espanha não fez nada disso. Ficou fechada no CT do Caju, em Curitiba, interagiu pouco com os locais. Tudo para uma preparação séria e profissional de uma equipe que buscava o quarto título seguido em competição de altíssimo nível.

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Os espanhóis não poderiam estar mais errados. Não pela escolha que fizeram, pois Itália e Portugal também adotam o modelo mais reservado de concentração no Brasil. Mas pela ilusão de que se fechar poderia deixar o time mais focado para a Copa do Mundo. Porque as quedas diante de Holanda e Chile foram o grande vexame espanhol, mas a grande derrota mesmo foi a deterioração completa do ambiente no elenco.

Desde que a Furia virou Roja, que a Espanha eterna quadrifinalista se transformou na Espanha campeã, uma das grandes façanhas era manter o vestiário unido. Parecia que toda a animosidade que aqueles atletas protagonizavam nos clássicos entre Real Madrid e Barcelona durante a temporada ficavam para trás quando vestiam a camisa vermelha. José Mourinho perdeu força no Santiago Bernabéu justamente por exagerar na promoção do antagonismo Real x Barça, o que desagradava aos madridistas que defendiam também a seleção espanhola (a começar por Casillas, capitão das duas equipes).

Tudo isso ruiu no Brasil. Aparentemente, teve pouco a ver com a disputa entre os dois maiores clubes do país. O problema maior é que o sistema de tiki-taka deu sinais claros de desgaste e, quando foi preciso mudá-lo, cada um começou a ir para um lado.

A necessidade de mudança era clara, sobretudo porque os adversários descobriram modos de combater o sistema de posse de bola e compactação intensa. A derrota por 5 a 1 para a Holanda mostrou isso. Os laranjas (que foram azuis naquela tarde baiana) aproveitaram os contra-ataques rápidos para virar o jogo. No entanto, chamou a atenção a completa falta de resposta e de algum comando dentro de campo para a equipe se reorganizar e evitar a goleada.

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Aí se chega a duas entrevistas coletivas, uma na véspera do jogo e outra no dia seguinte. Antes da estreia na Copa, Xavi disse que o tiki-taka era a filosofia da Espanha e que aquela seleção morreria agarrada ao sistema. Depois da goleada, Xabi Alonso e Fàbregas falaram justamente o oposto: era necessário mudar urgentemente.

Discordâncias acontecem dentro de todos os grupos de trabalho do mundo, mas, dentro do código de ética do futebol, não se expõe um choque tão grande de opiniões ao público. Quando isso ocorre, geralmente é porque a coisa está insustentável.

A partir daí, a seleção espanhola foi um show de horrores. O técnico Vicente del Bosque disse que pensa em todos os jogadores, mas os jogadores só pensam em si próprio. Fàbregas foi retirado do time em um treino e, irritado, pegou a bicicleta e voltou para o hotel. Xavi anunciou o fim de sua carreira com a camisa espanhola sem conseguir esconder a mágoa e decepção como isso está ocorrendo. Pior, as indicações pré-jogo são de que ele nem terá a chance de encerrar sua trajetória como titular no jogo contra a Austrália que só serve para cumprir tabela.

E tudo isso é o que se viu ou se descobriu dentro desse ambiente fechado de trabalho que a Espanha adotou. Não seria nada surpreendente se, a partir do momento em que a delegação voltar à Europa e os jogadores saírem de férias, relatos de conflitos comecem a pipocar na imprensa espanhola.

Por isso, a maior derrota dos atuais campeões mundiais não foram em campo, mas fora. Se o ambiente está tão deteriorado quanto parece, será preciso um trabalho muito intenso para aparar arestas. Talvez tenha de ser montado um time muito renovado, limpando a área dos jogadores que centralizavam esses atritos para trazê-los de volta aos poucos. O problema é que esse processo pode demorar muito tempo. A França passou por isso após a Copa de 2010 e só conseguiu a química ideal no final de 2013. No processo, teve de engolir uma Eurocopa decepcionante e uma demissão de técnico.

Menos mal para a Espanha é que não faltam jogadores jovens de talento para formar uma nova base. Mas a questão não é apenas de nome, mas de sistema de jogo e ambiente de trabalho. E isso pode demorar um pouco mais para se estabelecer.

Foto de Ubiratan Leal

Ubiratan Leal

Ubiratan Leal formou-se em jornalismo na PUC-SP. Está na Trivela desde 2005, passando por reportagem e edição em site e revista, pelas colunas de América Latina, Espanha, Brasil e Inglaterra. Atualmente, comenta futebol e beisebol na ESPN e é comandante-em-chefe do site Balipodo.com.br. Cria teorias complexas para tudo (até como ajeitar a feijoada no prato) é mais que lazer, é quase obsessão. Azar dos outros, que precisam aguentar e, agora, dos leitores da Trivela, que terão de lê-las.
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