Como, em crise, o Barça contrata tanto? Num mercado que virou reality show, a pergunta é: por que não?
O curioso caso do Barcelona é sintoma de um futebol que ficou completamente maluco
Em 8 de agosto de 2021, Lionel Messi subiu no pódio da sala de entrevistas do Camp Nou e chorou, genuinamente, porque o clube da sua vida não tinha mais dinheiro para inscrevê-lo no Campeonato Espanhol. Parecia que estava sendo exilado, condenado a ligar para um caminhão de mudança, e o Barcelona sofria a maior das punições pelos anos de irresponsabilidade econômica. Foi obrigado a abrir mão do maior (ou segundo) jogador da sua história. Certamente o mais vitorioso. O mais talentoso. O futuro era incerto. As contas, um pesadelo. Todo mundo fazendo subtração, adição e divisão para saber quem poderia ser registrado. Limite salarial negativo. Dívida na casa de € 1 bilhão. A cerca de duas semanas do aniversário desse evento sísmico, você não consegue abrir o celular sem ver uma foto de Robert Lewandowski, duas vezes eleito o melhor jogador do mundo, com a camisa do Barcelona, a cereja no bolo de mais um ótimo mercado catalão, porque o de janeiro também foi bastante interessante, e o fato de que tudo isso é verdade ao mesmo tempo, e que até onde se sabe nenhuma regra foi burlada, é extremamente confuso.
Desde que Messi foi sentenciado a morar em Paris, o Barcelona contratou Pierre-Emerick Aubameyang, Daniel Alves, Ferrán Torres, Franck Kessié, Andreas Christensen, Raphinha e Robert Lewandowski. Adama Traoré passou seis meses por empréstimo. Um observador modesto do futebol europeu, sentado à mesa com Joan Laporta, levantaria a mão para perguntar: senhor presidente, não dava para desistir de uns dois ou três desses para continuar com o Messi? Talvez não desse. Tem uma questão de timing. Jogadores foram negociados para reduzir os custos da folha salarial, dentro da engenharia financeira do Fair Play de La Liga, que será um pouco detalhado em breve. Mas a pergunta que todos estão fazendo neste momento é: mas o Barcelona não estava quebrado? Como ele está contratando tanto? Perfeitamente compreensível porque existe uma dissociação clara entre discurso e prática. Mas não é a pergunta mais pertinente. A pergunta certa é: por que ele está contratando tanto?
A outra esta muito bem documentada. Joga no Google e tem oito textos (sim, este é mais um), cinco vídeos e três TikToks na primeira página. O correspondente inglês na Espanha, Sid Lowe, fez um texto bem didático, traduzido ao português pelo site da ESPN. Se você souber ler em inglês, e quiser ainda mais detalhes, este fio do perfil Swiss Ramble, especialista no assunto, é muito bom. Simplificando, La Liga analisa as contas dos clubes e determina um teto salarial para o time de futebol. No caso do Barcelona, esse teto é de € 144 milhões negativos, o que significa que ele precisa, por aumento de receitas ou redução de despesas, chegar a esse valor mais o que gastaria com vencimentos na próxima temporada. Enquanto estiver acima do teto, pode investir 33% do que economizar (era 25%, foi aumentado para esta janela). Ou seja, economiza 30 milhões em salário, tem direito a inscrever um jogador de 10 milhões.
É importante que essas regras fiquem claras porque elas são a verdadeira novidade. Nós somos brasileiros! Fazer muitas contratações em meio a uma crise financeira é o que fazemos de melhor. Como clubes com R$ 1 bilhão de dívida pagam empresários, jogadores, salários, conta de luz, pedem um Uber? Como o Barcelona deve € 1,3 bilhão e solta € 50 milhões no Lewandowski? Primeiro, o valor às vezes não é pago à vista, mas em parcelas e variáveis, e, na contabilidade, amortizado ao longo do contrato do jogador. Segundo, clubes em dívida ainda geram receita. A do Barcelona, aliás, em meio à pior crise financeira da sua história, ainda foi a quarta maior do mundo em 2020/21, perto de € 600 milhões e das que estão à sua frente, e isso porque o clube foi severamente afetado pela pandemia. É uma questão de escolher o que fazer com o dinheiro e da natureza da dívida. O Barcelona tomou um empréstimo para reestruturar a sua e reduzir a de curto prazo (que precisa ser paga em até 12 meses). Se não fossem as regras financeiras de La Liga e a midiática saída de Messi, ele simplesmente estaria contratando como sempre fez e sua planilha de gastos seria muito menos interessante.
O Barcelona precisa correr atrás de entre € 600 milhões e € 700 milhões para ficar de boa. Ele está tentando fazer isso vendendo algumas propriedades. Fechou um acordo de patrocínio com o Spotify que incluiu os naming rights do Camp Nou. Vendeu 10% dos seus direitos de televisão de La Liga por 25 anos a uma empresa de investimentos dos EUA por € 207,5 milhões. Considera vender mais 15%. Também negocia a BLM, uma companhia criada para gerenciar seu marketing e licenciamento. Todas as vezes que arrecadar uma bolada dessas, aciona o que estão chamando de “alavanca” que abre espaço dentro do Fair Play Financeiro para que ele possa registrar reforços. Sim, está vendendo o almoço para pagar a janta. Comprometendo rendas futuras para ter alívio no presente. É a essência do malabarismo que tem feito. Esse é o como. Agora vamos entrar no por que e a resposta mais simples é: por que não?
A começar que o pior que poderia acontecer já aconteceu. Messi está comendo croissants. E como questionou Jonathan Liew, do The Guardian, qual incentivo o Barcelona teria para adotar uma estratégia mais comedida em um mercado no qual Manchester City e Paris Saint-Germain desrespeitaram as regras financeiras durante anos e mal levaram um beliscão no braço? O futebol europeu se aprofundou em uma lógica insana em que é difícil dizer o que é dinheiro de verdade. O próprio presidente do Barcelona não contribuiu. Pouco depois de perder Messi, Laporta disse que havia recebido uma herança “desastrosa” e que a situação financeira era “dramática”. Cinco meses depois, estava apresentando Ferrán Torres e dizendo que ele representava que o Barcelona era líder no mercado de transferências novamente. Que rápido. Mas em fevereiro falou em “posição muito complicada” e que La Liga lhe havia dito que nem com “€ 600 milhões teria margem salarial”. E no começo de julho saiu de uma reunião com Jorge Mendes falando que não poderia descartar Cristiano Ronaldo.
O mesmo cara que diz que não tem dinheiro diz também que não tem nenhum motivo para não considerar a contratação de Cristiano Ronaldo, e não existe, sinceramente, nenhuma outra indústria em que uma coisa dessas é possível porque é esse o jogo em que o futebol se transformou. É como se Laporta fosse o Dr. Jekyll e o Mr. Hyde, o médico que explana detalhadamente a situação financeira precária do Barcelona, e o monstro que vende ilusões porque não quer correr o risco de passar uma semana sem aparecer no Twitter do Fabrizio Romano. Ele precisa fazer as duas coisas ao mesmo tempo porque a crise financeira é real, mas a roda também precisa girar. O Barcelona precisa projetar ambição para apaziguar torcedores, impressionar patrocinadores, encher as colunas do Mundo Deportivo e participar do circo midiático dos Superclubes. A tragédia do futebol hoje em dia é que ele é um dos poucos lugares onde o “fake until you make it” realmente funciona – “finja que é até conseguir ser”.
Não pense nem por um segundo que é um problema exclusivo do Barcelona. Sua maior derrota talvez seja ter virado exatamente o que acusava o Real Madrid de ser. O Projeto Galático seguia a mesma lógica. O seu idealizador, Florentino Pérez, estava tentando convencer o mundo de que era necessário destruir as estruturas do futebol europeu com a Superliga para salvar o futebol da falência e, quando não conseguiu, mudou de assunto: e se a gente contratasse o Mbappé? E o contrataria, se Mbappé tivesse topado. De qualquer maneira, trouxe alguns bons reforços e a crise existencial se transformou no 14º título europeu e mais uma conquista em La Liga. Talvez tenha começado com os Zidanes e Pavones, e a chegada dos donos bilionários intensificou o processo. A lenda era que no começo Roman Abramovich nem tentava negociar. Quanto você quer? Ok, fechado. Teve um mercado em que o Paris Saint-Germain decidiu gastar (comprometer é o termo mais preciso) mais de € 400 milhões de uma vez só em dois jogadores. O mesmo PSG que depois de dez anos montando times sentiu a necessidade de publicar um texto em seu site dizendo que agora passaria a montar um time de verdade. O que estava fazendo antes? Estava comprando David Luiz e o devolvendo para o mesmo clube dois anos depois por 70% do que havia pagado. O Chelsea comprou Lukaku por € 100 milhões, a gloriosa volta para casa, o sonho de seguir os passos de Drogba, e não teve paciência de esperar mais de um ano antes de devolvê-lo à Internazionale.
A Sky Sports teve um papel importante nisso, transformando o dia do fechamento em um grande reality show, estrelando Harry Redknapp, e aqui podemos fazer um mea culpa também porque fomos o primeiro site brasileiro a fazer ao vivo do último dia do mercado, e ainda é algo que adoramos fazer. Desde a final da Champions League, as transferências na Europa foram o principal foco da nossa cobertura, no vácuo deixado pela Copa do Mundo marcada para novembro. Pelo menos, esperamos o anúncio oficial. O próprio conceito de um insider de transferências é absurdo. Por que é algo que tem que ser antecipado? Qual o risco? Que o Barcelona contrate Lewandowski e não conte para ninguém? Que ele jogue a temporada inteira vestindo uma balaclava? Mas no mundo da produção de conteúdo as especulações, o passo a passo da negociação, as escalações projetadas e o quebra-cabeça de montagem de elenco geram um conteúdo de altíssimo grau de entretenimento em um momento no qual mais nada está acontecendo. Dão assunto para discutirmos no podcast, para as mesas redondas da televisão, para os jornais, para os sites e para as redes sociais. O mais famoso jargão recente do futebol é Here We Go.
E eu entendo. Voltei a jogar Football Manager recentemente e a dose de dopamina é forte quando aparece “Lautaro Martínez certo no Liverpool” na caixa de entrada. É extremamente viciante partir de um orçamento de transferências para preencher um elenco de 20 a 25 jogadores, pensando em quem vai ser titular, quem tem qualidade para ser reserva, mas não tanta que vai reclamar, para quem eu vou emprestar meu principal miúdo maravilha, quem joga de mezzala e quem é médio área-área e assim por diante. No meu caso, porém, a consequência real são apenas duas horas de sono a menos por noite, muito mais administrável do que o ponto de ruptura do qual o futebol está se aproximando. Na realidade, me expressei mal. O ponto de ruptura já chegou e foi apenas adiado. Foi a Superliga Europeia: os clubes levaram o futebol europeu a um patamar financeiro tão extraordinariamente absurdo que a implosão dos seus alicerces foi vista como a única solução. Pressionados pela pandemia, os fundadores preferiram esse caminho em busca de aumentar as receitas e nem cogitaram baixar os gastos. É um comportamento auto-destrutivo: se eu já estou tossindo, por que vou parar de fumar?
Paulo Dybala recusou uma proposta de renovação da Juventus achando que ganharia mais se estivesse livre no mercado e nesta quarta-feira foi anunciado pela… Roma. Ganhando menos. Ousmane Dembélé fez a mesma coisa: não quis renovar por um patamar salarial mais baixo com o Barcelona, colocou o pezinho na água, estava fria, e ele voltou aceitando um patamar salarial mais baixo. Existe a absurda (desculpe o uso excessivo da palavra, mas, o que eu vou fazer? É tudo um absurdo nessa história) e verdadeira avaliação de que ninguém pode contratar Neymar, ainda um dos dez melhores jogadores do mundo, porque ninguém pode pagá-lo. Cristiano Ronaldo vai acabar ficando no Manchester United porque também ninguém pode pagá-lo. O Real Madrid só faltou colocar um anúncio no Mercado Livre – “vendo galês fã de golfe com uma ótima perna esquerda” – e não apareceu ninguém querendo bancar os vencimentos de Gareth Bale. O Barcelona teve que sair emprestando um jogador pelo qual pagou mais de € 130 milhões porque ninguém queria tolerar o salário de Philippe Coutinho e o acabou vendendo por € 20 milhões para o Aston Villa. Na ânsia de participar do circo, os clubes oferecem salários maiores do que o mercado consegue suportar e isso tudo veio à tona de uma vez em parte porque a pandemia obrigou muitos clubes não-petrolíferos a colocarem os pés no chão.
Como o Barcelona. Exceto que o Barcelona tem alguns ativos mais caros que o barril de óleo bruto. Ele mantém uma aura impressionante que leva jogadores como Lewandowski a ativamente escolhê-lo após sua pior temporada em 15 anos. A Coutinho ameaçar destruir o que havia construído no Liverpool pelo sonho de jogar no Barcelona. A Raphinha esnobar o Chelsea – mesmo em momento de transição, mais estruturado – pelo sonho de jogar no Barcelona. Kessié, Christensen e até Aubameyang estavam livres no mercado. Poderiam ir para qualquer lugar. Foram para o Barcelona. É também uma crença de que o Barcelona sempre brigará pelos títulos, sempre terá ambição, sempre fará tudo possível para ser competitivo, e é por isso que Laporta precisa vender ilusões. Ele projeta o clube como o maior do mundo, alguns acreditam, de repente ele tem realmente um dos melhores times do mundo, e mais alguns acreditam. E se está comprometendo receitas futuras para viabilizá-lo, quem se importa, de verdade? Ninguém sabia que a BLM existia antes dessa novela toda. Laporta estará confortável em uma casa de repouso quando a conta chegar, e a qualquer momento pode aparecer um xeique querendo pagar € 250 milhões por um dos jogadores dele. A qualquer momento pode surgir uma nova sensação de La Masia com potencial de mercado para recuperar parte desse dinheiro. É o famoso Grande Demais para Falir.
O curioso é que o Barcelona é um dos poucos Superclubes que não precisava tomar esse caminho. Antes deste branding atual, ele tinha um outro, que também fazia muito sucesso, o do Mais Que Um Clube, o da maior fábrica de talentos do mundo. Se dissesse que tiraria dois anos de gastos modestos para reestruturar as contas, apostando nas categorias de base, formando um time do qual a Catalunha se orgulharia, seria bem recebido por uma boa parte da sua base de torcedores locais. Mas é muito mais divertido (e rápido) fazer do outro jeito, e também, por que não?