Um dos maiores leões de Camarões, Aboubakar teve sua jornada indomável na Copa do Mundo
Aboubakar já era eterno numa final de CAN decidida aos 43 do segundo tempo, mas teve seu grande momento em Copas ao marcar um golaço abusado na improvável reação de Camarões

Um jogo de Copa do Mundo basta como passagem à eternidade. E para a seleção de Camarões, a mais identificada com o torneio entre as africanas, mesmo que as glórias pareçam cada vez mais restritas ao passado, um nome ao panteão de leões indomáveis se adiciona nesta segunda-feira: Vincent Aboubakar. O centroavante já tinha um lugar especial na memória dos compatriotas, é verdade. Sempre entregou demais à seleção, como herói num título de Copa Africana de Nações e artilheiro numa outra edição do certame em casa. Mas faltava aquele instante no Mundial, a memória inoxidável. E ele pintou de maneira brilhante, num 3 a 3 contra a Sérvia que, se não ajuda tanto os camaroneses em termos de tabela, alimenta o brio de todo o país. Aboubakar saiu do banco, mudou o jogo, fez gol e deu assistência. Sua pintura é sublime, entre drible e definição, retrato de sua imensidão na seleção.
A Copa de 2022 é a terceira da carreira de Aboubakar. O centroavante tinha apenas 18 anos quando estreou pela seleção de Camarões às vésperas do Mundial de 2010 e pintou na África do Sul. Até entrou em duas partidas, sem muito tempo para se mostrar, numa campanha que terminou com três derrotas. Mas já serviria de aviso ao que viria na carreira do matador. Quatro anos depois, Aboubakar estava de volta. Os Leões Indomáveis novamente sofreram três derrotas na fase de grupos da Copa de 2014. Numa seleção que parecia apenas um arremedo de suas glórias mundialistas, o centroavante não evitou a desgraça.
Àquela altura, Aboubakar começava a viver bons momentos por clubes. Teve dois dígitos de gols com o Lorient no Francês, com o Porto no Português e com o Besiktas no Turco. Não era uma unanimidade como centroavante, mas conhecia o atalho para as redes, entre sua imposição física e um toque de malícia às vezes ignorado por quem só via tamanho. Mas se em nenhum desses times Aboubakar pôde encher a boca para se dizer ídolo, essa história mudaria em Camarões. Deixou de ser apenas expectativa e virou realidade, curiosamente num período em que nem se esperava tanto da seleção.
Camarões passava abaixo do radar na Copa Africana de 2017. O próprio Aboubakar não andava com muito moral e esquentava o banco no time de Hugo Broos. Foi quando o centroavante se alçou a ares talismânicos. Saiu do banco para dar a assistência que fechou os 2 a 0 sobre Gana na semifinal. Era só um aviso, porque seria ele o herói na final contra o favorito Egito. Também vindo da reserva, o matador estava pronto para decidir e cravou a virada por 2 a 1 aos 43 do segundo tempo. Entrava numa lista seleta de lendas da CAN, num dia transformador em sua carreira. A partir de então, a impressão era de que tudo em que tocava na seleção virava ouro. Ou em seu caso, gols.
Obviamente, com uma seleção de Camarões abaixo da crítica, nem tudo seria festa para Aboubakar. O time não se classificou para a Copa do Mundo de 2018. O ciclo de 2022, em compensação, impulsionou um pouco mais a mística do centroavante. Agora com a braçadeira de capitão, anotou gols importantes para a volta ao Mundial e, sem participar diretamente, estava em campo na maluca prorrogação contra a Argélia que selou a passagem rumo ao Catar. Antes disso, já tinha arrebentado na CAN 2022, realizada nos estádios camaroneses. Aboubakar estava encantado naquela competição. O capitão marcou seis gols nas quatro primeiras partidas, vencendo desconfianças que existiam ao redor dos anfitriões. Os Leões Indomáveis alcançaram as semifinais e o matador terminou o torneio com oito tentos, mais dois na decisão do terceiro lugar. Virou o segundo maior artilheiro em uma única edição da Copa Africana, na maior marca em 48 anos.
E se a memória estava fresca pelos gols aos montes no início de 2022, sua ausência na equipe titular para a Copa do Mundo ainda assim tinha sua explicação plausível. Eric-Maxim Choupo Moting é quem chegou voando no Catar, por sua fase no Bayern de Munique. Aboubakar não vinha no mesmo ritmo, fora da elite do futebol de clubes desde que se mudou ao Al Nassr. O que não deu pra entender foi a resistência do técnico Rigobert Song em usar os dois em algum momento do jogo contra a Suíça na estreia. Quando os camaroneses precisavam de mais agressividade em campo, o treinador trocou seis por meia dúzia. Aboubakar veio na vaga de Choupo Moting e não evitou a derrota, num fim de partida inócuo dos africanos.

O desenho do embate contra a Sérvia seria diferente nesta segunda-feira. Camarões ainda fez um primeiro tempo agressivo, com o primeiro gol e outras boas chances, por mais que a força dos sérvios tenha ficado expressa na virada durante os acréscimos. E quando os adversários começaram a dar totó, num terceiro tento que botou os camaroneses na roda, era hora de tentar algo diferente. Aboubakar era o super trunfo na manga. Enfim, ganhou espaço ao lado de Choupo Moting, em campo aos dez minutos do segundo tempo. Formou uma das duplas de ataque mais legais da Copa, que precisou de dez minutos para mudar a história do jogo.
É verdade que a reação de Camarões tem muito de displicência da Sérvia. Mas tem muito mais da mística de Aboubakar, e isso precisa ficar marcado. O segundo gol pareceu um lance de amistoso. Ao receber o lançamento de Jean-Charles Castelletto, nem mesmo o centroavante acreditou que sua condição era legal, mas continuou a jogada. Como provavelmente nem valeria mesmo, ele resolveu então abusar da classe, contra uma defesa que também sugeria ter desistido.
A finta de Aboubakar no instinto, que faz o zagueirão que vinha babando por trás passar lotado no carrinho, é humilhante. Pois teria mais. Diante de um grandalhão como Vanja Milinkovic-Savic, em cima para abafar, o camisa 10 encontrou a solução com uma cavadinha “jornada nas estrelas”. Talvez um drible ou um chute rasteiro fossem atalhos mais curtos para as redes, mas o lance se sugeria morto mesmo e dava para fazer uma graça. Se fosse para gastar, mandar a bola lá no alto era o único ângulo possível para vencer o goleiro. A parábola perfeita não apenas para que a bola despencasse indefensável nas redes, mas também para que o arqueiro corresse desesperado e à toa. O quadro estava pintado. Era uma baita de uma cena. Uma baita de uma cena que, a olho nu, parecia não significar nada, diante da inocente certeza de que o gol não valeria.
Nem Aboubakar acreditou, afinal. Não comemorou o gol espetacular porque achava que tinha partido em impedimento. Os próprios jogadores da Sérvia pareciam confortáveis com a decisão da arbitragem. Mas eis que a tecnologia indica que o corpanzil do centroavante estava na mesma linha de um fiapo de material sintético da chuteira do último zagueiro. Sim, o golaço era real e poderá ser passado por décadas em vídeos de pinturas das Copas, talvez o mais sublime dentre os marcados por cobertura na história do torneio. O místico camisa 10 de Camarões estava livre para sua indomável comemoração.
A Sérvia se perdeu ali. Camarões não, porque tinha Aboubakar. E a bola lançada para o centroavante explosivo se repetiu logo na sequência, para o terceiro gol, que rendeu um inimaginável empate. Dessa vez nem havia dúvida sobre a posição legal do camisa 10, com a bobeada repetida por Nikola Milenkovic. O goleador partiu livre e não foi nada egoísta, ao dar um tapa para que o companheiro Choupo-Moting também celebrasse seu primeiro gol neste Mundial. Dava até a impressão de que uma virada camaronesa se tornava palpável. Não veio, o que não anula a durabilidade das memórias criadas por Aboubakar nesta tarde quente de Doha. Aqueles dois estalos ficarão nos corações dos camaroneses por muito tempo.
Camarões ainda tende a cair na fase de grupos mais uma vez. Não é a seleção de outros tempos. Mas também mostra que não é tão fraca quanto muitos previam antes do Mundial, vide o trabalho dado contra a Suíça. O Brasil não pode menosprezá-los e, em hipótese alguma, ignorar a mística ao redor de Aboubakar. Ser herói da seleção em repetidas ocasiões vale uma carreira inteira ao centroavante. Os camaroneses sabem que podem contar com seu leão indomável. Aos 30 anos, Aboubakar tende a não ter muitas oportunidades mais em Mundiais, talvez mais um. Mas não desconfie se ele, após sua aposentadoria, receber uma ligação do presidente para ajudar seu país. Há precedentes e, se o camisa 10 não é Roger Milla, ele honra como poucos o legado do dançante leão-rei dos camaroneses.