Copa do Mundo

Se faltou mais qualidade, poucos times nessa Copa tiveram tanta estratégia e coração quanto a Austrália

O técnico Graham Arnold chegou ao Mundial sob desconfianças, com um elenco limitado, mas conseguiu superar os prognósticos com um time muito organizado

A Austrália era um time bastante menosprezado às vésperas da Copa do Mundo. E não sem razão. Os Socceroos sofreram nas Eliminatórias na Ásia e também não mostraram muito na repescagem contra o Peru. Olhando para o elenco, o atual sequer se aproximava de equipes anteriores do país. No entanto, o time de Graham Arnold deixa o Mundial como um dos mais vibrantes de se assistir. Não por qualidade, mas por coração. Se quando precisava encarar adversários de nível mais baixo a Austrália não pegou no tranco, a equipe reconheceu suas limitações e cresceu contra os oponentes mais qualificados. Não tinha muitos recursos, mas deu trabalho através de organização e estratégia. Sai da Copa botando a Argentina sob apuros no final e com um dos melhores trabalhos táticos do Mundial.

O técnico Graham Arnold teve que se virar com o que tinha em mãos. O elenco atual passa longe da capacidade do time de 2006, o melhor do país em Copas, cheio de jogadores com carreiras grandiosas na seleção e também na Europa. Mesmo em aparições posteriores no Mundial, quando parte dos astros se aposentaram e Tim Cahill acabava sobrecarregado, os Socceroos sugeriam mais recursos. Porém, não há apenas uma forma de se jogar futebol. E talvez esse tenha sido o grande mérito dos australianos na competição. Trabalharam bem mais naquilo que poderia dar certo e não se importaram com o que faltava.

A estreia contra a França terminou em goleada, mas não foi uma atuação ruim da Austrália. Os Socceroos começaram bem, marcaram o gol e poderiam ter ampliado. Criaram outras chances, mas nem sempre é fácil segurar um adversário com tantos talentos individuais e ainda tão azeitados. A Copa dos australianos começou mesmo depois. A partir da Tunísia, um adversário mais acessível, mas ainda assim superior. Graham Arnold conseguiu montar seu time para travar o meio-campo adversário e ter um escape rápido no contra-ataque, a partir do pivô. Mitchell Duke foi brilhante no lance do gol solitário. A partir de então, era segurar o resultado. Mentalmente, os australianos saíram mais fortes.

E o espírito na rodada final era totalmente distinto. A Dinamarca vinha pressionada, sem uma definição sobre seu time, sem uma cara. Bem diferente da Austrália, isenta de maiores responsabilidades, mas ainda esperançosa na definição. Seu trabalho seria parecido, mais voltado para bloquear a criação dos dinamarqueses. Enquanto os escandinavos abusavam dos gols perdidos, os azarões precisavam só de um golpe. Ele veio em outra jogadaça em velocidade, muito bem construída. Matthew Leckie ainda seria excepcional na conclusão, se confirmando como diferencial técnico dessa geração. Com a vantagem estabelecida e uma Dinamarca perdida, os australianos precisaram mais de concentração do que propriamente de esforço na reta final.

Passar para as oitavas era excelente para a Austrália. E a equipe poderia fazer um jogo contra a Argentina que não diferia de sua especialidade, ainda que com ajustes. A compactação dos Socceroos demonstra o alto nível de organização do time. Ao mesmo tempo, Graham Arnold priorizou fechar o meio e travar as tabelas que deram certo para os argentinos contra a Polônia. Havia um pouco mais de espaço nas pontas, exatamente onde a Albiceleste tem alternativas piores – ainda mais sem Ángel Di María. Os australianos se defendiam muito bem e permitiram só duas finalizações dos oponentes no primeiro tempo inteiro. O problema é que uma delas seria de Lionel Messi. Quando Nicolás Otamendi domina errado e o camisa 10 aparece de repente, a marcação congela por um segundo. É o tempo suficiente para o gol.

Talvez tenha faltado mais escape para a Austrália no primeiro tempo. As ligações diretas dessa vez não deram certo, apesar da briga constante de Jackson Irvine, e a única chegada mais perigosa veio numa bola parada, travada na área. Também não era uma Argentina tão nervosa quanto a que se viu diante do México, na qual dava para subir mais a marcação. Enzo Fernández era um desafogo melhor. Os australianos fizeram o que imaginaram ser o melhor para arrastar pelo menos o empate e tentar aproveitar mais o físico com o desgaste do segundo tempo.

O grande erro da Austrália na noite foi de Mat Ryan. Não dá para aceitar que o goleiro tente driblar dentro da área e perca a bola como ocorreu. Foi o único momento em que os Socceroos esqueceram de fazer o simples. Até então, a Argentina tinha finalizado só quatro vezes na partida. A Albiceleste relaxou e contribuiu para que os australianos avançassem em campo, mas tirar dois gols era bem mais difícil que só um. Foi o que se viu, mesmo que os jogadores que viessem do banco de Graham Arnold tenham contribuído bem mais que os substitutos utilizados por Lionel Scaloni.

A Austrália, de qualquer forma, não deixou de acreditar. E deu sorte, quando a finalização de Craig Goodwin desviou no meio do caminho para acabar nas redes. Faltavam cerca de 15 minutos para um gol. Se não veio, foi por pouco, porque a Argentina sentiu o risco. Aziz Behich quase marcou um gol de placa ao driblar meio time e ser travado na hora exata. Harry Souttar foi para o ataque e merecia uma atenção constante no jogo aéreo. A Albiceleste só teve um respiro mesmo quando Messi quis ser o senhor do tempo no final. E foram oito finalizações, das 14 do time na partida, depois dos 43 minutos. Mesmo assim, a Austrália se safou e quase empatou com Garang Kuol, não fosse Emiliano Martínez crescer para cima do garoto na estocada final.

Não foi o resultado esperado, mas, estrategicamente, a Austrália está entre as melhores seleções da Copa. Conseguiu fazer muito com pouco. E não que seja uma equipe de todo descartável, longe disso. A linha defensiva fez uma senhora Copa, em especial Harry Souttar, monstruoso contra Tunísia e Dinamarca. Ao seu lado, Kyle Rowles também merece menção. O meio-campo operário teve em Aaron Mooy um termômetro importante. E se o time foi tão longe, os estalos ofensivos de Leckie e Duke valeram demais.

Foi interessante ainda a escolha de Graham Arnold ao colocar Garang Kuol nos minutos finais. O garoto de 18 anos é um dos mais jovens da Copa e uma das maiores esperanças da Austrália. Filho de refugiados do Sudão do Sul, nasceu no Egito e acabou acolhido por programas sociais australianos. E escreve sua história na bola, a ponto de estourar no Central Coast Mariners e já acertar sua transferência para o Newcastle rumo à próxima janela de transferências. Sequer tinha entrado nas duas últimas partidas, mas virou uma carta na manga e quase resolveu. Seu chute agonizante não entrou, mas o futuro parece aberto para dias melhores.

Enquanto isso, Graham Arnold deve receber uma grande recepção na volta à Austrália. É uma história de redenção. Nos tempos de centroavante, o atacante não conseguiu disputar uma Copa nas quatro vezes em que disputou as Eliminatórias, com três quedas na repescagem – as mais dolorosas contra a Argentina em 1993 e contra o Irã em 1997. Depois que virou assistente técnico, participou dos Mundiais de 2006 e 2010, mas ainda não era o pleno reconhecimento por sua história. E se as críticas ao longo do ciclo atual foram justas, a confiança da federação australiana também se pagou. É difícil imaginar essa jornada tão bonita sem o treinador.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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