Ounahi foi completo contra a Espanha, e durante os 120 minutos – nada mal para quem jogava a terceirona francesa há dois anos
Fã de Iniesta durante a infância, Ounahi estreou por Marrocos em janeiro e fez de tudo um pouco contra a Espanha: correu, passou, desarmou, driblou, criou - e cresceu até mais quando seu time estava desgastado

A Copa do Mundo é o palco perfeito para consagrar heróis. Pode até ser que eles nem atinjam uma carreira de tanto sucesso assim, mas o Mundial é sempre um caminho à posteridade. Pelo que foi a entrega de Marrocos na classificação contra a Espanha, difícil destacar um nome só. Bono pegou os pênaltis. Achraf Hakimi fez o país em que nasceu desmoronar com sua cavadinha. Sofiane Boufal gastou a bola com seus dribles. Sofyan Amrabat era um leão na cabeça de área. Hakim Ziyech seguiu como termômetro de talento. Romain Saïss ficou em campo até o limite físico. Nayef Aguerd executou desarmes fantásticos. E, mesmo assim, Azzedine Ounahi merece menção especial, não apenas por ser um dos mais jovens da equipe titular, com boas chances de estourar aos 22 anos, mas também porque ninguém teve uma atuação tão completa quanto o camisa 8. Jogou demais e serviu de escape quando as pernas marroquinas pesavam. Foi seguro e técnico, com uma capacidade que nem parece indicar um novato que só estreou na seleção em janeiro e estava na terceirona francesa há dois anos.
A formação de Ounahi pode ser considerada um orgulho para a federação de Marrocos. O país montou uma academia para o desenvolvimento de jogadores inspirada na francesa Clairefontaine, com uma estrutura de última geração para aprimorar os principais talentos do país. Foi por lá que o meio-campista se moldou, na Academia Mohammed VI, pinçado após iniciar nas categorias de base do Raja Casablanca. Naquela época, tinha justamente Andrés Iniesta como seu principal modelo: um jogador mais franzino, tal qual o marroquino, mas de qualidade e inteligência. A formação junto à federação auxiliaria o garoto a abrir suas primeiras portas na Europa. Quando tinha 18 anos, assinou com o Strasbourg, ainda nos times juvenis.
Ounahi não ficou no Strasbourg por muito tempo. Precisou se encaixar no pequeno Avranches, da terceira divisão do Campeonato Francês em 2020. Numa competição de muito contato físico, ele tentava atuar com simplicidade e velocidade. Desenvolveria-se praticamente como um fundista, incansável, e sem perder qualidade. Uma temporada no time principal bastou para mostrar que o lugar do meio-campista não era aquele. Méritos também do Angers, que o descobriu e o levou em 2021/22. A partir de então, o novato estabeleceu até o recorde de quilômetros percorridos em uma partida da Ligue 1, 14 no total, assim como virou um dos líderes em dribles do campeonato, só abaixo de Lionel Messi.
No Angers, Ounahi se tornou companheiro de Sofiane Boufal. E os dois acabaram compartilhando não apenas o ambiente do clube, mas também da seleção, que logo perceberia como a ascensão meteórica permitia desafios maiores ao meio-campista. Após atuar pelos Leões do Atlas na base, Ounahi ganhou a inédita convocação em dezembro de 2021. Virou uma aposta a menos de um ano da Copa do Mundo e, naquele momento, já estaria presente numa Copa Africana de Nações.
Dá para dizer que Ounahi foi um achado do técnico Vahid Halilhodzic. O meio-campista estreou na CAN como titular e disputou duas partidas da fase de grupos no 11 inicial, mas acabou deixado de lado nos mata-matas. Os marroquinos caíram nas quartas, diante do Egito. A confirmação do talento do novato, de qualquer forma, aconteceu na fase decisiva das Eliminatórias. Marrocos pegou a República Democrática do Congo e teve problemas no empate por 1 a 1 em Kinshasa. Reserva na ida, Ounahi entrou no time em Casablanca. Acabou com a partida, autor de dois gols na goleada por 4 a 1, que levou os marroquinos ao Mundial. Mandou uma sapatada de fora da área no primeiro, apareceu na área para fazer o terceiro e ainda gerou o rebote do quarto.
Halilhodzic seria demitido por Marrocos, mas não era isso que custava o moral de Ounahi na seleção. O meio-campo da equipe estava montado com a presença certa do garoto, ao lado de Sofyan Amrabat e Selim Amallah. O que fez o novo treinador, Walid Regragui, foi estabelecer um estilo de mais pegada para beneficiar a trinca central. Os marroquinos contam com zagueiros de qualidade elevada, laterais excepcionais, pontas muito habilidosos. Mas quem impulsiona a intensidade vista na Copa do Mundo, sobretudo, são os meio-campistas. Não seria possível sem o esforço de Ounahi, incansável, mas ainda assim inteligente e técnico.
Durante a fase de grupos, Ounahi fez partidas mais contidas por Marrocos. Foi um jogador importante pelo equilíbrio no meio-campo e no combate defensivo, mas sem demonstrar tanto seu escape no ataque, como nas Eliminatórias. Já na partida diante da Espanha, deu para ver bem como o camisa 8 pode atuar em qualquer posição do meio-campo. Ele faria de tudo um pouco numa noite em que os marroquinos precisaram de concentração e resiliência, mas também exibiram maior agressividade.
Nenhum outro jogador de Marrocos acertou tantos passes diante da Espanha. Não foram tantos quanto os adversários, mas Ounahi permitiu que os Leões do Atlas esfriassem os espanhóis e tivessem qualidade no campo defensivo. O camisa 8 também esteve entre os líderes de desarmes de seu time. Ao lado de Sofyan Amrabat, sobretudo, suou a camisa e fechou o cadeado na entrada da área para a repetitividade espanhola. E o mais importante esteve no fôlego do garoto de 22 anos. Quando os marroquinos botavam a língua para fora, ele chamaria mais a partida para si. Não à toa, cresceu demais a partir do segundo tempo.
As maiores ameaças de Marrocos para matar a partida depois do segundo tempo foram proporcionadas por Ounahi. E em lances plásticos, que apresentaram outros predicados do camisa 8 além de sua disciplina. O jovem protagonizou uma tabelinha linda com Hakimi pela direita, que só não deu resultado porque o lateral esticou um pouco mais o passe na linha de fundo. Depois disso, Ounahi arrebentou a marcação espanhola com um lindo lance individual. Driblou no meio de dois e entregou um presentaço para Walid Cheddira. Uma pena que o centroavante não aproveitou, porque a assistência seria um prêmio à noite completa do meio-campista.
Depois de 120 minutos excelentes, Ounahi pôde descansar na disputa por pênaltis. Bono, Sabiri, Ziyech e Hakimi consumaram a classificação. As quartas de final da Copa do Mundo escrevem o nome do camisa 8 numa formação desde já inesquecível para os marroquinos. E o garoto de 22 anos não deve parar por aí. O Angers deve ficar pequeno ao seu futebol em breve. Nada mal para quem estava na terceirona não faz tanto tempo.