Copa do Mundo

O Croácia x Japão da Copa de 1998 e a passagem do Rei Kazu pelo Dinamo Zagreb

Croácia e Japão inauguraram suas histórias em Copas lado a lado, enquanto o rei inoxidável do futebol japonês também foi campeão pelo maior clube croata

As histórias de Croácia e Japão nas Copas do Mundo se inauguram ao mesmo tempo, no mesmo grupo. Os estreantes no Mundial de 1998 figuraram no Grupo H, em que a Jamaica era outra novata, enquanto a Argentina despontava como favorita. Foram experiências inesquecíveis aos dois países. Os croatas tinham cedido craques e craques à equipe nacional nos tempos de Iugoslávia, mas aquela era sua primeira aparição como país independente, e logo para deixar marcas profundas, com a campanha que rendeu a terceira colocação. Já o desempenho dos japoneses em sua primeira Copa não foi bom, mas a mera presença era um alívio, depois de tantos traumas anteriores nas tentativas de classificação. Além do mais, aquele se tornaria apenas o primeiro passo dos nipônicos na série de sete participações consecutivas desde então. Dentro de campo, os dois países se aproximavam, numa relação que rendeu até mesmo uma passagem do lendário Kazu Miura pelo Dinamo Zagreb pouco depois.

O primeiro duelo entre Croácia e Japão no futebol, curiosamente, aconteceu poucos meses antes que os times se confirmassem na Copa do Mundo de 1998. Os croatas foram convidados para a tradicional Copa Kirin, em junho de 1997, e enfrentaram os japoneses no Estádio Nacional de Tóquio, num triangular que ainda incluiu a Turquia. O técnico Miroslav Blazevic não tinha todos os destaques da Croácia que jogariam o Mundial, com ausências significativas de gente como Davor Suker e Zvonimir Boban. Ainda assim, boa parte da base principal estava em campo: Robert Prosinecki, Dario Simic, Aljosa Asanovic, Goran Vlaovic, Drazen Ladic. Já os japoneses passariam por mudanças mais sensíveis nos meses seguintes, especialmente pela demissão do técnico Shu Kamo. Mas era uma equipe forte, que incluía lendas dos Samurais Azuis como Yoshikatsu Kawaguchi, Masami Ihara e Hidetoshi Nakata. Rei Kazu comandava o ataque.

Foi uma partida bastante movimentada em Tóquio, com o placar de 4 a 3 para o Japão, diante de 60 mil torcedores no Estádio Nacional. Takashi Hirano aproveitou o cruzamento rasteiro de Tadashi Nakamura para abrir o placar aos 34 do primeiro tempo. Já na volta do intervalo, Kazu deu seu show. O artilheiro ampliou a contagem depois de uma assistência na medida de Nakata. Como de praxe, comemorou com sua tradicional sambadinha – referência aos tempos em que atuou no Brasil. Logo aos oito minutos, Kazu guardou mais um, de cabeça, num cruzamento de Naoki Soma. Asanovic descontou duas vezes para a Croácia, aos 32 e aos 34, primeiro numa potente cobrança de falta e depois num pênalti. A vitória nipônica se confirmou com uma pintura de Hiroaki Morishima, que fintou três na área antes da definição. Porém, nos acréscimos Vlaovic ainda anotou o terceiro croata com um belo toque por cobertura.

A classificação de Croácia e Japão para a Copa do Mundo se confirmou na mesma semana de novembro. No dia 15, os croatas empataram com a Ucrânia por 1 a 1 em Kiev e ganharam o direito de disputar seu primeiro Mundial. Já a vaga dos japoneses veio na decisão da repescagem asiática, com uma histórica vitória por 3 a 2 sobre o Irã em Kuala Lumpur, com o gol de ouro de Masayuki Okano definindo a parada a dois minutos do fim da prorrogação. Dias depois, aconteceu o sorteio. Japão e Croácia se encontrariam no Grupo H. Não estreariam contra si, mas se pegariam numa partida bastante importante da segunda rodada.

A Croácia contou com um elenco bem mais forte na Copa de 1998 do que o visto na Copa Kirin. Apesar do desfalque sentido de Alen Boksic, juntavam-se outros nomes de peso como Slaven Bilic, Robert Jarni e Zvonimir Soldo, além dos próprios Suker e Boban. Já do lado do Japão, a grande discussão ao redor da convocação se concentrou mesmo em Kazu. Mais especificamente, na ausência do atacante. Depois de ser o grande símbolo dos primórdios da J-League e sucumbir na famosa Agonia de Doha, que custou a vaga dos Samurais Azuis na Copa do Mundo de 1994, o matador acabou ignorado pelo técnico Takeshi Okada. Participou inclusive da preparação em Nyon, mas terminou cortado da lista final, sem esconder a frustração por não disputar um Mundial. Atitudes que foram entendidas como indisciplina e o declínio de seus números estiveram entre as explicações para a decisão, mas ainda assim se debatia a ausência do astro no maior dos palcos.

A trajetória de Croácia e Japão nas Copas do Mundo começou de maneira distinta. Os Samurais Azuis perderam da Argentina por 1 a 0, gol de Gabriel Batistuta, num jogo em que os argentinos tiveram as chances mais claras e também correram alguns riscos de ceder o empate. Já a Croácia anotou 3 a 1 em cima da Jamaica, com tentos de Mario Stanic, Robert Prosinecki e Davor Suker. Na segunda rodada, os croatas tentavam derrotar os nipônicos para encaminhar a classificação e evitar a pressão na rodada final contra a Argentina. Entretanto, precisaram se virar sem o capitão Zvonimir Boban, que sentiu uma lesão muscular no treino e acabou poupado.

O duelo aconteceu em Nantes, no Estádio de La Beaujoire. E seria uma partida bastante aberta, desde os primeiros minutos, entre uma Croácia que trabalhava mais os passes e um Japão na base da velocidade. Os croatas começaram mais ativos no ataque, com uma série de finalizações sem tanta precisão. Suker era uma ameaça constante, enquanto Stanic perdeu um lance cristalino em contra-ataque. As chegadas japonesas eram mais esporádicas, com destaque às faltas de Nakata. E a emoção aumentou depois dos 30 minutos. Nakata deu um lançamento magistral e o centroavante Masashi Nakayama ficou de frente para o crime, mas Ladic salvou o chute à queima-roupa. Do outro lado, na resposta, Suker demorou a finalizar e acabou travado por Kawaguchi.

O segundo tempo viu o Japão voltar melhor. O time trabalhava bem as jogadas e conseguia criar especialmente pelo lado esquerdo, mas as finalizações não eram boas, sobretudo de cabeça – problema visto antes contra a Argentina. Depois de sobreviver a esse momento mais perigoso, a Croácia buscou a vitória com Suker. O centroavante não tinha medo de arriscar seus chutes. Aos 27, o matador quase anotou um golaço, ao dar um chapéu no marcador e bater por cobertura da entrada da área, mas carimbou o travessão. O gol na vitória por 1 a 0 aconteceu aos 32. Asanovic abriu pela esquerda e cruzou. Suker dominou no segundo pau e teve tempo para a batida rasteira. Kawaguchi falhou. Depois disso, os Samurais Azuis não deram muitos sinais de reação.

Depois da partida, os jogadores de ambos os lados falaram sobre as temperaturas elevadas do verão francês. “O calor realmente atrapalhou a qualidade do nosso jogo e o Japão foi mais duro do que esperávamos. Mas o mais importante é que vencemos”, declarou Prosinecki. Já o atacante Masayuki Okano, que entrou no segundo tempo, avaliou: “Aconteceram muitas chances. Eles estavam cansados, nós estávamos cansados. Mas não conseguimos tirar vantagem deles. Estou realmente decepcionado”.

Técnico da Croácia, Miroslav Blazevic celebrava a classificação e pensava na sequência da competição: “Cumprimos nosso primeiro objetivo. Estamos todos muito orgulhosos, somos um pequeno país e já estamos na elite. Foi um jogo muito difícil. Mas acho que não é ser parcial dizer que merecemos a vitória”. Enquanto isso, com a eliminação consumada, Takeshi Okada tentava projetar além: “Tentamos lidar com um jogador de primeira classe como Suker fazendo um jogo mais coletivo. Tentamos reunir nossas forças para essa partida, mas infelizmente não foi suficiente. Nossa ideia era ter dois jogadores em cima de cada adversário. Mas, para o futebol japonês, ainda não acabou. Temos boas chances pensando em 2002 e 2006”.

Na rodada final, o Japão também saiu derrotado pela Jamaica, com dois gols de Theodore Whitmore no triunfo por 2 a 1. Enquanto isso, a Croácia perdeu a liderança do Grupo H para a Argentina, com a derrota por 1 a 0. Nada que fizesse muita falta, pensando que os croatas escaparam do chaveamento mais duro na sequência. A equipe venceu a Romênia e depois passou o carro sobre a Alemanha, para alcançar uma histórica semifinal. Perderiam para a França, na noite da vida de Lilian Thuram, mas nada que manchasse o prestígio dos axadrezados por aquela epopeia. Ainda ficaram com o bronze, graças ao triunfo sobre a desinteressada Holanda na decisão do terceiro lugar. Suker marcou o último de seus seis gols e levou a artilharia.

Embora a maior parte dos jogadores da Croácia atuasse fora do país, a principal base da seleção de 1998 era o então chamado Croatia Zagreb. O clube nada mais era que o atual Dinamo, que foi rebatizado em 1993 para exaltar o nacionalismo após a independência e também se distanciar de uma “nomenclatura comunista” – embora a torcida mesmo não aceitasse tal mudança, em pressão que retomou a alcunha original em 2000. Fato é que a potência nacional cedeu seis jogadores para o Mundial da França: Drazen Ladic, Robert Prosinecki, Goran Juric, Silvio Maric, Dario Simic e Krunoslav Jurcic. Todos eles ganhariam um companheiro japonês seis meses depois. Ninguém menos que Kazu Miura.

O amargor de Kazu em 1998 não se restringiu à ausência na Copa do Mundo. O atacante sofria com as lesões e não conseguia ser tão efetivo quanto antes. Como se não bastasse, o Verdy Kawasaki, seu clube, passava por uma profunda reestruturação. O Grupo Yomiuri, companhia de mídia que era dona da agremiação, reduziu seus investimentos. A folha salarial seria drasticamente cortada e, dono de um dos maiores rendimentos, Kazu seria dispensado. Pouco importava seu papel brilhante em 11 títulos pelo time, incluindo as duas primeiras edições da J-League. Seria necessário buscar um novo destino. E eis que pintou a oportunidade de se mudar à Croácia.

O Croatia Zagreb estava ligado ao governo de Franjo Tudman, o presidente nacionalista que comandou a Croácia na primeira década de sua independência. E com a intenção do país em se aproximar do Japão, houve um apoio para que o clube contratasse Kazu Miura. Foi um momento em que outros japoneses também desembarcaram nos clubes croatas. O Rijeka contratou de uma só vez o meio-campista Nobuyuki Zaizen e o atacante Yoshika Matsubara, ambos com passagens pelas seleções de base. Mas nada que se comparasse ao tamanho de Kazu Miura para o futebol japonês, bem como ao simbolismo do Croatia Zagreb para o futebol croata. Rei Kazu chegou em janeiro de 1999, por um valor equivalente a €250 mil. Assinou por dois anos e, de certa maneira, ocuparia a lacuna deixada por um jovem Mark Viduka, após o australiano ser vendido ao Celtic com a eliminação na fase de grupos da Champions League.

Não era a primeira experiência de Kazu Miura fora do Japão. A história do atacante no Brasil durante o início da sua carreira é célebre, rodando por diversos clubes de 1982 a 1990 para ganhar tarimba. Foi do Juventus ao Santos, passando ainda por Palmeiras, Coritiba, Matsubara, XV de Jaú e CRB. Já em 1994, Kazu se aventurou brevemente no Genoa, da poderosa Serie A. O atacante sofreu uma fratura no rosto logo na estreia contra o Milan, ao se chocar com Franco Baresi, e não emplacou depois de sua recuperação. Anotou apenas um gol em 20 partidas, quase sempre saindo do banco, em campanha na qual o Grifone terminou rebaixado. Kazu ainda tinha propostas para se juntar ao Torino e ao Sporting, mas voltou à J-League em 1995 para recuperar sua melhor forma no Verdy Kawasaki. Em contrapartida, o Croatia Zagreb já encontraria o atacante de 32 anos em declínio.

Kazu chegou à Croácia sob um rigoroso inverno, com campos tomados pela neve e pela lama. Apesar do empenho para manter a forma física, as condições não eram as melhores para apresentar o seu futebol. Além disso, existia uma clara barreira linguística na comunicação com seus companheiros e com o técnico Velimir Zajec, histórico zagueiro do Dinamo Zagreb nos anos 1980. Seu estilo de jogo não era o preferido do comandante, especialmente pela maneira como o japonês gostava de conduzir a bola para fazer suas jogadas. Ocorreram atritos, já que Zajec exigia toques mais rápidos.

Ao longo de sua estadia na Croácia, Kazu atraiu muita atenção de seus compatriotas. Jornalistas japoneses costumavam acompanhar treinos e partidas do Croatia Zagreb, assim como direcionavam perguntas específicas sobre o atacante nas entrevistas do técnico Zajec. Torcedores nipônicos também faziam sua peregrinação até o Estádio Maksimir, com presença constante nas arquibancadas para os jogos do Campeonato Croata. Todavia, não seriam tão frequentes assim as oportunidades para ver o Rei Kazu em ação com a camisa azul.

Durante a pausa de inverno, o Croatia Zagreb passou por um período de treinamento na Espanha. Algumas emissoras japonesas apareceram para transmitir aquela que deveria ser a estreia de Kazu num amistoso. Todavia, ele não seria escalado e acabou limitado aos treinamentos. Apesar da frustração, o atacante agradou o técnico Zajec durante a preparação e ganhou uma chance na retomada do Campeonato Croata 1998/99, diante do Mladost. Seria uma estreia agridoce contra o lanterna da liga, em que o japonês deu uma assistência, mas também desperdiçou um pênalti.

Kazu disputou 12 partidas pelo Croatia Zagreb, número razoável diante do formato do Campeonato Croata, com apenas 32 rodadas, e diante do limite a três estrangeiros por time na competição. Geralmente saindo do banco, o atacante não balançaria as redes. E a última aparição ainda seria marcada por uma expulsão contra o Osijek, na penúltima rodada. Ao menos, o cartão vermelho não comprometeu a conquista da liga pelo Croatia Zagreb. A taça foi consumada no último compromisso, com uma vitória sobre o Varteks e o empate paralelo do Rijeka. Rei Kazu adicionava mais um título ao seu recheado currículo, apesar da parca influência.

Existia a expectativa de que Kazu Miura pudesse disputar a Champions League em 1999/00. Porém, o atacante ficaria fora dos planos de Osvaldo Ardiles, novo treinador do Croatia Zagreb. O clube também atravessava um momento delicado do ponto de vista financeiro e preferiu se desfazer do salário japonês, apesar da visibilidade que a agremiação ganhava no Japão e também do dinheiro angariado através dos turistas que iam ao Maksimir só para ver seu ídolo. O contrato de Rei Kazu seria rompido e, pior, os azuis sequer cumpriram o acordo, com os advogados do jogador acionando a Fifa para que os débitos fossem quitados.

Em julho de 1999, Kazu voltou para a J-League e assinou com o Kyoto Purple Sanga. Depois disso, a carreira praticamente inteira do atacante seguiria mesmo no Campeonato Japonês. A única outra experiência fora aconteceu em 2005, quando o veterano assinou brevemente por empréstimo com o Sydney FC. A pedido do técnico Pierre Littbarski, antiga estrela do Campeonato Japonês, Rei Kazu se juntou aos australianos só para disputar o Mundial de Clubes. Comporia um mítico ataque ao lado de Dwight Yorke. Os celestes perderam nas quartas de final para o Saprissa, mas fecharam a campanha na quinta colocação, com um triunfo sobre o Al Ahly de Mohamed Aboutrika.

Naquela época, Kazu já pertencia ao Yokohama FC. É o clube com o qual mantém contrato ainda hoje, com 17 anos de casa no total, embora tenha sido emprestado ao Suzuka Point Getters na temporada 2022. O reinado de Kazu é interminável e, aos 55 anos, não fala em parar. E certamente lembranças virão à tona nesta segunda-feira, quando o Japão entrar em campo contra a Croácia. O veterano poderá pensar na Copa em que não pôde estar, nos meses em que tentou emplacar em Zagreb. Como sempre, é parte dos antecedentes dos Samurais Azuis, que tentam atingir um feito inédito sob as ordens de Hajime Moriyasu, ele mesmo antigo companheiro de Kazu nos tempos de volante da seleção – e um ano mais jovem que o inoxidável rei.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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