Copa do Mundo

O choro de 1950 foi espanto em 2014

“Estavam todos chorando. Parecia mentira: todo mundo tinha lágrimas nos olhos. De imediato, vejo entrar um grandalhão que parecia desconsolado. Chorava como um bebê e dizia: ‘Obdulio ganhou a partida contra nós’ e chorava mais. Eu o olhava e me lastimava. Eles haviam preparado o maior carnaval do mundo para essa noite e nós havíamos arruinado. Segundo esse homem, eu havia arruinado. […] Eu me sentia mal. Dei-me conta que estava amargurado como ele. Seria lindo ter visto esse carnaval, ver como as pessoas se alegravam com uma coisa tão simples. Nós havíamos arruinado tudo e não havíamos ganhado nada. Tínhamos um título, mas o que era isso diante de tanta tristeza?”.

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As palavras acima são de Obdulio Varela. O capitão uruguaio que levantou a Taça Jules Rimet naquele fatídico 16 de julho de 1950. A encarnação da garra charrua, que derrubou a confiança excessiva do Brasil no Maracanã abarrotado. Horas depois, o volante saiu pelas ruas do Rio de Janeiro para beber. Viu um povo desolado pela derrota que acabara de se consumar. Afinal, a Seleção foi colocada no topo do mundo. O gol de Ghiggia a derrubou do penhasco.

O Brasil já era dado como campeão antes de entrar em campo. Alguns jornais estampavam o time com a faixa no peito. O discurso do prefeito Mendes de Morais parabenizava os brasileiros que “a menos de poucas horas sereis aclamados campeões por milhares de compatriotas”. E a certeza que tinham sobre a Seleção parecia compreensível. Pela forma como a equipe de Flávio Costa havia passado por seus adversários nas duas rodadas anteriores do quadrangular final. Pelo gol de Friaça. E pela vantagem do empate, que nem o tento de Schiaffino atrapalhava.

Quando Ghiggia aproveitou a brecha de Juvenal, chutou no canto de Barbosa e estufou as redes aos 34 do segundo tempo, diz-se que o Maracanã se calou. Uma versão que não é compartilhada por todos que estavam no estádio. Muita gente diz que as arquibancadas continuavam barulhentas. Oras, restava nove minutos e apenas um gol para o título, o empate que já bastava. Que não veio por centímetros, na bola que raspou a cabeça de Jair da Rosa Pinto no último lance. Depois desse momento, aí sim é unanimidade, o Maracanã desabou em lágrimas. Era o fato que ainda não tinha se consumado, e nunca se consumaria: o Brasil não foi campeão. A comoção que tinha se criado pelo título se transformou em choro.

maracanazo

Sessenta e quatro anos depois, o Brasil perde outra Copa do Mundo em casa. Ao invés do pranto, o espanto. Aquela certeza de 1950 nunca existiu. Muitos até davam o favoritismo para a Alemanha – pela ausência de Neymar e Thiago Silva, e também pela falta de futebol do time de Felipão. O peso da obrigação não existia mais e sequer a seleção brasileira estava na final, ainda tinha duas etapas a superar. Perder para o forte time alemão não seria uma tragédia como a de 1950. De fato, não foi uma tragédia. Foi um vexame, que deixou muita gente atônita, contando os segundos que pareciam longos demais desde os 30 minutos do primeiro tempo. Um sofrimento excessivo para quem já estava surrado. Na torcida, os olhares eram de perplexidade ou frustração, não necessariamente cheios de lágrimas. Sensações diferentes para derrotas muito particulares para o futebol brasileiro.

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Porque nem o torcedor mais pessimista (e nem o alemão mais otimista) imaginava um placar desses. O gol de Thomas Müller deixou o Brasil de joelhos. O de Klose, o jogou no chão. Kroos, Khedira e Schürrle terminaram com o pisoteamento. Se não havia tanta confiança no time quanto em 1950, a surpresa veio de outra forma. Com a humilhação da goleada que ninguém imaginava. Pensavam que não havia como o Brasil deixar o Mundial de cabeça baixa. Mas isso agora é impossível, com uma derrota que o Brasil nunca havia vivido não só em Copas, mas sequer em sua história.

Em 1950, os vilões foram pontuais, mas fatais. Barbosa, Augusto, Bigode. Pelo mau posicionamento, pelo erro de marcação, pelo suposto tapa de Obdulio. Os outros, mais do que por qualquer culpa que pudessem inventar contra eles, estariam marcados para sempre com a chaga da Maracanazo. Em 2014, é difícil imaginar um ou alguns que carreguem a cruz como aqueles injustos mártires do passado.

Uma, porque o massacre por sete gols fez o time desabar como um todo, os erros não eximem ninguém. Outra, porque os tempos mudaram. A vida na Europa, que não cria tanta identificação entre torcedores e jogadores, também os afasta do pesadelo. A velocidade dos novos tempos ajuda, por mais que uma derrota dessas fique fresca na cabeça para sempre. Para muitos, a chance de seguir em frente com a Seleção continua, até pela idade. Por mais que alguns deles continuem perseguidos pelo fracasso, especialmente Felipão – o responsável por aquele coletivo e pelo discurso confiante que não colou tão bem desta vez, mas que possui a Família Scolari para nunca se tornar o vilão condenado. Impunes mesmo, talvez, só os principais culpados, infelizmente.

O livro ‘Dossiê 50’, que virou documentário também produzido pelo jornalista Geneton Moraes Neto, ouviu os 11 titulares no Maracanã. E a dor é compartilhada por todos. Entre aqueles que estiveram em campo no Mineirão, o sentimento comum deverá ser a vergonha. Porque 1950 é uma punhalada no coração, que fez o Brasil ficar os olhos cheios de lágrimas. Uma ferida que, hoje, parece cicatrizada. A surra inesperada de 2014 faz esconder o rosto – com a máscara do Neymar, que seja. Para, quem sabe, os olhos saltados de espanto permitam também observar e aprender a lição.

* E ainda recomendo como obrigatório o texto “Barbosa”, do mestre Mauro Beting. Uma aula de futebol, de literatura, de jornalismo e de coração.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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