Copa do Mundo

O Brasil x Coreia do Sul de 2002 que marcou a despedida de Zagallo como técnico e de Hong Myung-bo como capitão

Em novembro de 2002, Brasil e Coreia do Sul arranjaram um amistoso em Seul que celebrou as despedidas de símbolos de suas equipes nacionais

A Copa do Mundo de 2002 é especial para Brasil e para Coreia do Sul. Os ecos do penta são fortes para os brasileiros mesmo 20 anos depois, assim como a jornada dentro de casa permanece com um grande significado aos sul-coreanos. O que pouca gente se lembra é que, ao final daquele ano, um amistoso entre as duas seleções serviu para botar um ponto final nas histórias de dois personagens enormes. Zagallo já tinha deixado o comando técnico da Amarelinha em 1998, mas voltou para ser treinador numa última dança, em novembro de 2002, antes de se tornar coordenador técnico. O Velho Lobo nunca mais ocuparia a casamata depois disso. Do outro lado, os Tigres se despediam de Hong Myung-bo, um dos maiores jogadores do futebol asiático em todos os tempos. O zagueiro foi o primeiro futebolista do continente a disputar quatro Copas, usou a braçadeira de capitão em 2002 e recebeu a Bola de Bronze como terceiro melhor do Mundial em casa. Chegava ainda a 136 partidas com a camisa sul-coreana, igualando o recorde do país estabelecido por Cha Bum-kun. O Brasil venceu por 3 a 2.

Naquele novembro de 2002, a Seleção ainda não havia anunciado seu novo técnico. Luiz Felipe Scolari tinha pedido demissão em agosto, com a missão cumprida após o título mundial, e se despediu num amistoso contra o Paraguai. Felipão já tinha recebido a proposta para assumir Portugal e os rumores eram fortes na imprensa, mas não havia nada de oficial. E sem nomear seu substituto, a CBF resolveu colocar Zagallo no banco de reservas pela última vez, no amistoso que fechava os trabalhos em 2002. Aos 72 anos, o Velho Lobo teria uma homenagem raríssima dedicada a treinadores, com uma partida de despedida para encerrar sua trajetória como técnico do Brasil. E um dos maiores amantes da “Amarelinha” não ia negar o convite ao serviço. Até porque, àquela altura, ele também vislumbrava o cargo de coordenador técnico – algo que admitia publicamente.

Cabe dizer que aquele amistoso, de maneira indireta, não passava batido na longa lista de suspeitas sobre a CBF presidida por Ricardo Teixeira. Dois meses antes, o diário Lance havia revelado que uma empresa representante da federação da Líbia pagara US$500 mil a Zagallo. O treinador justificava que o dinheiro era relativo a entrevistas e palestras, enquanto a CBF afirmou que correspondia a um livro que seria escrito pelos líbios. Em contrapartida, a empresa líbia acusava a confederação brasileira de dever dois amistosos desde 1995, após as cotas de US$500 mil por cada jogo terem sido pagas à CBF e também a Zagallo. Na época, a federação da Líbia era presidida por Al Saadi Gaddafi, filho do ditador Muammar Gaddafi. No fim das contas, os jogos nunca aconteceram.

Por causa do episódio, cogitou-se que Zagallo não dirigisse a Seleção na partida contra a Coreia do Sul. Todavia, a poeira baixou e o presidente Ricardo Teixeira manteve o convite ao treinador. Para fazer a viagem até Seul, a CBF recebeu um cachê de US$800 mil. Os patrocinadores ainda bancaram 40 passagens na classe executiva, hospedagem e alimentação. Como as duas federações tinham apoio da Nike, a relação era relativamente estreita naquele momento, especialmente depois da conquista do Brasil na Ásia.

“Sorridente, gentil, muito feliz. Assim Zagallo leu a lista parcial de 19 convocados para o amistoso entre Brasil e Coreia do Sul, dia 20, jogo que marcará oficialmente sua despedida como técnico da seleção brasileira. Zagallo estava radiante na entrevista coletiva em que anunciou por ordem alfabética a relação. ‘Vou começar pelo amor. Primeiro nome: Amoroso'”, descrevia o Estado de S. Paulo, quando o Velho Lobo se reapresentou à sede da CBF. Era um clima leve, depois de anos com uma relação bastante turbulenta com a imprensa.

Zagallo chamava astros do penta como Ronaldo, Cafu, Roberto Carlos e Ronaldinho Gaúcho. Porém, também fazia suas adaptações na lista e dava espaço a gente que não participou da Copa do Mundo – casos de Serginho, Zé Roberto, Amoroso, Juninho Pernambucano, França, Flávio Conceição e Juan. Posteriormente adicionou os jogadores do futebol brasileiro, incluindo Júlio César, Athirson e Ricardo Oliveira como novidades. Aqueles envolvidos nas principais brigas da tabela do Brasileirão acabaram poupados. Zagallo admitia, porém, que não vinha acompanhando o suficiente e teve auxílio para elaborar a relação, do supervisor Américo Faria e do assessor de imprensa Rodrigo Paiva. Além disso, o treinador já deixava claro que não iria aplicar o 3-5-2 que consagrou Felipão no Mundial da Coreia do Sul e do Japão. Não abria mão de seu 4-2-2-2, que marcou o ciclo brasileiro rumo à Copa de 1998, a última comandada pelo veterano. 

A ausência de maior peso foi Rivaldo. Por causa de um problema de saúde na família, o meia entrou em contato com Américo Faria e pediu dispensa de antemão. Causou ruído ainda a solicitação de Serginho para ser cortado. O lateral esquerdo era um nome importante do Milan, prestes a ganhar a Champions League naquela temporada, e chegou a ser elogiado especificamente por Zagallo na divulgação da lista – “está voando”, falou o técnico. Todavia, depois de uma sequência de partidas entre 1998 e 1999 pela Seleção, o jogador de 31 anos só tinha entrado em campo uma vez com a Amarelinha desde então, em 2001, na derrota para a Bolívia pelas Eliminatórias. Justificou que, naquele momento, a Seleção não o interessava mais. Como era de se imaginar pela personalidade do Velho Lobo, o esporro foi público: “Ele não foi correto. Jogar na seleção é o maior orgulho de um atleta”.

(EMMANUEL DUNAND/AFP via Getty Images/One Football)

Aquele era o quarto amistoso entre Brasil e Coreia do Sul, todos realizados a partir da década de 1990. Zagallo estava no comando da vitória por 1 a 0 em 1995, quando Dunga anotou um golaço para decretar o placar em Suwon. Foi a partida que marcou a estreia de Zé Roberto, então lateral esquerdo da Portuguesa, na Canarinho. Dois anos depois, o Brasil também estava sob as ordens do Velho Lobo ao ganhar por 2 a 1 dos sul-coreanos em Seul. Seria a vez de Júnior Baiano, Dodô e Sonny Anderson estrearem. O atacante do Monaco agradou, ao sair do banco para fazer o gol da virada, após Ronaldo empatar de pênalti. Já em 1999, o reencontro em Seul teve vitória da Coreia do Sul por 1 a 0. Vanderlei Luxemburgo estava em sua quarta partida à frente dos brasileiros, numa equipe em que Juninho Pernambucano e Alessandro Cambalhota estrearam. Era um time cheio de caras novas, que ainda incluía Rogério Ceni, Odvan, Serginho, Felipe, Amoroso, Jardel e Fábio Júnior – todos sem passar dos cinco jogos pela equipe nacional.

A equipe escalada por Zagallo em novembro de 2002 confiava majoritariamente nos destaques do penta. Na ausência de Marcos por causa dos compromissos com o Palmeiras, Dida começou no gol. A defesa tinha Cafu, Lúcio, Edmílson e Roberto Carlos – Roque Júnior, lesionado, foi outro a não ser convocado. Gilberto Silva e Kléberson eram os volantes, com Ronaldinho Gaúcho e Zé Roberto abertos nas meias. Em grande fase no Borussia Dortmund, Amoroso foi o escolhido para acompanhar Ronaldo na frente. Já era um momento de expectativas sobre o Fenômeno em relação à Bola de Ouro que estava prestes a reconquistar.

Já a Coreia do Sul também recheou sua equipe com os destaques da campanha até as semifinais em 2002. Hong Myung-bo era o ponto focal, claro. Aos 33 anos, o zagueiro se despedia de uma marcante carreira pela seleção. Havia estreado em 1990 e participou de todas as Copas do Mundo desde então. Era seu último ato pelos Tigres, embora por clubes tivesse recebido uma proposta do Los Angeles Galaxy, onde atuaria nos dois anos seguintes até realmente pendurar as chuteiras. Também era o fim da linha para o atacante Hwang Sun-hong, presente em três Copas e com 103 partidas pela equipe nacional. Reserva no Mundial de 2002, anotou o segundo gol contra a Polônia na fase de grupos e deu assistência nas oitavas diante da Itália. Além dos dois veteranos, a Coreia do Sul reunia outros nomes célebres. O goleiro Lee Won-jae era destaque no sistema defensivo. Na ausência de Park Ji-sung, o papel de referência no meio ficava com Yoo Sang-chul, acompanhado por Lee Young-pyo. Já na frente, Ahn Jung-hwan e Seol Ki-hyeon eram os mais famosos – Seol permanecia no Anderlecht, enquanto Ahn tinha se transferido ao Shimizu S-Pulse, depois da revolta do Perugia por ser carrasco da Itália nas oitavas.

Zagallo garantia que, apesar da homenagem, para ele era um jogo sério. “Quero assegurar a vitória. Esse negócio de festa é só depois de o jogo estar encerrado”, dizia. “Minha vida na Seleção foi marcada por vitórias. Não pretendo ser homenageado com uma derrota. Apesar de ser um jogo festivo, vim aqui para vencer”. Durante os treinamentos, num clima leve, o Velho Lobo passou o tempo relembrando seu passado na Seleção. “Disse que jamais sentiu o peso da camisa verde-amarela e que os seus principais momentos foram na Copa da Suécia, quando estreou em Mundiais como jogador, e na vitória por 1 a 0 contra a Inglaterra na Copa de 70, como treinador”, descrevia o jornal o Globo.

Quando a bola rolou, o Brasil teve trabalho para alcançar a vitória por 3 a 2. Por duas vezes, a Coreia do Sul ficou à frente no placar. O primeiro gol teve ajuda da arbitragem em Seul, num lance de toque de mão dos sul-coreanos que o árbitro não marcou e ainda anotou um recuo para Dida. Na cobrança indireta da falta dentro da área, Ahn cruzou e Seol deu uma casquinha de cabeça para marcar. O empate da Seleção não demorou, aos 16 minutos. Ronaldo não tinha aproveitado outras chances, mas recebeu um presentaço de Zé Roberto. O meio-campista passou por dois na intermediária, antes de enfiar a bola para o centroavante. Ronaldo precisou só dar um tapa na saída de Lee.

A Coreia do Sul voltou a ficar em vantagem aos 13 do segundo tempo. Roberto Carlos perdeu a bola no ataque e os Tigres armaram o contragolpe. Dida até defendeu a primeira tentativa, mas Ahn estava atento para marcar no rebote. O novo empate saiu aos 22, mais uma vez com Ronaldo. Edmílson realizou um lançamento magistral do campo de defesa e o Fenômeno disparou nas costas da zaga, como tanto gostava. Ficou de frente com o goleiro Lee e só botou por entre as canetas do camisa 1. Por fim, nos acréscimos, Amoroso sofreu pênalti. Ronaldinho Gaúcho assumiu a cobrança e mandou no canto do goleiro Kim Byung-ji, que havia entrado na reta final do duelo festivo. Decretou a vitória. Foram oito substituições feitas pelos sul-coreanos na noite. A única do Brasil foi Belletti, e isso porque Cafu sofrera um corte no joelho.

Durante a comemoração do gol decisivo, Ronaldinho fez questão de correr direto para o banco de reservas e chamar todos os companheiros. Abriu o sorriso e os braços, num abraço coletivo ao redor do Velho Lobo. O técnico não escondia a emoção, embora continuasse enfatizando a importância da vitória e da equipe nesse trabalho. “Aquilo foi uma reunião gostosa, um reconhecimento da minha vida esportiva. Foi uma coisa espontânea, que os jogadores fizeram pela alegria, pela vitória, para mostrar o quanto gostam de mim. Você se despedir com uma vitória é sempre importante. É mais uma na minha vida de tantas conquistas e glórias dentro da seleção brasileira. Até fui jogado para o ar! Ainda estou nas nuvens”, diria o Velho Lobo, ao jornal O Globo. Foram 154 partidas da Seleção sob as ordens de Zagallo, com 110 vitórias, 32 empates e 12 derrotas. Na conta, o tri mundial em 1970, após assumir o trabalho de João Saldanha a três meses do pontapé inicial no México.

Ronaldo também seria exaltado pela atuação. O atacante não vinha em boa fase no Real Madrid, encarando um jejum que durou mais de um mês e críticas quanto ao sobrepeso. Até marcou contra o Rayo Vallecano dias antes, mas depois seria bastante criticado por um empate diante da Real Sociedad, que definiu na época como “a pior exibição de sua vida”. Os dois gols contra a Coreia do Sul apaziguavam a situação antes da entrega da Bola de Ouro. “A Coreia, evidentemente, me traz muita sorte”, falou o Fenômeno, sem deixar de homenagear Zagallo. “Ele é um dos maiores heróis do futebol brasileiro. É nosso mestre. Esta vitória pertence a ele”.

Zagallo, de fato, continuou como funcionário da CBF após aquele jogo. Seria mesmo o coordenador técnico na volta de Carlos Alberto Parreira ao comando. Um trabalho que durou pouco mais de três anos, até a desastrosa participação da Seleção na Copa do Mundo de 2006. Enquanto isso, Brasil e Coreia do Sul demoraram 11 anos para se reencontrar em campo. Em 2013, Neymar e Oscar fizeram os gols nos 2 a 0 do time de Felipão em Seul. Outro amistoso ocorreu em 2019, com os 3 a 0 da equipe de Tite proporcionados por Lucas Paquetá, Philippe Coutinho e Danilo. Isso até os 5 a 1 mais recentes, em junho de 2022, com dois de Neymar, além de tentos de Richarlison, Philippe Coutinho e Gabriel Jesus. Antecedentes para o duelo mais importante entre as duas seleções, nesta segunda, pelas oitavas de final da Copa do Mundo.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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