Copa do Mundo

Modric tornou a Croácia muito maior na história das Copas e cresceu ainda mais entre os gigantes do torneio

Aos 37 anos, Modric de novo liderou uma campanha marcante da Croácia, em especial pela maneira como fez seu time e também os adversários orbitarem ao seu redor

Quando a placa com o número 10 subiu aos 35 minutos do segundo tempo, os croatas se prontificaram a se levantar e aplaudir. Parte dos argentinos também se rendeu ao reconhecimento com mais aplausos. A história de Luka Modric em Copas do Mundo, ao que tudo indica (e independentemente da decisão do terceiro lugar, que pouco significa), se encerrou competitivamente naquele momento. Numa partida em que a Croácia não indicava mais forças para reagir diante da Argentina, o técnico Zlatko Dalic resolveu acabar com o pesar de seu craque e, mais do que o descanso, conceder a ampla reverência. O maestro mereceu a ovação. Despede-se dos Mundiais com feitos muito grandes. Sobretudo, tornar a Croácia muito maior no torneio do que poderia se supor.

A Copa de 1998 por muito tempo pareceu insuperável à Croácia. Existia um contexto forte, ao país estreante, recém-saído da guerra. Estavam à disposição também muitos jogadores simbólicos, de grandes carreiras antes mesmo do Mundial. E a terceira colocação saiu melhor que as expectativas, ainda que se imaginasse ao menos uma campanha digna até os mata-matas. Depois disso, os croatas passaram distantes de encantar. Não saíram da fase de grupos em 2002 e também em 2006. Sequer estiveram presentes na Copa de 2010.

Àquela altura, Modric já se colocava como uma referência à seleção. Reserva no time de 2006, o meia virou um dos responsáveis pela sensação causada na Euro 2008. A Croácia derrubou a Inglaterra nas eliminatórias e avançou com 100% de aproveitamento em seu grupo da primeira fase, inclusive com vitória sobre a Alemanha. O maluco jogo contra a Turquia nas quartas de final, em que Modric perdeu um pênalti, dava a impressão de que os croatas nunca mais seriam como em 1998. Sucumbiram depois na fase de grupos da Euro 2012, também na Copa de 2014. Quando de novo chamavam atenção no início da Euro 2016, não passaram das oitavas.

Modric era um jogador grande nos clubes quando chegou à Copa de 2018, especialmente pelas conquistas no Real Madrid. Curiosamente, na seleção, muitos torcedores não gostavam do meia. Apesar de ótimas Euros individualmente falando, nunca tinha feito nada parecido com os heróis de 1998. Pior, se associou ao presidente do Dinamo Zagreb condenado por corrupção e tentou proteger um personagem execrado pelo futebol local. Chegou a ser indiciado pela justiça croata por falso testemunho num caso de evasão fiscal. Meses antes do Mundial da Rússia, os muros em Zagreb foram pichados com mensagens contra Modric. O camisa 10 disputaria sua segunda Copa sob pressão.

Aquele Mundial serviu não apenas para a Croácia mudar seu patamar no futebol de seleções, mas para o próprio Modric virar o jogo para si. Não dava para menosprezar o futebol jogado pelo camisa 10. Foram alguns recitais, em especial na vitória sobre a Argentina na fase de grupos, daqueles vareios que marcam qualquer seleção. O armador também arrebentou contra a Rússia nos mata-matas – o que lavou sua alma depois do pênalti perdido diante dos dinamarqueses. Dá para discutir se o meia mereceu a Bola de Ouro, se Ivan Rakitic não jogou melhor do que ele dentro da própria Croácia. O que não se nega é que o espírito daquele time croata se incorporava no camisa 10. Virou o primeiro nome citado à posteridade. Por vida e obra, era a Croácia de Modric que chegou a uma decisão de Mundial.

Os últimos quatro anos fizeram bem demais a Modric. Os croatas passaram a venerá-lo pela campanha até a final e ele seria inocentado pela justiça do país ainda no fim de 2018. Já no Real Madrid, o craque ampliou sua imagem como lenda. Tornou-se inesgotável e ainda mais protagonista. A sua última conquista na Champions é incomparavelmente maior do que as quatro anteriores, pela maneira como o maestro vislumbrou caminhos para negar o impossível e possibilitar milagres. Aos 37 anos, por incrível que pareça, vinha na melhor fase de sua vida. Mostrou que a Croácia de 2018 não foi exceção.

A atual seleção croata perdeu lideranças. Ganhou um Modric mais central. E o camisa 10 não fugiu da responsabilidade, num time que seguiu girando ao redor de seu fortíssimo meio-campo, contando também com um goleiro e um zagueiro excelentes. Não foi uma Croácia brilhante, mas foi extremamente competitiva. Contaram com o maestro para reger não apenas o próprio time, mas também os adversários. Isso fez toda a diferença para os axadrezados.

Modric não se sobressaiu por gols ou assistências nesta Copa. Na verdade, passou em branco nas duas estatísticas. O prazer no jogo do camisa 10, porém, não necessita dos estalos decisivos: ele se concentra na maneira como faz outros 21 homens orbitarem ao seu redor. Neste sentido, seria mais um Mundial ótimo do armador. Tocaria a música para a bola girar no empate contra Marrocos, em que a defesa adversária merece os créditos. Ajudou o time a pisar no acelerador na goleada contra o Canadá. Já na classificação contra a Bélgica, foi completo para combater e também fazer seu time jogar. Se houve uma partida abaixo do veterano, esta aconteceu contra o Japão. Mas os croatas tinham outros em quem confiar.

E então veio o Brasil. Vencer a Seleção numa Copa do Mundo é destaque no currículo para qualquer jogador. Modric entra numa lista seleta de carrascos dos brasileiros que, a duras penas, a gente precisa admirar. Se os croatas mandaram no meio-campo especialmente no primeiro tempo, isso passa pela forma como o camisa 10 serviu de termômetro. Distribuiu como quis, por vezes mais adiantado, por vezes tranquilizando seu time atrás. Não foi uma atuação criativa do maestro, mas foi onipresente. Parecia sempre estar no lugar certo do campo. Inclusive, para vencer Casemiro no lance do gol decisivo de empate. Depois de alguns pênaltis perdidos importantes ao longo dessa carreira pela seleção, desta vez ele fez. Era o seu destino.

Por fim, contra a Argentina, parecia que a missão estava cumprida. A Croácia chegar a mais uma final de Copa do Mundo era de novo quebrar os prognósticos. Não se explicaria por futebol. Só por Modric ficaria mais fácil de entender. Mas, desta vez, a hierarquia do camisa 10 em campo não funcionou. Fez boas jogadas, controlou o meio em parte do tempo. Mas não dá para vencer sempre numa equipe de ataque tão deficiente. Não dá para vencer sempre quando a sorte passa ao adversário, para derrubar o goleiro antes intransponível. Não dá para vencer sempre, em especial, quando há um gênio até maior do outro lado para fazer de bobo seu melhor zagueiro.

Como em 2018, os louros da Croácia não devem ir todos para Modric. O meio-campo como um todo funcionou muito bem nessa Copa e deu apoio ao camisa 10. Marcelo Brozovic foi o pulmão dos croatas em basicamente todos os instantes em que esteve em campo. Além disso, os melhores momentos de Mateo Kovacic quase sempre foram também os melhores momentos da Croácia. Jogou demais contra o Canadá e era o destaque do time até as coisas desandarem contra a Argentina. Se em 2018 o papo era com Rakitic, dessa vez também é válido discutir se Kovacic não foi melhor que Modric no Mundial. Isso sem contar o desempenho de Ivan Perisic, de Josko Gvardiol, de Dominik Livakovic. Mas, em termos de influência, o veterano é insuperável.

A memória tantas vezes é seletiva. Lembra-se mais dos rótulos do que necessariamente dos 540 minutos de bola rolando. Mas ela não está errada quando a escolha se dá por um craque como Modric. O veterano fez por merecer ao longo de toda a carreira essas lembranças, seja por vitórias ou por categoria. E sua foto estará lá na parede, ao trucidar uma Argentina na fase de grupos em 2018 ou encerrar o sonho do Brasil em 2022. Modric é o cérebro, em dois Mundiais consecutivos, de uma Croácia que se superou. Que, afinal, se cravou como maior que a de 1998. E não é apenas o time que marcará época na história das Copas. Maior ainda é o lugar do craque que encabeçou tudo isso entre as lendas do torneio.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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