Copa do Mundo

Marrocos cresceu tanto em quatro anos porque também ganhou um gigante feito Bono, herói do inédito momento

Bono era reserva na Copa de 2018, mas estourou no Sevilla ao longo do ciclo posterior e se tornou o carrasco dos espanhóis nos pênaltis

Marrocos chegou à Copa do Mundo de 2022 com mais recursos do que na Copa de 2018. A mudança de treinador às vésperas da competição deixava questões a se responder, mas o elenco chegava mais forte. Tinha melhores peças e também jogadores mais amadurecidos. Um exemplo disso estava no gol. De reserva na Rússia, Bono se colocou como um dos melhores goleiros em atividade no Campeonato Espanhol. Virou uma das referências dos Leões do Atlas. E se transformou em herói nacional nesta terça-feira memorável, com a inédita classificação dos marroquinos para as quartas de final do Mundial. Pegou dois penais e intimidou os espanhóis que tanto o conhecem. Consagra seu nome.

Ao longo desta Copa do Mundo, Bono se encontrou com várias nações que fizeram parte de sua vida. O goleiro, filho de pais marroquinos, nasceu em Montréal. Seu pai era engenheiro e trabalhava no Canadá, antes de receber uma oportunidade como professor para voltar a Marrocos. Foi por lá que o futebol tomou conta da vida de Bono. O garoto passou a viver em Casablanca ainda na infância e ingressou na base do Wydad quando tinha oito anos. Experimentaria de muito perto a paixão dos marroquinos pelo futebol, especialmente num dos clubes de torcida mais ensandecida do país.

Bono recebeu uma proposta do Nice quando se profissionalizava pelo Wydad. Entretanto, ele sairia de Casablanca para se mudar à Espanha, aos 21 anos. Depois de participar dos Jogos Olímpicos de 2012, o arqueiro assinou com o Atlético de Madrid. Atuava pelo time B, enquanto servia como terceira opção do elenco principal. Todavia, nunca ganhou chances suficientes. Até compôs o elenco campeão de La Liga em 2013/14 e se sentou no banco durante a final da Champions League naquela temporada, mas longe de competir com Thibaut Courtois. E quando os colchoneros buscaram Jan Oblak para repor a saída do belga, o marroquino preferiu ganhar rodagem em outros lugares. Primeiro passou por empréstimo ao Zaragoza. Depois, assinou com o Girona, outro time da segunda divisão.

A essa altura, Bono era um nome frequente nas convocações da seleção de Marrocos. O goleiro chegou a ser sondado pelo Canadá, mas recusou porque sua ligação com os Leões do Atlas era muito maior. Depois de estrear na equipe principal em 2013, o jovem ganhou um pouco mais de minutos sob as ordens de Badou Zaki. O treinador, afinal, era um especialista da posição: foi o herói dos marroquinos na Copa de 1986 e permanece ainda hoje considerado como um dos maiores goleiros africanos da história. O problema é que o trabalho do técnico não emplacou e ele seria demitido em pouco tempo. Quando Hervé Renard assumiu Marrocos, preferiu deixar Bono no banco e estabeleceu Munir El Kajoui como titular.

A fama de Bono seria construída primeiramente na Espanha. O goleiro virou um dos grandes ídolos do Girona. Em sua primeira temporada na Catalunha, o arqueiro foi essencial na conquista do acesso inédito à elite do Campeonato Espanhol. Também fez uma boa temporada em seu ano de estreia por La Liga, em 2017/18, mas não o suficiente para convencer Renard. Permaneceu no banco de Munir para a Copa do Mundo de 2018, com uma amarga eliminação de Marrocos na fase de grupos. Entretanto, aquela experiência auxiliaria no amadurecimento, tanto do arqueiro quanto da seleção.

Bono caiu com o Girona em 2018/19, mas tinha ido bem o suficiente para atrair atenção de outros clubes da primeira divisão. O Sevilla o levou por empréstimo em 2019/20 e não se arrependeu. Reserva de Tomás Vaclík durante grande parte da temporada, o marroquino disputava os jogos das competições continentais. Calhou de virar protagonista em plena Liga Europa, com defesas decisivas na campanha do título. Depois disso, não deixaria mais a posição. Contratado em definitivo, Bono não deixou mais a titularidade. Virou um dos pilares nos bons desempenhos sob as ordens de Julen Lopetegui. Tão bem que, em 2021/22, o marroquino levou o Troféu Zamora como goleiro menos vazado de La Liga. Tomou só 24 gols em 31 partidas.

O sucesso no Sevilla respaldou Bono na seleção de Marrocos. Mas não seria um ciclo tão tranquilo. Titular na Copa Africana de Nações de 2019, o time caiu nos pênaltis para Benin, durante as oitavas. Voltou ao torneio em 2022, mas a queda ocorreu nas quartas, na prorrogação diante do Egito. Nada que manchasse o status do goleiro, importante para classificar os Leões do Atlas à Copa do Mundo. Bono desembarcou no Catar entre os principais nomes marroquinos.

Não seria uma fase de grupos tão exigente com Bono. O goleiro seria pouco testado contra Croácia e Canadá, seu país natal. O único gol que tomou foi num desvio contra de Nayef Aguerd. Chamou muito mais atenção sua substituição repentina antes da partida contra a Bélgica, quando sentiu tontura após tomar uma infiltração na coxa. Munir El Kajoui entrou e deu conta do recado. A chance de fazer história ficaria mesmo para as oitavas, contra a Espanha que tão bem o acolheu.

Bono também não seria tão testado contra a Espanha, inócua. Quando entrou em ação, foi mais para socar cruzamentos e numa pancada de Dani Olmo em cobrança de falta. Trabalharia muito mais com os pés, em lances que até correu riscos, mas não pagou caro por isso. E se o goleiro estava muito mais descansado que seus companheiros na hora dos pênaltis, então era hora de se agigantar. Foi o que fez. Primeiro, viu Pablo Sarabia acertar a trave. Depois, pegou o tiro de Carlos Soler. Por fim, seria a vez de segurar o tiro de Sergio Busquets. As quartas de final estavam em suas mãos, para Achraf Hakimi fechar a conta com sua sutil cavadinha.

A classificação contra a Espanha dependeu de um esforço hercúleo dos jogadores de linha de Marrocos. Teve o trabalho coletivo muito bem montado por Walid Regragui, que emperrou o motor espanhol. Também se valeu do refinamento de alguns atletas, como Hakim Ziyech e Soufiane Boufal, bem como as batalhas travadas por guerreiros como Sofyan Amrabat e Romain Saïss. De qualquer forma, a história seria escrita apenas pelas mãos salvadoras de Bono. São elas que encaminham os marroquinos a um feito inédito e dão confiança para um passo ainda maior. Equiparar-se a Zaki não é fácil, mas Bono consegue algo que nem a velha lenda conseguiu.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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