Marrocos bancou Ziyech e o ponta recompensa o respaldo com uma fase de grupos brilhante
Ziyech voltou à seleção para ser um dos caras na Copa do Mundo e desfruta a classificação aos mata-matas que não vinha desde 1986

Raríssimos jogadores na história de Marrocos nasceram com o dom de Hakim Ziyech. O trato do camisa 7 com a bola mistura a malícia dos dribles com a precisão dos passes e chutes. Prescindir de um cara como esses parecia loucura. E mais maluca seria a federação se endossasse o discurso de Vahid Halilhodzic, que decidiu abrir mão do craque do time por “questões disciplinares”. Após uma Copa Africana de Nações na qual o meia fez falta ao time, os Leões do Atlas tomaram a decisão correta com a demissão do treinador. Tinham uma ótima opção na manga, especialmente pelo sucesso de Walid Regragui no Wydad Casablanca. E permitiram que Ziyech arrebentasse nessa Copa do Mundo. Está entre os melhores jogadores da fase de grupos, decisivo para a caminhada dos marroquinos de volta aos mata-matas depois de 36 anos – e com a liderança do Grupo F.
É um início de Copa do Mundo mágico para Ziyech. O camisa 7 sabia de sua responsabilidade, pela maneira como a federação apostou em seu talento. Mais do que isso, o ponta vem pressionado pelo momento apagado no Chelsea, em que mesmo a troca de treinador não garante muito espaço. Essa era a sua oportunidade não apenas para aparecer, visando uma transferência para os próximos meses. Era também o momento certo de fazer acontecer, aos 29 anos, com uma rodagem considerável no futebol de seleções.
Lidar com as responsabilidades foi algo que acompanhou Ziyech desde cedo. Filho de imigrantes marroquinos que se mudaram à Holanda antes de seu nascimento, o meia é o mais novo dentre nove filhos. Tinha inspiração em seus irmãos mais velhos, que atuavam nas categorias de base de clubes holandeses. Porém, a morte do pai gerou um impacto na família e seus irmãos passaram a cometer pequenos delitos. Detidos, se viram forçados a abandonar o futebol. Assim, o talento de Ziyech acabou visto como a salvação da família. Não seria tão simples, com o garoto também acumulando problemas disciplinares na adolescência, inclusive autuado por desacato policial e porte ilegal de entorpecentes. Entretanto, a bola se mostrou como um caminho.
O Heerenveen seria importante por acreditar no talento de Ziyech e bancar a sua profissionalização, independentemente dos entraves extracampo. Auxiliou o prodígio a se concentrar no esporte. O técnico Marco van Basten, inclusive, daria sua contribuição nos primórdios do ponta pelo clube e promoveu sua ascensão. Enquanto isso, ele teria sua passagem pelas seleções de base da Holanda. A partir de 2012, o garoto frequentou a Oranje no sub-19, no sub-20 e no sub-21. O momento no Heerenveen era tão bom em 2014 que Ziyech esteve na lista prévia de Louis van Gaal para a Copa do Mundo, mas acabou entre os nove nomes de sobreaviso para a competição.
Contratado pelo Twente, Ziyech seguiu na mira da Holanda para o ciclo posterior ao Mundial. Ganhou a convocação de Guus Hiddink, para uma série de amistosos, mas uma lesão impediu que se juntasse ao elenco. Pouco tempo depois, porém, ele definiu sua escolha. Um nome decisivo para convencer o meia a jogar por Marrocos foi Badou Zaki, lendário goleiro do país na Copa de 1986, que ocupava o cargo de treinador em 2015. “A escolha por uma seleção não é com o cérebro, mas com o coração. Você joga pela seleção com a qual o coração mais se identifica. No meu caso, faço isso sem hesitação. Sempre me senti marroquino, apesar de ter nascido na Holanda. Muita gente não vai entender esse sentimento”, declarou, relatando também episódios em que se sentiu discriminado por suas origens.
Zaki não durou muito no cargo de treinador, mas Ziyech continuou como a nova referência de Marrocos, até pela maneira como seu futebol florescia na Eredivisie, contratado pelo Ajax de 2016. No entanto, a relação com Hervé Renard de início não era boa. O novo treinador dos Leões do Atlas indicava certa resistência ao estilo de jogo do ponta e optava por deixá-lo no banco, bem como sequer o convocou à Copa Africana de 2017. Havia uma clara pressão pública e a federação reuniu o jogador com o técnico para uma conversa. Renard admitiria seu erro e ganharia demais quando se entendeu com o camisa 7.
A volta de Ziyech à seleção de Marrocos seria emocionante. O ponta comandou uma goleada por 6 a 0 sobre Mali nas Eliminatórias e homenageou Abdelhak Nouri, seu amigo no Ajax e outro talento holandês de origem marroquina, que dias antes havia sofrido uma parada cardiorrespiratória que o deixou em estado vegetativo. Na sequência do trabalho, Ziyech chegou em alta para a Copa do Mundo. Era uma das referências técnicas dos Leões do Atlas, num Grupo B que se prometia bastante desafiador. A equipe parou na fase de grupos e o ponta não apresentou o melhor de seu talento, mas ficava clara a impressão de que os marroquinos poderiam voltar mais fortes ao Mundial no próximo ciclo.
Por clubes, Ziyech estourou como melhor jogador de Marrocos, especialmente pelos momentos mágicos com o Ajax. A seleção é que virou um entrave. A campanha na Copa Africana de Nações de 2019 não foi boa, com a eliminação nas oitavas de final. O camisa 7 perdeu um pênalti contra Benin, no jogo que encerrou a campanha de forma precoce. E logo viriam os embates com Vahid Halilhodzic, que substituiu Hervé Renard no comando. Ziyech seria excluído das Eliminatórias e da CAN 2022. O treinador não demonstrava qualquer tipo de apreço ao jogador, tratando-o como indisciplinado e dizendo que não o convocaria “nem se fosse Lionel Messi” – em exílio ampliado a Amine Harit e Noussair Mazraoui. Por sua vez, o craque anunciou sua aposentadoria da seleção.
Estava claro que a decisão de Ziyech não era definitiva. Muitos jogadores o defenderam publicamente, incluindo antigos ídolos da seleção. E depois que Halilhodzic confirmou a vaga na Copa, a federação marroquina resolveu demiti-lo. Era a carta branca para o retorno do camisa 7, o que logo Regragui promoveu. E o que se viu desde os amistosos preparatórios foi uma versão mais leve do ponta, disposto a decidir. Se a sua estadia no Chelsea foi de mais a menos, com a perda de espaço em Stamford Bridge, as chances com os Leões do Atlas garantiam holofotes ao seu talento. Ainda mais numa Copa do Mundo.
Ziyech não teria uma atuação tão boa contra a Croácia, em que Marrocos primou mais pelo desempenho defensivo. Em compensação, gastou a bola diante da Bélgica. A vitória por 2 a 0 está na sua conta, não apenas pela assistência no segundo gol. O meia parecia flutuar em campo, com seus dribles e a capacidade na criação. Foi a liderança técnica que seus compatriotas imaginavam. Isso até que o duelo contra o Canadá terminasse de referendar sua ótima fase de grupos.
Na reta final da preparação, Ziyech marcou o “gol que Pelé não fez”, com um chute do meio do campo contra a Geórgia. Não seria de tão longe diante dos canadenses, mas a saída péssima de Milan Borjan facilitou sua vida. O camisa 7 bateu com enorme categoria da intermediária e encobriu o goleiro com facilidade, para abrir a vitória por 2 a 1. O ponta mais uma vez auxiliou o domínio inicial dos marroquinos, com qualidade nos passes e grande participação. Não seria tão influente na sequência do resultado, mas se doou e auxiliou o time a segurar um resultado difícil enquanto permaneceu em campo. Poderá disputar um mata-mata de Copa, como não acontecia com seu país desde 1986.
Marrocos conta com um dos melhores lados direitos da Copa do Mundo, com as combinações de Ziyech com Achraf Hakimi – o outro protagonista dessa geração, que deu uma linda assistência contra o Canadá e fez também uma excelente fase de grupos. Os Leões do Atlas, acima disso, apresentam qualidade no conjunto e opções até melhores do que em 2018. Apesar do trabalho recente, o técnico Walid Regragui conseguiu construir uma identidade. Não foi uma classificação simples no duro Grupo F, mas os marroquinos superaram bastante as expectativas com a liderança e os sete pontos conquistados. Chegam com respaldo às oitavas pela capacidade como time e também por um extraclasse capaz de decidir num estalo.