A joelhada em Neymar mostra o “poker face” da Fifa

A Fifa é uma instituição de duas caras. Para os negócios, ela apresenta seu rosto severo e suíço. É uma instituição detalhista e zelosa pelo bem estar dos parceiros, com regras claras sobre o que pode e o que não pode. Para o futebol, dentro de campo, ela mostra suas bochechas rosadas e marotas de quem faz de conta que não é com ela quando tudo é com ela. A Fifa faz uma espécie de “poker face”. Ela joga no limite da ambiguidade, com medidas tão surpreendentes quanto um drible de Neymar ou de Messi. As decisões da Fifa, para tudo que está fora dos negócios, é um caminhão-baú de surpresas.
A favor e contra o Brasil – é bom que se diga. Porque a questão não é pachequismo. É só critério, simplesmente.
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Faz uma semana, escrevi um texto explicando . Uma das razões é que ela expunha a falta de critérios da entidade. Escrevi isso:
“O futebol tem uma atitude antiga e ambígua quanto à violência e à intolerância. Eu tenho horror ao que Suarez fez, mas ele não tirou seus colegas de profissão do jogo – como Salgado e Taylor fizeram. É um problema complicado de resolver, mas é preciso começar a estabelecer regras mais claras, com graus de gravidade mais evidentes. Senão, vira casuísmo.
Não é fácil, é verdade. É uma tensão permanente entre punir e relativizar, dizendo que são situações de jogo. Futebol e complicado. Basta lembrar o que acontece com as torcidas organizadas no Brasil e com as punições aos clubes. Primeiro, a pena é alta. Depois, é relativizada. A mesma coisa acontece com dirigentes e jogadores. As balizas morais do futebol são movediças, mudam conforme a situação. E o código disciplinar da Fifa parece ter sido feito para dar margem a isso.
Ambíguo e vago, ele deixa a definição de muitas penas a critério do comitê. Ou seja, a critério do que a Fifa quer. Os itens do código que baniram Suaréz do estádio dizem apenas que alguém pode ser retirado do futebol, mas não define por quanto tempo nem por qual situação. A lei não é clara. E, quando a lei não é clara, só uma parte é beneficiada: quem tem o poder de aplicar a lei. Todos os outros envolvidos – seleções, clubes, atletas – ficam à mercê da vontade de quem pertence ao comitê. Leis claras, simples, coisa óbvia em qualquer país democrático ou instituição que se preze, passam longe da sede da Fifa, na Suíça. É como se o Código Penal fosse tão vago que o governo poderia definir, a qualquer momento, quem vai ou não vai para a cadeia. A Fifa é basicamente um país sem poder judiciário, no qual o presidente toma as decisões como bem entender.”
A joelhada em Neymar mostra o baguncismo da Fifa. Zuñiga não levou nem o cartão amarelo pelo lance que tirou um dos melhores jogadores do planeta da Copa. E não importa se é o Neymar ou não – se Neymar tivesse feito isso contra Zuñiga, eu defenderia a imediata suspensão de Neymar e o fim da Copa para ele.
A joelhada nas costas, capaz de fraturar uma vértebra, passou impune. E não foi só ela. O colombiano já tinha apresentado os cravos da sua chuteira ao joelho de Hulk – e também nada aconteceu. Se Hulk não fosse um sujeito bem nutrido, teríamos uma cena dolorida no gramado. Ok, o juiz não viu. Mas a Fifa viu. E agora cabe a um obscuro comitê, que julga com base num código abstrato e impreciso, decidir alguma coisa entre as dezenas de opções que se apresentam.

Tecnicamente, alguma coisa ainda pode acontecer. Na Copa de 1994, o italiano Mauro Tassotti quebrou o nariz do espanhol Luis Enrique. Juizão não viu o lance – embora o rosto de Luis Enrique estivesse ensanguentado. O jogo seguiu. Mas, depois da partida, a Fifa acabou passando por cima do juiz e dando oito jogos de gancho para o Tassotti. Era muito escandaloso para deixar a punição para lá.. Na maior parte das vezes, porém, a entidade só pune se o juiz também pune – e a tendência é que nada aconteça. Aliás, é bom que se diga, o baguncismo já beneficiou o Brasil no torneio. A cotovelada que Neymar deu nessa Copa merecia uma multa ou a suspensão por um jogo – sei lá, alguma coisa deveria ter sido feita. Nada aconteceu. A falta de critério e de regras claras transforma cada caso numa roleta de possibilidades – a favor ou contra a seleção.
A cotovelada do brasileiro Leonardo no americano Tab Ramos, também na Copa de 1994, completou 20 anos no mesmo dia em que Neymar foi tirado do mundial de 2014. A cotovelada rende dores de cabeça até hoje a Ramos. Leonardo foi expulso e pegou quatro jogos de gancho. A regra não é clara. Na prática, a cotovelada de Leonardo teve mais consequências do que a de Tassotti – só que a pena imposta pela FIFA foi menor. Pense bem: uma cotovelada no rosto do amiguinho, que fraturou ossos da face. Não dá.
A cotovelada terrível de Leonardo em Tab Ramos fez 20 anos neste 4 de julho
Padrão Fifa
Na maior parte das vezes, a Fifa respeita a decisão do árbitro e evita ir além do que o juiz reportou na súmula. Isso tem um lado bom. Imagine a guerra que seria se toda decisão dos árbitros pudesse ser contestada nos tribunais. Ia ser uma loucura. Porém, a Fifa não tem regras claras que possam ser aplicadas quando o árbitro falha miseravelmente – especialmente em casos de lesão ou agressão.
Parece uma herança do arcaísmo do futebol, às vezes preso a códigos de conduta do começo do século 20. Durante bastante tempo, as entradas violentas foram encaradas como parte do jogo. Sociedades violentas acabam encorajando esportes violentos. Em alguns casos, carrinhos trogloditas eram até bem vistos, sinais de virilidade. Só que o mundo muda.
Os jogadores se tornaram cada vez mais caros – uma lesão representa um risco financeiro enorme para o negócio do futebol. A sociedade foi ficando menos tosca – é cada vez mais difícil defender violência como sinal de que “futebol é coisa de macho”. Eu sei, ainda existe quem louve as entradas duras da Libertadores ou os atletas que jogam no limite da regra. Só que essa atitude, cada vez mais, é contestada. Não podemos aceitar que algumas pessoas machuquem colegas de profissão. E isso pode começar lá de cima, com penas duras e exemplos claros – da mesma forma como a FIFA fez para regular, bem, suas relações comerciais Porque a organização, tão moderna na administração dos negócios, continua com a cabeça em algum lugar de 1954. Ela precisa acabar com a sua esquizofrenia decisória pelo bem do jogo.
A cotovelada de Tassotti em Luis Enrique
A mordida de Suaréz rendeu a maior punição já aplicada a um jogador por agressão. Só que, sendo bem preciso, a atitude de Suaréz é bizarra, tosca e repetitiva, mas não impediu Chiellini de continuar jogando. Você pode e deve punir Suaréz pela falta de cavalheirismo e, principalmente, de noção. Morder é infantil demais. Só que a mordida, na prática, não impediu o italiano de continuar trabalhando. Já a joelhada de Zuñiga, sim. Ela tirou Neymar da Copa – assim como a cotovelada de Leonardo impediu Ramos de seguir a carreira por um longo tempo. No padrão Fifa, a bizarria é punida com mais gravidade que a violência bestial. E acaba levando a mais violência.
Zuñiga precisa ser punido, mas não pode ser linchado. Do jeito que as coisas são, é bem capaz de ele levar o troco em breve – e seu agressor pode acabar pegando uma pena leve porque, na lei de milhares de ano da Fifa, ele apenas fez justiça. Não dá. A gente já passou da era dos tacapes e do dente por dente. Se o código de Hamurabi funcionasse, a humanidade teria resolvido boa parte dos seus problemas há uns 1500 anos. O futebol não pode ser tão primitivo.
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Portanto, a Fifa precisa de um choque de civilização. A “poker face” é insustentável. A organização tem de ceder e criar regras claras e parâmetros simples para punição – até para evitar penas injustas. Eu acho que há linhas claríssimas. Toda falta que interrompe a carreira de um jogador por um número X de meses é infração gravíssima e rende penas pesadas – independente se o juiz viu ou não. É como as infrações de trânsito. Basta criar faixas e dividir por infrações leves, moderadas, graves e gravíssimas. Os jogadores precisam saber de antemão os riscos que correm se forem violentos – ou burros.
Caso contrário, vamos continuar vendo um peso e várias medidas nos torneios da entidade. E isso, definitivamente, não é bom para a Fifa, para o jogo, para os negócios e, principalmente, para a saúde dos atletas. Acima de tudo, eles são pessoas iguais a eu e você. O sujeito não pode apanhar miseravelmente no trabalho. Simples assim.
Neymar levou uma joelhada muito forte nas costas e teve de ser substituído (AP Photo/Manu Fernandez)