Copa do Mundo

Hakimi sai da Copa muito maior, pronto para se firmar também como um ícone do futebol africano

Hakimi se confirma como o melhor de sua posição, se candidata ao prêmio de melhor africano do ano e se eterniza como protagonista dessa epopeia marroquina

A Copa do Mundo de 2018 serviu para que mais gente conhecesse Achraf Hakimi. O lateral promissor do Real Madrid não chegava a 20 partidas pela equipe principal merengue. Do lado esquerdo da defesa de Marrocos, o garoto de 19 anos teve boas atuações na Rússia e, mesmo com a eliminação na fase de grupos, mostrou que poderia mais. Quatro anos seriam tempo o bastante para Hakimi se confirmar. Não ficou em Madri, mas conquistou os torcedores de Borussia Dortmund, Internazionale e Paris Saint-Germain. Virou o lateral mais caro da história, com bola de sobra para justificar as cifras. E sai de seu segundo Mundial correspondendo a quem o vê como melhor do planeta em sua posição. O camisa 2 fez uma Copa impecável. Candidata-se ao prêmio de Melhor Jogador Africano do Ano, e dando indícios de que pode se consagrar no futuro como o melhor jogador marroquino da história. O protagonismo na maior epopeia dos Leões do Atlas já o referenda bastante.

Hakimi seria ídolo de Marrocos independentemente da bola que jogasse. O lateral, afinal, é daqueles jogadores que valorizam a seleção. A história do filho de marroquinos com raízes na Espanha é bastante conhecida. Hakimi nasceu em Madri e cresceu na região metropolitana da capital, em Getafe. Desde cedo via seu pai trabalhar como camelô e a mãe fazer faxinas em obras. A bola era um caminho, e a seleção marroquina servia de inspiração. Nascido meses depois da Copa de 1998, Hakimi aprendeu a valorizar os Leões do Atlas em tempos de ausências mundialistas, mas bons papéis na Copa Africana de Nações. Seu ídolo era um zagueiro: Noureddine Naybet, recordista em partidas pela seleção e vitorioso na Espanha com a camisa do Deportivo de La Coruña.

Levado para a base do Real Madrid quando tinha sete anos, Hakimi se destacou entre os garotos merengues rapidamente. Não se podia ignorar um lateral com tamanha combinação de velocidade e qualidade técnica, especialmente numa posição que tantas vezes sofre com a carência de talentos. Quando estava nos juvenis, Hakimi recebeu uma convocação para treinamentos com as seleções espanholas de base, sob as ordens de Luis de la Fuente – o substituto de Luis Enrique no time principal da Espanha atualmente. Não se aclimatou. “Vi que não era o lugar adequado para mim, não me sentia em casa. Não era por nada em concreto, mas por aquilo que sentia, não era o que havia mamado e vivido em casa, que é a cultura árabe, ser marroquino. Queria estar com Marrocos”, afirmou ao diário Marca.

O chamado de Marrocos veio para o sub-20, quando Hakimi continuava na base do Real Madrid. O garoto não precisou esperar muito para dar seu salto ao time principal, convocado por Hervé Renard em outubro de 2016, antes mesmo de completar 18 anos. O camisa 2 terminou aquela temporada na terceira divisão espanhola, com o Real Madrid Castilla. Já o ponto de virada de sua carreira aconteceu em 2017/18, quando Zinédine Zidane o promoveu para o time principal dos merengues e ele também se tornou titular absoluto dos Leões do Atlas.

Não foram muitas chances de Hakimi pelo Real Madrid, ainda assim. Somou 17 partidas na temporada 2017/18, nove por La Liga e outras duas na fase de grupos da Champions, presente no elenco campeão continental. As melhores mostras de talento do garoto ocorriam mesmo por Marrocos. Brilhou nas Eliminatórias, especialmente numa goleada por 6 a 0 sobre Mali. Garantiu seu lugar no Mundial. E se a lateral direita na época era ocupada pelo experiente Nabil Dirar, o novato não tinha problemas em mostrar serviço do lado esquerdo. Foi uma ótima participação do camisa 2 na Rússia, com agressividade no apoio e consistência.

Hakimi virou um nome quente no mercado de transferências e o Borussia Dortmund, tão acostumado a desenvolver jovens, o levou. A partir de 2018/19, Hakimi virou um dos melhores laterais em atividade na Bundesliga. Ainda teve problemas de lesão em seu primeiro ano com os aurinegros, antes de voar baixo em 2019/20, com uma profusão de gols e assistências. De qualquer forma, tão jovem, indicava que tinha pontos a evoluir – especialmente no trato defensivo. Uma lição assimilada após sua venda à Internazionale, sob as ordens de Antonio Conte. Hakimi foi ainda melhor em Milão, principal válvula de escape no time que levou o Scudetto. E se de novo sua produção ofensiva era altíssima, também ganhou capacidade na recomposição. Valorizado, virou o lateral mais caro da história em 2021, diante dos €68 milhões investidos pelo PSG. Não demorou a também virar um dos melhores num time tão estrelado.

A esta altura, Hakimi figurava em qualquer lista de melhores laterais do mundo. Em Marrocos, virou o craque do time. Voltando de lesão, seu rendimento na Copa Africana de Nações em 2019 não seria tão bom. Já na edição de 2022, os Leões do Atlas eram dependentes do camisa 2. Diante da exclusão de Hakim Ziyech e de outros “indisciplinados” pelo técnico Vahid Halilhodzic, o defensor passou a carregar o piano ao lado de Sofiane Boufal. Hakimi marcou até golaço de falta, teve atuações fantásticas. Entretanto, faltaram recursos ao seu redor. Não seria suficiente diante de um duro adversário como o Egito, com a eliminação nas quartas de final.

Para a Copa de 2022, Hakimi estava melhor acompanhado. Ziyech voltou para a ponta direita, Noussair Mazraoui equilibrava o time na esquerda, Azzedine Ounahi ascendia no apoio pelo meio. Com mais combinações, o camisa 2 conseguiu se tornar uma liderança técnica ainda mais evidente no time de Walid Regragui. Marrocos pendia para a direita, mas não necessariamente por dependência, e sim pela qualidade que sobrava com Hakimi. Era sempre uma bola de segurança, até pelas ultrapassagens ao lado de Ziyech e Ounahi.

É até curioso olhar os números de Hakimi na Copa do Mundo. Ele não precisou ser aquele homem decisivo que se provou nos clubes. Foi apenas uma assistência, belíssima, no lançamento para Youssef En-Nesyri marcar contra o Canadá. De qualquer maneira, o que o camisa 2 ofereceu foi muito mais do que isso. A velocidade pelo lado direito era sempre um trunfo, mas também foi uma versão do craque que pensou mais o jogo. Trabalhou bem os passes na defesa antes de buscar lançamentos mais verticais, bem como as importantes inversões a Boufal. Além disso, Hakimi contribuiu demais ao fortíssimo sistema defensivo montado pelos marroquinos. Passou longe de ser um jogador vulnerável na marcação, como muitos gostam de rotular. Saiu do Mundial como líder em desarmes.

E o mais importante é a maneira como Hakimi deixou imagens para a posteridade nessa histórica seleção de Marrocos. Em campo, pelo reencontro com a Espanha. O camisa 2 apresentou um gosto especial por enfrentar o país onde nasceu e cresceu. Foi inesgotável nos 120 minutos e as pernas não pesaram nem um pouco quando teve que cobrar o pênalti decisivo na disputa final. Muito pelo contrário: seu pé direito foi capaz de produzir uma sutil cavadinha, ousada, simbólica. Com leveza, permitia o sorriso desafiador de todo um país.

Já fora de campo, Hakimi cativou pela maneira como escancarou o amor por sua mãe ao resto do mundo. Virou um ritual a cada vitória de Marrocos, ao correr direto para as arquibancadas e escalar as estruturas para receber um beijo. Em repetidas entrevistas, o lateral fez questão de ressaltar como o sacrifício de seus pais permitiu as oportunidades que teve no futebol. Nada melhor, então, que uma Copa do Mundo para demonstrar ainda mais essa gratidão. São cenas que ressoam além, por toda a representatividade, no contexto de uma competição realizada num país árabe. Hakimi virou um embaixador de sua gente.

O futuro é muito amplo a Hakimi. Na bola, por todo o talento que possui, a quem acabou de completar 24 anos. O camisa 2 parece reservado a outros grandes feitos, não apenas pela seleção de Marrocos, mas também nos maiores palcos do futebol de clubes. Não à toa, se coloca como um forte candidato a auxiliar o PSG em sua ambição de conquistar a Champions League. E, paralelamente, além das quatro linhas, Hakimi indica personalidade para se firmar também como uma referência. A imagem que fica dessa Copa de 2022 é muito forte, também para se colocar como um ícone cultural e social tal qual um Mohamed Salah ou um Sadio Mané. Foi prazeroso torcer pelo sucesso de Hakimi neste Mundial, como atleta e também como pessoa.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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