Griezmann assume sua versão mais cerebral para sublinhar, de novo numa Copa, como é um jogadoraço
Depois de quatro anos tão difíceis, Griezmann ressurge numa Copa do Mundo como um general no comando do meio-campo francês e

A Copa do Mundo costuma ser um fardo para muitos craques. A competição que muda o nível de conforto em relação aos clubes, que bota a pressão do tamanho do globo nas costas. Nem todos, porém, tratam assim as grandes competições. Tem aqueles sedentos por encará-las e que, invariavelmente, se engrandecem nestas ocasiões. Dá para colocar Antoine Griezmann nesse rol. O meia possui no currículo uma Eurocopa fantástica em 2016 e um Mundial ainda melhor em 2018, como o principal articulador do time campeão. E se a carreira do camisa 7 nesses últimos quatro anos teve mais críticas que glórias, a Copa de 2022 que faz o maestro é ótima. Impressiona como Griezmann joga para o time, como sente a competição, como faz os Bleus funcionarem. Já vinha de excelentes atuações, mas sua presença contra a Inglaterra foi imprescindível. Dificilmente os franceses teriam vencido uma partida tão dura sem o seu general comandando o meio-campo.
Desde seus primeiros jogos pela seleção da França, a Copa do Mundo se tornou um terreno fértil para o talento de Griezmann. Basta lembrar como aconteceu sua eclosão em 2014. O ponta estreou na equipe de Didier Deschamps três meses antes do Mundial e ganhou a posição que era de Franck Ribéry, ausência sentida por lesão. O novato de 23 anos não engrenou na fase de grupos e foi parar no banco de reservas por isso, mas se aclimatou aos mata-matas logo de cara. O difícil duelo nas oitavas de final contra a Nigéria só se abriu quando o ponta saiu do banco. Não marcou gol ou deu assistência, mas bagunçou a marcação nigeriana e criou várias boas jogadas. Mesmo que a campanha francesa tenha se encerrado na fase seguinte, diante da Alemanha, o novato prometia muito. Lembrava até o que tinha sido o próprio Ribéry em 2006. Não à toa, sua carreira cresceu de proporção quando trocou a Real Sociedad pelo Atlético de Madrid.
Com todo o perdão a Ribéry, mas Griezmann é bem maior na seleção da França. E isso já se percebeu na Euro 2016, disputada em casa. Num time dos Bleus que se mostrava forte, mas ainda não estelar como nos anos seguintes, o camisa 7 voou baixo. Seria uma campanha destrutiva de Griezmann, primeiro como ponta direita, depois centralizado como um ponta-de-lança. A fase de grupos foi relativamente silenciosa, num time que levou um tempo para engrenar, com só um gol diante da Albânia. Já nos mata-matas, o protagonista carregou a equipe de Didier Deschamps. Foram dois gols contra a Irlanda, mais um diante da Islândia (ainda com duas assistências), outros dois na semifinal contra a Alemanha – numa partidaça do meia que lavava a alma da freguesia francesa. O melhor jogador do torneio só sucumbiria na final diante de Portugal, quando foi bem, mas insuficiente diante de Rui Patrício.
Griezmann era o ponto de partida para a construção da França rumo à Copa de 2018. Melhor ainda quando não estava mais sozinho como protagonista. Kylian Mbappé surgiu no meio daquele ciclo, enquanto outros nomes fundamentais se consolidavam – Paul Pogba, N'Golo Kanté, Raphaël Varane. Mais uma vez, a fase de grupos do atacante não seria tão chamativa. Mas sua constância nos mata-matas foi excepcional. Teve gol contra a Argentina, contra o Uruguai foi o melhor em campo, contra a Bélgica a assistência foi sua. Era o catalisador da eficiência de uma seleção que nem pisava tanto no acelerador. Então, em nova final, não parecia disposto a deixar escapar a taça de novo. Marcou seu gol de pênalti e participou das jogadas de outros dois tentos. Ditou o ritmo e também suou a camisa na marcação. O prêmio de melhor em campo no Luzhniki era seu, assim como a Chuteira de Prata e a Bola de Bronze. Nada tão bonito quanto o dourado do troféu.
A carreira de Griezmann, no entanto, pareceu se perder quando chegava no melhor. Havia uma certa dose de deslumbramento e a gestão da carreira não foi das melhores. A história como lenda do Atlético de Madrid estava escrita e almejar passos maiores era um direito do atacante, mas sua transferência ao Barcelona gerou mais ruído do que deveria. E não correspondeu. Griezmann não se encaixou na Catalunha, não só dentro de campo. Não foi mais a estrela de outrora, ainda que seus números não fossem tão ruins. O problema era a quebra de expectativas pelo alarde. Saiu pela porta dos fundos e precisou abaixar a cabeça no retorno ao Metropolitano. Não se mostrava mais o protagonista da época como saiu.
A atual temporada era delicada a Griezmann, e por questões que fugiam de seu controle. Foi vergonhosa a maneira como acabava limitado a poucos minutos no Atlético de Madrid, diante do receio do clube em não pagar uma bolada para contratá-lo de vez. Enfim, quando o imbróglio se resolveu, o camisa 8 teve o respaldo que merecia nos colchoneros. E, a bem da verdade, apesar de todos os problemas do time de Diego Simeone nos últimos meses, ele conseguia se salvar. Garantiu um mínimo de qualidade, ao menos para se preparar à sua terceira Copa do Mundo.
O rendimento mais alto de Griezmann, mesmo assim, não aliviava os questionamentos na seleção da França. Parecia que o camisa 7 só era titular ainda pelo histórico, não pelo momento. Eram justificados os pedidos de Christopher Nkunku em seu lugar. Griezmann ainda teve ótimas fases em eliminatórias e Liga das Nações, por mais que tenha se apagado numa Euro 2020 em que todo o time ficou abaixo. Só que os períodos conturbados em clubes pareciam deixar em xeque seu posto no 11 inicial dos Bleus. Não para Deschamps, que continuou o respaldando.
A lesão de Nkunku, de certa maneira, deu mais tranquilidade para Griezmann. Entretanto, as ausências de Pogba e Kanté traziam novas atribuições. O camisa 7 precisou assumir uma responsabilidade maior na faixa central. E talvez essa seja a maior virtude diante daquilo que se vê do Griezmann de 2022: não precisa ser o ascendente de 2014, ou o explosivo de 2016, ou o condutor de 2018. É uma versão mais cerebral do armador, mais completa. Rege a movimentação do time e oferece os passes finais, ao mesmo tempo em que não se cansa de sujar o uniforme na recomposição. Não quer ser mais a estrela de Hollywood que se apontou naqueles tempos de transferências. Seu desejo é se tornar mesmo uma lenda de Copas – quem sabe, de duas Copas conquistadas, como nunca antes entre os franceses.
Griezmann não se mostra nada incomodado com os holofotes a Mbappé. Pelo contrário, se o ponta se destaca tanto, isso tem responsabilidade direta da forma como o camisa 7 tem jogado. O time da França flui a partir de Griezmann, incansável para botar os companheiros em condições de marcar. E isso sem vaidades para voltar para marcar, para dar combate, para iniciar os avanços lá atrás. O agora veterano de 31 anos sabe que Aurélien Tchouaméni e Adrien Rabiot também precisam de sua tarimba, como um regente dos Bleus. Vem dando muito certo para o craque, um verdadeiro líder técnico.
Basta comparar os números para ver como esse Griezmann é diferente ao de 2018. Sua média de 1,2 finalizações por jogo é significativamente inferior aos 3,1 de quatro anos atrás. Em compensação, são 3,4 passes para arremates dos companheiros, bem maior que os 1,4 da Rússia. Também participa mais, com 39,6 passes certos em média, contra 24,9 no Mundial anterior. Defensivamente, suas estatísticas são melhores em quase todos os quesitos, inclusive recuperando o triplo de bolas por partida. Se por um lado o meia está zerado em gols, por outro ele já superou seu número de assistências, três agora e duas anteriormente.
E para apreciar de verdade esse novo Griezmann, mais do que os melhores momentos, é preciso assistir aos 90 minutos. Tem sido prazeroso acompanhar o seu trabalho, tão refinado quanto empenhado. Já tinha mandado prender e soltar contra a Austrália, engrenagem principal do carrossel, mesmo que seus companheiros tenham insistentemente perdido seus passes açucarados. Contra a Dinamarca, o maestro desequilibrou com a assistência que valeu a vitória. Jogaria pouco diante da Tunísia, antes de mais uma vez ditar a fluidez no baile contra a Polônia. Isso até bater no peito diante da Inglaterra.
Em termos de deslumbramento, não foi a melhor atuação de Griezmann nesta Copa. Mas foi a partida de um jogador grande, daquelas que se esperaria de um Michel Platini ou de um Zinédine Zidane, com todo o perdão pela comparação. Num jogo em que a França perdia o meio-campo, Griezmann tantas vezes precisou voltar para organizar as jogadas e orientar melhor os seus companheiros. Jogava muito bem com a bola, mas ainda mais sem ela. Até porque era preciso ralar para segurar a superioridade inglesa. Não se furtou a fazer faltas, a picotar o jogo, a dar o combate nos adversários. Queria mandar na faixa central, e conseguia.
No fim, Griezmann ainda terminou decisivo com duas assistências. A primeira teve até menos méritos que outras jogadaças dessa Copa. Mesmo assim, anteviu com calma a abertura e entregou para Tchouaméni mandar a sapatada. Já a segunda é um passe consciente e cirúrgico, prova da cátedra do camisa 7. Num momento tão difícil da partida, alguém precisava aparecer. Não foi o bloqueado Mbappé. Seria o magistral Griezmann, com a bola perfeita para a conclusão de Olivier Giroud. Num duelo em que a França foi inferior, a superioridade no placar saiu na conta daquele que mais buscou o controle entre as duas áreas.
É difícil avaliar o tamanho da obra de um jogador ainda em andamento, especialmente no meio de uma Copa do Mundo. Entretanto, este Mundial serve para ressaltar como Griezmann tem um lugar marcante no futebol de seleções. Os clubes dominam a pauta diária e o maior passo do meia foi em falso, embora seja enorme por sua primeira passagem no Atleti. Mas não é pouco repetir um alto nível em dois Mundiais e mais uma Eurocopa desta forma. Griezmann ressalta como sente o tamanho dos jogos e os entende como poucos. Ter o controle de seu time num duelo de quartas de final como esse, com tal nível de desafio, é singular. Afirmou de uma vez por todas a qualidade de sua Copa até agora e reafirmou também sua grandeza que andava um tanto quanto esquecida.