Enquanto o destino estava em seus pés, Di María fez a Argentina se sentir campeã – e ele mereceu demais que terminasse assim
Homem de partidas grandes, Di María foi gigante nesta final imensurável e, enquanto esteve em campo, tornou a Argentina muito maior

Há quase 15 anos, a Argentina descobria um predestinado. Um talento destinado a inesquecíveis momentos. As finais nunca pareceram representar um peso a ele. E seria assim, como um jogador de partidas grandes, que Ángel Di María se colocaria entre os maiores da Albiceleste. O gol que valeu ouro em Pequim era uma espécie de anunciação. Os anos confirmaram o tamanho de Fideo, até que ele se tornasse o responsável pelo grito que os argentinos esperaram por quase três décadas, na conquista da Copa América. Entretanto, Di María merecia uma Copa do Mundo. Depois de três Mundiais frustrados, das mais diferentes maneiras, essa taça seria a sua. Aquela que ratifica de uma vez por todas o camisa 11 como uma lenda. E que teve, de novo, uma final gigante do Ángel predestinado, mesmo que o destino tenha deixado de depender só de seus pés. A quem tinha indicado que esta Copa seria o ato derradeiro com a camisa albiceleste, o ponta precisou assumir o lado torcedor já a partir dos 64 minutos, quando foi substituído. Por fim, terminaria a decisão como completo campeão, eterno, o que ele tanto fez por merecer.
A Copa do Mundo guia a história de Di María no futebol. Porém, não representava totalmente a importância do craque. O jovem dourado de Pequim esteve presente pela primeira vez em 2010, mas não se salvou como todo o resto na equipe de Diego Maradona. O Mundial que parecia ser o do predestinado era o de 2014. O ponta fazia uma campanha gigantesca na equipe de Alejandro Sabella e se colocava como destaque de uma Argentina que chegava longe. Porém, a lesão sofrida nas quartas de final não custou apenas a continuidade de Di María na campanha, mas as próprias chances de sucesso da Albiceleste. O homem decisivo dos jogos grandes fez falta na final contra a Alemanha. Já 2018 colocou em xeque até o futuro de Fideo nas convocações. Não conseguiu salvar a bagunça de Jorge Sampaoli. Parecia se distanciar de seu melhor.
O último ciclo veria Di María inclusive virar coadjuvante na equipe de Lionel Scaloni. Enquanto o time não se acertava, o ponta perdia espaço. Era reserva na Argentina que caiu nas semifinais da Copa América de 2019. Era reserva na Argentina que dependia de Messi na Copa América de 2021. Isso até que viesse a final. Isso até que o destino sorrisse de novo a Di María numa decisão. Titular, como homem de jogos grandes, aquela noite no Maracanã seria sua. O passe de Rodrigo de Paul veio na medida. Depois do fantástico domínio, o sublime toque de Ángel encobriu Ederson e caiu nas redes. A leveza daquela bola tirava das costas argentinas o peso de 29 anos sem títulos, de duas finais de Copa América amargamente perdidas em que ele não salvou. Chegava a hora de voar.

E se a Argentina voou nesses últimos dois anos, é porque Di María também deu asas à sua equipe. A Albiceleste melhorava a cada rodada das Eliminatórias. O veterano fazia partidas impressionantes. Marcou golaço contra o Uruguai, marcou golaço contra o Chile, marcou golaço contra a Venezuela. No primeiro teste contra os europeus depois de tanto tempo, na chamada Finalíssima contra a Itália, era claro que Di María acabaria com o jogo ao lado de Messi em Wembley. As pernas podiam estar mais cansadas do que antes, depois de mais de 120 partidas pela seleção. Mas, aos 34 anos, Fideo não deixava de ser importante. Como foi ao longo de tantos anos, o melhor parceiro a Messi. O mais brilhante e também o mais decisivo, que nunca se importou em dividir a responsabilidade com Leo.
Porém, os filmes de outras Copas pareciam voltar à mente de Di María em 2022. A estreia contra a Arábia Saudita saiu do controle da Argentina. A equipe sofreu com a tensão diante do México, mas venceu, quando o passe (segundo suas próprias palavras) “de merda” do camisa 11 virou assistência ao golaço de Messi. E o veterano seria um dos responsáveis pelo bombardeio diante da Polônia, mesmo que tenha passado em branco. Ainda não era o melhor Mundial do Fideo, por vezes desencontrado, mas dava para esperar sempre algo diferente do ponta. Até que as lesões, sempre elas, voltassem a limitar sua participação nos mata-matas. Os temores de 2014 certamente retornaram à mente do craque. Mas, dessa vez, para escrever um novo final.
Di María precisou ser apenas um mero torcedor contra a Austrália, num jogo que terminou mais tenso que se imaginava para a Argentina. Diante da Holanda, o oponente que ele não encarou na semifinal de 2014, o veterano entrou. Esteve em campo por meros oito minutos no segundo tempo da prorrogação, o suficiente para dar mais gás à pressão, que não evitou os pênaltis, mas da mesma maneira terminou em classificação. Já contra a Croácia, os companheiros foram suficientes para resolver rapidamente a parada na semifinal. Di María pôde descansar na ocasião. Tinha algo a mais guardado ao predestinado na final.

A escalação de Di María contra a França não surpreendia. Se a Argentina quisesse mesmo impor sua força contra os então campeões do mundo, não poderia prescindir de um de seus elementos mais imprevisíveis. Do seu homem de partidas grandes. O que surpreendeu mesmo, sobretudo os franceses, foi a maneira como o camisa 11 entrou na ponta esquerda. Tirou os Bleus dos eixos. Ao longo do primeiro tempo, quase todas as jogadas da Albiceleste acabavam invertidas para aquele flanco do campo. Sabiam que dali viria algo diferente. E o craque estava faminto por aquela ocasião. Pegava a bola, partia para cima, driblava. Os lances podiam não ter o melhor desfecho, faltando um pouco de ritmo às vezes, mas logo a história seria feita.
É natural questionar a marcação do pênalti sobre Di María. O que não se nega é que ele procurava aquilo, que atormentava qualquer francês que tentava combatê-lo. Fideo concedeu a oportunidade para seu grande sócio, Messi, abrir o placar. E diante de uma França nas cordas, era o predestinado camisa 11 quem mais golpeava o moral. Parecia impossível marcar o craque. E foi mesmo, no segundo gol, num contra-ataque de manual, de pé em pé. Os companheiros foram primorosos na troca de passes. O destino de novo caía diante de Ángel, para outro arremate seguro, sem sentir qualquer pressão. Agora a bola passou de leve por cima do goleiro. O coração nas mãos, numa imagem tão sua na comemoração, batia bem mais forte. Parecia uma anunciação.
Ficava difícil imaginar neste momento qualquer destino dessa final que não fosse o título da Argentina. O início do segundo tempo continuou ao gosto da Albiceleste, por mais que a França tentasse se acertar. De novo, as duas melhores jogadas viriam em passes de Di María, sem terminarem nas redes desta vez. O camisa 11 chamava o jogo para si, bagunçava, atordoava a marcação. Mas, como se sabia, não estava 100%. Acabou saindo aos 19 minutos, sem qualquer tipo de reclamação. E se aquela decisão compreensível custava a imprevisibilidade dos argentinos, ainda assim não se imaginava que causaria tamanho impacto.

No banco de reservas, Di María via o destino escapar de seus pés. Como em outras vezes, precisava confiar nos companheiros. E não seria fácil assistir a tudo apenas sentado, colete nas mãos para esconder o rosto e sequer ver. As câmeras sempre procuravam Fideo, ele simbolizava a aflição diante de uma França que reagia, que empatava. Mas, quando veio a prorrogação, quando seu eterno parceiro Messi marcou o terceiro gol, Di María reapareceu como um anjo da anunciação. Correu até o amigo, foi o primeiro a abraçá-lo diante da vibração. Não sem antes voltar à angústia com o novo empate de Mbappé, com os pênaltis que poderiam afastá-lo do topo da história. Para que, enfim, comemorasse sem novos empecilhos. Para que, enfim, sorrisse. Para que, enfim, fosse lembrado como um campeão do mundo. Porque poucos argentinos, campeões do mundo ou não, fizeram tanto quanto Di María pela Albiceleste – e antes mesmo de tocar a taça.
O apito final trouxe a campo um Di María emocionadíssimo. Não poderia deixar de ser assim. Uma das cenas mais bonitas da comemoração foi exatamente o abraço caloroso em Messi, no velho amigo de tantos anos, naquele que sabe tudo o que custou viver aquele momento. Foi uma linda confidência aos olhos do mundo. E o camisa 11 recebia o reconhecimento. Quando seu nome foi anunciado para subir ao pódio, foi um dos mais aplaudidos. Pegou a medalha, deu um grande beijo no dourado que relembrava o passado, as Olimpíadas, a Copa América, mas que nunca tinha se feito tão presente. Nada com a dimensão de uma Copa do Mundo. A Copa que estava destinada a Ángel.
Caberá a Di María definir se este foi mesmo o ato final de sua carreira pela seleção. A emoção na despedida pelas Eliminatórias expressava suas ideias. E o Mundial do Catar ofereceu o desfecho perfeito que ele tanto perseguiu. O camisa 11 pode ter seu protagonismo misturado por tantas histórias, numa final de contorno épico, para ser lembrada entre as maiores de todos os tempos. Mas é preciso lembrar por muito tempo como o homem de partidas grandes foi gigante nestes 3 a 3. Como a Argentina foi muito maior enquanto ele esteve em campo. E se a consagração torna Messi imensurável para o futebol argentino, esses anos de companhia mostram como Di María foi quem se mediu mais perto do gênio. O anúncio de Ángel era o dourado do troféu.
