Com um gol, En-Nesyri rompeu fronteiras, superou limites e pelo resto da vida flutuará no imaginário de tantos marroquinos
Filho da capital cultural e religiosa de Marrocos, criado por um projeto da federação, En-Nesyri marca o gol que representa tanta gente ao redor do mundo

Qual o tamanho de um gol numa Copa do Mundo? Para Youssef En-Nesyri, é do tamanho da África, do tamanho do “Mundo Árabe”. Marrocos quebra barreiras inéditas na história dos Mundiais, ao se tornar a primeira seleção africana e também a primeira árabe a alcançar uma semifinal do torneio. O feito gigantesco dos Leões do Atlas dependeu de uma atuação imensurável contra Portugal, plena em coração e inteligência. Praticamente todos os marroquinos em campo foram impecáveis – os milagres de Bono, o sacrifício de Romain Saïss, o combate de Sofyan Amrabat, a engenhosidade de Azzedine Ounahi. Ainda assim, o gol que vale a eternidade coube a En-Nesyri marcar. O gol da sua vida, o gol da vida de gerações de marroquinos, o gol mais importante de africanos e árabes em Copas. Mais notável, um gol que confirma como o sonho não tem limites e pode ser maior.
A seleção de Marrocos é feita das mais diferentes origens. São filhos da diáspora marroquina, significativa em diversos países, de diferentes continentes, sobretudo na Europa. E essa mistura de origens contribui bastante ao sucesso dos Leões do Atlas, através de jogadores que cultivam suas raízes magrebinas, como tantos imigrantes espalhados ao redor do mundo que comemoram esse triunfo. No entanto, o elenco de Marrocos também se vale dos talentos locais, forjados numa nação apaixonada pelo futebol até a alma e que possui um qualificado trabalho de base. Youssef En-Nesyri é um ótimo exemplo.
En-Nesyri é nascido em Fez, cidade considerada a capital cultural e espiritual de Marrocos. Não é um grande centro futebolístico, mas garantiu os primeiros passos do centroavante no Maghreb AS, clube histórico da cidade. Os aurinegros surgiram ainda nos tempos coloniais, como um símbolo de resistência dos árabes aos franceses, e registraram a melhor campanha de um clube marroquino na Copa da França, pouco antes da independência. Assim, seria num dos bastiões do esporte local que En-Nesyri começaria. No entanto, seu desenvolvimento contou com o apoio da monarquia, graças à Academia Mohammed VI.
A Academia Mohammed VI é um projeto da federação marroquina que emula o que acontece na França com Clairefontaine. O centro de treinamentos reúne os jovens mais promissores do país e os prepara ao mais alto nível do futebol profissional com acompanhamento especializado. Alguns destaques dessa seleção de 2022 passaram por lá, como o zagueiro Nayef Aguerd e o meio-campista Azzedine Ounahi. En-Nesyri é mais um dos casos de sucesso. Ingressou nas estruturas quando tinha 14 anos e permaneceu por lá até os 18. Quando saiu, já tinha proposta para atuar na Europa. O Málaga acertou a contratação do atacante. Antes disso, havia inclusive passado por um teste no Chelsea, mas não se acostumou ao clima de Londres.
Na Andaluzia, com tantas relações culturais e históricas com Marrocos, En-Nesyri se sentiria em casa. Começaria nas categorias de base e passaria pelas filiais. Ainda não chegaria pronto ao time principal, mais lembrado pelo espírito de luta do que pela capacidade de conversão, mas se mostrava promissor. Não à toa, quando os blanquiazules terminaram rebaixados, En-Nesyri conseguiu um novo contrato para ficar na elite de La Liga. Assinou com o Leganés, aproveitando também o cartaz garantido pela Copa de 2018.
Convocado pela seleção adulta de Marrocos desde 2016, En-Nesyri participou da Copa Africana de Nações de 2017 e de parte das Eliminatórias para a Copa do Mundo de 2018. O técnico Hervé Renard confiava na capacidade do centroavante e o levou também para o Mundial da Rússia. Reserva nas duas primeiras partidas, En-Nesyri aproveitou exatamente a chance contra a Espanha. O atacante de 21 anos entrou no segundo tempo e, de cabeça, marcou o gol que garantia a virada momentânea dos Leões do Atlas. O time cederia o empate e se despediria da Copa sem vitórias. Todavia, um caminho se pavimentava ali.
Contratação mais cara da história do Leganés, En-Nesyri melhorou seus números na região metropolitana de Madri. Tornou-se um atacante mais efetivo e muito difícil de se enfrentar, por toda a sua potência física. Ficou uma temporada e meia com os Pepineros, com 15 gols em 53 partidas. Podiam não ser números tão retumbantes, mas o Sevilla pagou €20 milhões para tirá-lo da capital. De volta à Andaluzia, ele se confirmaria como uma boa aposta. A companhia de Bono e Munir El Haddadi no elenco auxiliava sua aclimatação.
Se não começou como titular absoluto no Sevilla, En-Nesyri marcou gols importantes. Ajudaria o time a conquistar a Liga Europa em seu primeiro semestre no clube, inclusive com um tento diante da Roma nas oitavas. Já a temporada de 2020/21 marcou a melhor forma do marroquino, imparável no Nervión. Foram 18 gols por La Liga, decidindo clássico contra o Betis e tudo, além de outros seis na Champions, fundamentais para a caminhada até as oitavas de final. Entretanto, os meses mais recentes foram difíceis para En-Nesyri. A queda de rendimento dos sevillistas também se corresponde à seca de gols do centroavante. Anotou apenas cinco vezes em la Liga 2021/22. Na atual campanha, permanece zerado e passou a frequentar a reserva, por mais que tenha feito algumas boas aparições na Champions.
Para Marrocos, ao menos, En-Nesyri não perdeu o status de principal centroavante à disposição. O atacante esteve presente nas duas últimas edições da Copa Africana de Nações e só não apareceu tanto nas Eliminatórias por causa das lesões. Entretanto, precisava de confiança para o Mundial. E isso o técnico Walid Regragui parece incutir na mentalidade de todos os seus atletas. Pode não ser o período mais prolífico de En-Nesyri. Ainda assim, está clara a importância do camisa 19, sobretudo pela maneira como a equipe joga. É o alvo dos lançamentos longos, a parede para os pivôs, o cara para brigar pela bola na frente. Seu momento chegaria.
Durante as duas primeiras partidas da Copa, contra Croácia e Bélgica, En-Nesyri seria mais suor que inspiração. O centroavante teve apenas uma finalização nos dois jogos, e bloqueada. Em compensação, se esforçou bastante para o funcionamento do time, com os avanços dos pontas para oferecer o refinamento nas conclusões. O prêmio por essa labuta aconteceu diante do Canadá, com o gol no contra-ataque. Recebeu o lançamento primoroso de Achraf Hakimi e deixou a marcação comendo poeira, antes de bater rasteiro. Já diante da Espanha, nos 82 minutos que ficou em campo, de novo En-Nesyri não finalizou. Mas era um leão a cada embate, especialmente na missão de bloquear a construção de jogo dos zagueiros e de Sergio Busquets. Foi ótimo taticamente. Um centroavante, todavia, vive de gols. Contra Portugal, En-Nesyri ganhou vida eterna.
Seria a melhor atuação de En-Nesyri nesta Copa, do ponto de vista ofensivo. O centroavante seria bem mais acionado no primeiro tempo superior de Marrocos. Seriam dois arremates para fora, um passe para finalização. Desdobrou-se também na defesa, para conter as subidas de Portugal. Mas o que fica na memória é o instante em que En-Nesyri vislumbrou a passagem para as semifinais. Foi o anúncio de que a história se cumpriria. Pode se questionar a postura de Rúben Dias na marcação, a saída desastrada de Diogo Costa. Mas, entre as falhas de dois adversários ótimos, sobrou oportunismo e competência ao camisa 19. Subiu para receber o cruzamento de Yahia Attiyat Allah e fuzilou de cabeça. O gol de todo um continente.
A seleção de Marrocos depende do trabalho de cada um de seus jogadores. Do compromisso inesgotável de cada um sem a bola, dos estalos na hora de atacar. É um coletivo que se fortalece por individualidades que se superam. O momento de brilhar chegará. E se o trabalho de En-Nesyri é silencioso, o distanciando das listas de melhores centroavantes do Mundial, seu protagonismo nessa epopeia escrita pelos marroquinos é evidente. O gol que expande limites e rompe fronteiras é seu.
Marrocos não abraça só Marrocos, não abraça só as colônias marroquinas ao redor do mundo. Abraça quem se identifica com essa história, africanos e árabes. Abraça quem se empolga, quem ama futebol, quem não quer despertar os Leões do Atlas de seus sonhos. Abraça quem se permite sonhar junto e ganhar os ares com a cabeçada de En-Nesyri, o centroavante que permanecerá flutuando no imaginário de tanta gente por décadas e décadas. Os marroquinos, já se sabe, nunca o esquecerão.