As lembranças do Argentina 1×0 Croácia de 1998, duelo de grandes craques que teve o brilho de Gallardo
A Argentina venceu a Croácia, confirmou a liderança do grupo e encerrou um jejum de 68 anos sem terminar a primeira fase com 100% de aproveitamento

Já são mais de duas décadas desde que a Copa do Mundo de 1998 aconteceu, mas aquele verão na França permanece fresco nas lembranças. Foi uma edição do Mundial que ofereceu uma coleção de jogaços, craques e times excelentes. Dois deles se enfrentaram em Bordeaux, pela terceira rodada do Grupo H, e voltarão a se encarar no Catar, numa semifinal do torneio. O Argentina x Croácia de 1998 pode não ter causado grandes impactos na tabela, com o triunfo por 1 a 0 garantindo a Albiceleste na primeira posição, mas há uma mística ao redor da partida pela qualidade das equipes. Os croatas, classificados por antecipação tal qual os oponentes, tinham o esquadrão de Davor Suker e Zvonimir Boban. Mesmo assim perderam para os argentinos, com Gabriel Batistuta e Ariel Ortega entre suas lideranças, mas inspirados mesmo por uma atuação imparável do camisa 20 que ganhava uma chance – um jovem Marcelo Gallardo.
Em sua primeira Copa do Mundo, a Croácia cumpriu bem seu papel nas primeiras rodadas do Grupo H. Venceu Jamaica e Japão, para garantir a classificação com antecedência. Todavia, os resultados da Argentina eram ainda mais imponentes diante de jamaicanos e japoneses. A Albiceleste sequer foi vazada nos primeiros compromissos, enquanto Batistuta despontava na artilharia do Mundial com quatro gols. Apesar de alguns questionamentos sobre o trabalho de Daniel Passarella, os resultados iniciais eram satisfatórios.
Passarella, aliás, merece um olhar especial. O capitão do time campeão em 1978 costuma ser relembrado como um técnico linha dura e intransigente. Ficou famosa a decisão de não convocar os “cabeludos” da Argentina, que fez Batistuta aparar as madeixas e Fernando Redondo acabar de fora – mesmo depois de cortar os cabelos em 1998. Ainda assim, o treinador tinha sua própria história de superação a caminho da França. Na época das Eliminatórias, o ex-zagueiro precisou lidar com a morte de um filho. Sebastián tinha apenas 18 anos e faleceu num acidente de carro, ocorrido em 1995.

“Se meu filho não tivesse morrido, eu não teria resistido às críticas durante as Eliminatórias”, afirmaria Passarella, antes do Mundial. “No meio do qualificatório, tive a infelicidade de sofrer um revés gravíssimo – de perder um filho. Com a paz e a força do meu filho lá de cima, todo o resto é secundário para mim. Quando o meu filho morreu, as minhas prioridades foram reorganizadas. Aguentei críticas impiedosas, e então percebi que o futebol não era tão importante quanto pensamos”.
Se a Argentina não havia chegado entre as principais favoritas na Copa, as respostas vinham em campo. Era uma equipe de futebol mais direto e incisivo, que contava com um meio-campo recheado e bons atacantes na frente. De qualquer maneira, o principal teste ocorreria contra a Croácia. Mesmo estreante, a equipe de Miroslav Blazevic apresentava capacidade coletiva e talento individual. Vários nomes do time eram velhos conhecidos dos torcedores nas grandes ligas europeias. A seleção podia ser uma novidade, mas não necessariamente uma surpresa, pela tarimba do elenco. Não seria uma improvável se os croatas ganhassem dos argentinos e assumissem a liderança do Grupo H.
Para aquele encontro, a Argentina vinha modificada em relação aos compromissos anteriores. Roberto Sensini, José Chamot, Diego Simeone e Claudio López ganhavam um descanso. Carlos Roa estava mantido no gol. A defesa tinha três homens, liderados por Roberto Ayala, com Pablo Paz e Nelson Vivas ocupando os lados da zaga. Já nas alas, Javier Zanetti fazia a direita e Mauricio Pineda abria na esquerda. No 3-5-2 de Daniel Passarella, a base do meio era Matías Almeyda. Juan Sebastián Verón organizava o setor e Marcelo Gallardo ganhava uma chance para dar agressividade. Mais à frente, Ariel Ortega aparecia mais adiantado na ligação, para dar apoio a Gabriel Batistuta – empossado capitão na ausência de Simeone.

Já a Croácia manteve sua base principal e ainda contava com a volta do capitão Zvonimir Boban, poupado do jogo anterior após sentir dores. O goleiro Drazen Ladic encabeçava a escalação, com a defesa protegida por Slaven Bilic, Zvonimir Soldo e Dario Simic. O meio-campo tinha Silvio Maric e Robert Jarni nas alas. Mais centralizados, o trio de ases formado por Aljosa Asanovic, Zvonimir Boban e Robert Prosinecki – este um pouco mais fixo, os outros dois se movimentando mais. Já na frente, Mario Stanic caía mais pela esquerda e Davor Suker era um pouco mais acionado da direita para o centro da área.
A Croácia começou a partida sem medo e ia para cima da Argentina. A pressão dos croatas na marcação era bastante forte e recuperava rapidamente a bola no meio-campo. Além disso, os axadrezados buscavam os cruzamentos. Antes dos dois minutos, Bilic lançou uma bola frontal e mandou na cabeça de Suker. O centroavante testou com muito perigo, em tiro que saiu por cima do travessão e parou na parte externa da rede. Quando a Albiceleste atacou, passou a contar com a participação constante de Gallardo na ligação.
A defesa da Croácia não transmitia muita segurança nos primeiros movimentos. Chegava atrasada e cedia faltas aos argentinos. Era uma temeridade, diante da qualidade de Batistuta dentro da área. O centroavante cabeceou duas bolas com perigo antes dos dez minutos, a partir das bolas paradas. Depois do susto inicial, os argentinos estabeleceram seu jogo no campo ofensivo. Verón ditava a distribuição. Quando os croatas respondiam, era com Boban e Prosinecki servindo como principais motores no meio.

O jogo perdeu um pouco de ritmo na sequência do primeiro tempo, mais travado no meio-campo e limitado a chutes de longe sem tanta direção. Muitas faltas picotavam o tempo. A Croácia também mostrava bom toque de bola, mas por vezes abusava da passividade. Em outras oportunidades, parava na firmeza de Almeyda, limpando os trilhos na cabeça de área. A Argentina era mais direta e Batistuta representava uma real preocupação. Bilic logo se encresparia com o centroavante. Ortega fazia uma partida desencontrada, o que não garantia a força esperada do time. No geral, a primeira meia hora de bola rolando foi fraca tecnicamente.
Boban pareceu disposto a botar fogo no jogo aos 33, quando deixou dois adversários batidos no chão em sua disparada até a entrada da área, mas o chute saiu sem direção. E a resposta da Argentina viria em forma de gol, aos 36, num contra-ataque. Depois da dividida de Verón com Maric no meio, Gallardo abriu com Ortega e o camisa 10 honrou o número. O lançamento ainda contou com um leve desvio, mas achou Pineda dentro da área. O lateral matou no peito e bateu bonito com o peito do pé, para fuzilar Ladic.
O gol fez bem para a confiança de Ortega. Pouco depois, o meia encadeou uma série de dribles na ponta direita e cruzou, sem que Batistuta alcançasse. Os passes da Argentina fluíam mais leves, com o time mais seguro em campo. Gallardo também tinha seus lampejos e aplicou um chapéu em Jarni. Num contra-ataque pouco antes do intervalo, se Ortega não fosse tão fominha, poderia ter saído o segundo. Ao menos o armador ganhou uma falta no limite da grande área. Gallardo cobrou na barreira, mas ainda chutou no rebote e exigiu uma defesaça de Ladic no contrapé. Nos acréscimos, ainda deu pra Gallardo aprontar mais uma, num lindo drible ao girar sobre a marcação na intermediária.

O segundo tempo começou ainda sem engrenar muito. A Croácia acionou Goran Vlaovic no banco, no lugar do ala Maric, e ganhou mais ofensividade nos primeiros minutos. A resposta da Argentina viria aos oito, com a entrada de Claudio López no posto de Ortega. Seguia uma partida muito firme, de divididas duras na intermediária. O atacante logo deu mais gás à ofensiva albiceleste, com Batistuta também mais participativo nas jogadas. Os argentinos entravam com mais frequência na área croata, mas Soldo e Simic se davam bem nos combates.
A Argentina tomou um susto aos 18 minutos. No que parecia uma bola morta, Vlaovic mandou uma sapatada de fora da área e estalou o travessão de Roa. Aproveitou muito bem o espaço e o gatilho rápido para surpreender de primeira, sem marcar por centímetros. Já aos 23, a Croácia faria mais uma alteração, com Igor Stimac na vaga de Prosinecki. Ao mesmo tempo, Simeone suplantou Zanetti. Os croatas ficaram próximos do empate numa cobrança de falta em que Roa caçou borboletas e Stanic cabeceou para fora. Contudo, nada que ameaçasse mais do que a jogadaça de Gallardo logo em seguida. O meia atravessou o campo de ataque fazendo fila e mirou o canto, mas a bola saiu lambendo o pé da trave esquerda de Ladic.
A partida contava com alguns lampejos de brilhantismo, como num toque de Boban com o calcanhar no meio-campo. Contudo, faltava um pouco mais de capricho no passe final, de ambos os lados. Quando Verón conseguiu fazer isso e aproveitou um espaço na intermediária para entregar o presente a Simeone, o meio-campista não definiu bem e Ladic defendeu com o pé. O relógio passava dos 30 minutos e, a essa altura, uma virada croata parecia improvável para garantir a primeira colocação.

A Croácia passou a apostar mais nas bolas alçadas durante a reta final da partida, mas a defesa da Argentina segurava as pontas. Ayala teve ótimas partidas naquela Copa, enquanto Pablo Paz também auxiliou bastante na segurança atrás. Enquanto isso, Suker parecia mais desatento que de costume na hora de definir as jogadas. Na última troca de Passarella, Sergio Berti entrou na vaga de Gallardo, o melhor em campo de sua equipe com certas sobras. Era a prudência para contar com um meio-campista mais físico. Porém, os croatas continuavam sem conectar bem suas cabeçadas. E tinham que lidar com a pressão nas arquibancadas. Na reta final, o volume da torcida argentina aumentou e a cantoria se tornou bastante audível. Uma festa bonita, com camisas girando no alto e faixas estendidas. Seria o tom até o apito final.
Depois da partida, o técnico Daniel Passarella destacou como a primeira colocação era vantagem à Argentina também por questões logísticas. A partida das oitavas de final aconteceria em Saint-Étienne, nas proximidades da base albiceleste na França: “A prioridade era o local, porque não desejávamos viajar para longe. Jogamos com uma seleção com volume de jogo muito equilibrado. Mas a Argentina foi mais constante e criou mais situações de gol. A equipe melhora jogo após jogo”.
Além disso, a Argentina recebia elogios por terminar a fase de grupos sem sofrer nenhum gol. Roberto Ayala era o mais elogiado do sistema defensivo. “O nosso segredo é o diálogo na defesa. Não importa se mudam os zagueiros, todos sabem quais são as instruções do treinador, o que deve ser feito em campo. Enfim, somos uma equipe muito unida”, resumiu o beque, que na época defendia o Napoli.
Tanto Argentina quanto Croácia fariam campanhas respeitáveis na sequência da Copa de 1998. A Albiceleste despachou a Inglaterra nos pênaltis e depois sucumbiu na partidaça contra a Holanda nas quartas de final. Já os croatas bateram a Romênia, antes de atropelarem a Alemanha na etapa seguinte. Caíram mesmo apenas nas semifinais, em histórico embate contra a França. Seria a primeira vez do país entre os quatro melhores de um Mundial, o que aconteceu em outras duas oportunidades. Cabe aos próprios argentinos, agora, decidirem se a camisa xadrez estará numa segunda final consecutiva. Desta vez, num encontro bem mais pesado que aquele de 1998.