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Após ser esquecido por tanto tempo, Theo Hernández merece a trajetória que está tendo na Copa do Mundo

O lateral esquerdo foi deixado de lado por Deschamps enquanto brilhava pelo Milan, virou titular de uma hora para a outra e agora está entre os melhores jogadores do torneio

Chegou a um ponto em que era inexplicável. Será que Deschamps não assina qualquer que seja o canal que passa a Serie A na França? Theo Hernández estava tão claramente entre os melhores laterais esquerdos do mundo, talvez o melhor jogador do Milan e do Campeonato Italiano, e não era convocado pela seleção francesa. Ano passado mesmo, assistiu à Eurocopa de casa. Mas, depois de tanto tempo esquecido, merece a trajetória que está tendo na Copa do Mundo, mesmo que ela tenha sido iniciada por um fato infeliz: a lesão de seu irmão logo na estreia.

Os Hernández nasceram em Marselha, no Sul da França, durante os anos em que o pai, Jean-François, defendia o Olympique. Mudaram-se para a Espanha, onde o ex-zagueiro jogou por Atlético de Madrid e Rayo Vallecano antes de deixar a carreira de jogador para trás. E a família. Em 2019, Lucas falou em entrevista à DAZN que Jean-François simplesmente foi embora e nunca mais deu notícias. Nem sabia se ele ainda estava vivo. Veículos franceses, como L’Equipe e France Football, localizaram o pais dos Hernández na Tailândia. Pessoas próximas deram outra versão: de que foi a mãe Laurence Py, quem manteve o pai afastado dos filhos.

De qualquer maneira, Lucas e Theo seguiram na Espanha, passaram pelas categorias de base do Rayo Majadahonda e subiram ao futebol profissional pelo Atlético de Madrid. Theo não chegou a estrear no time principal dos colchoneros. Fez uma temporada emprestado ao Alavés e se destacou tanto que chamou atenção de clubes mais ricos imediatamente. O Atleti tentou se antecipar e ofereceu uma proposta de renovação, rejeitada. Ele acabou contratado pelo Real Madrid, que apareceu para bancar a cláusula de rescisão de cerca de € 24 milhões. O primeiro jogador a fazer essa trajetória desde Santiago Solari em 2000. O Atlético reclamou que o Real ignorou um “pacto de não-agressão” acordado entre os clubes para não contratar atletas um do outro.

O problema é que o Real Madrid às vezes contrata jogadores sem saber exatamente por quê – o que melhorou bastante recentemente. Theo Hernández foi reserva em 2017/18, sob o comando de Zinedine Zidane, e passou a temporada seguinte emprestado à Real Sociedad, enquanto Julen Lopetegui e Santiago Solari encontravam problemas no Santiago Bernabéu, antes do retorno de Zizou. Após apenas 13 jogos, o Real Madrid abriu mão dessa promessa que havia feito tanta questão de tirar do Atlético de Madrid e vendeu Theo Hernández para o Milan, por um valor até menor do que havia pagado. Foi o mesmo mercado em que soltaram quase € 50 milhões por Ferland Mendy, do Lyon, aparentemente contando-o mais para ser o sucessor de Marcelo do que Theo.

O garoto de 22 anos chegou a um Milan em reconstrução, que apostava justamente em talento jovem para recuperar o seu protagonismo. Ele imediatamente se tornou titular e começou a impressionar pelas suas qualidades ofensivas. Foi um grande destaque do Milan em 2020/21, quando o clube conseguiu retornar à Champions League após sete anos afastado, e nem assim convenceu Didier Deschamps a levá-lo à Eurocopa. O técnico preferiu Lucas Digne, então no Everton, e o seu irmão Lucas, que pode ser tanto zagueiro central quanto lateral e tem características mais defensivas. Esse é um ponto crucial.

Theo é um lateral esquerdo com grande qualidade para arrancar, criar jogadas perto da área e até finalizá-las, mas não é tão bom assim na marcação. Em outubro de 2021, pouco depois de promover sua estreia na seleção francesa contra a Finlândia pelas Eliminatórias da Copa do Mundo, Deschamps citou exatamente esse motivo para explicar por que demorou tanto para chamá-lo. “Eu sempre o inclui nas pré-convocações, mas há muita competição. Tenho pensado muito sobre ele faz tempo, ele está muito bem, mesmo que tenha que melhorar defensivamente”, disse, em entrevista à Sport Mediaset.

Deschamps é mesmo famoso por ser um técnico mais cauteloso, e Theo tem mesmo deficiências defensivas, mas ele não estava recebendo nem chances. É um talento tão grande que justifica uma compensação coletiva para dar sustentação às suas subidas ao ataque. Deschamps até tentou, experimentando com um esquema com três zagueiros ao longo do último ano, mas abandonou a ideia e foi para a Copa do Mundo com linha de quatro como sua ideia principal. E Theo Hernández, mesmo com apenas oito jogos pelo time nacional, entre os convocados, curiosamente deixando Mendy em casa. No entanto, começou a campanha na reserva de Lucas, titular na lateral esquerda contra a Austrália.

Quis o destino que, logo aos 13 minutos, Lucas se machucasse seriamente. A lesão no ligamento do joelho tirou o defensor da Copa do Mundo. Fechada a porta, abriu-se a janela, e Theo imediatamente contribuiu com uma assistência para o gol de Adrien Rabiot que empatou o jogo contra a Austrália. Deu outro passe decisivo contra a Dinamarca e abriu o placar nesta quarta-feira contra Marrocos, dando início à vitória que colocou a seleção francesa em sua segunda final consecutiva de Copa do Mundo. E depois disso, deu um pouco de razão a Deschamps.

Porque o lado esquerdo da defesa da França estava sendo muito explorado pelo ataque africano, que causou diversos problemas à campeã do mundo ao longo da partida. Não foi por culpa exclusiva de Theo. Talvez Lucas também tivesse problemas porque Adrien Rabiot, um meia importante para dar equilíbrio ao lado esquerdo, não estava disponível, e Kylian Mbappé não é exatamente conhecido pelo seu trabalho defensivo. A entrada de Marcus Thuram para fechar o lado esquerdo ajudou. A França conseguiu se segurar e matou o jogo.

À história, ficará o gol que marcou, o mais importante da partida, e não os problemas defensivos contra Hakimi – que, aliás, teve trajetória parecida, dispensado pelo Real Madrid e contratado pela Internazionale – e ZIyech. Desde que recebeu a inesperada oportunidade de ser titular, tem mostrado que é um talento especial que não pode ser ignorado nem mesmo pelo melhor elenco do futebol de seleções e talvez seja o lateral esquerdo do time ideal da Copa do Mundo.

Foto de Bruno Bonsanti

Bruno Bonsanti

Como todo aluno da Cásper Líbero que se preze, passou por Rádio Gazeta, Gazeta Esportiva e Portal Terra antes de aterrissar no site que sempre gostou de ler (acredite, ele está falando da Trivela). Acredita que o futebol tem uma capacidade única de causar alegria e tristeza nas mesmas proporções, o que sempre sentiu na pele com os times para os quais torce.
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