Anistia Internacional cobra que Catar cumpra promessa de melhorar as condições para trabalhadores imigrantes antes da Copa do Mundo
Embora o sistema kafala tenha sido abolido por lei, as suas piores práticas seguem vivas e prejudicam a vida de milhões de trabalhadores construindo a infraestrutura do Mundial

A Anistia Internacional afirmou nesta terça-feira que o tempo está acabando para o Catar cumprir as suas promessas de que melhoraria as condições para os cerca de dois milhões de trabalhadores do país antes da Copa do Mundo que sediará ao fim do ano. Apesar de ter introduzido medidas legais a partir de 2017, “a realidade para muitos imigrantes continua dura” e os piores elementos do sistema kafala estão sendo retomados.
O kafala, sistema de trabalho análogo à escravidão, prende o trabalhador ao seu “patrocinador”, como o empregado é chamado nesse contexto. Significa que eles não podem mudar de trabalho ou deixar o país sem autorização do patrocinador. O Catar anunciou no final de 2019 que acabaria com esses dois aspectos centrais do kafala, e, segundo a Anistia Internacional, passou legislações em agosto do ano passado com esse efeito.
O pacote de reformas também incluía leis que regulavam horas de trabalho para trabalhadores domésticos, acesso mais fácil a tribunais trabalhistas, um fundo para financiar atrasos de pagamentos e salário mínimo. No entanto, elas não estão sendo bem implementadas. Trabalhadores afirmaram ao órgão que ainda encontram dificuldades para mudar de emprego.
A Anistia Internacional citou o exemplo de Aisha, que trabalha no setor de hospitalidade. Ela diz que foi ameaçada pelo empregador quando se recusou a assinar um novo contrato e pediu para mudar de emprego. Foi informada que precisaria pagar cerca de US$ 1,6 mil, cinco vezes o seu salário mensal, para conseguir o certificado (Certificado de Não Objeção ou NOC, na sigla em inglês) que lhe permitiria trabalhar em outro lugar, ou seria mandada de volta para seu país de origem. A mudança de legislação deveria dispensar a necessidade desse certificado, mas a queixa que ela enviou ao Ministério de Desenvolvimento Administrativo, Trabalho e Assuntos Sociais foi rejeitada.
O órgão menciona que embora o NOC tenha sido abolido pela lei, não haver nenhum tipo de aprovação por escrito do seu atual empregador aumenta a chance de um pedido de mudança de trabalho ser rejeitado. Isso criou um mercado paralelo lucrativo para empregadores abusivos. Outras práticas abusivas incluem não pagar o salário combinado ou atrasá-lo. O acesso à Justiça permanecesse frágil e os trabalhadores não têm o direito de se organizar coletivamente no Catar.
“O tempo está acabando, mas ainda não é tarde demais para transformar a tinta no papel em ações reais”, afirmou Mark Dummett, diretor do programa de Assuntos Globais da Anistia Internacional. “Agora é a hora para as autoridades do Catar serem ousadas e abraçar totalmente as suas reformas trabalhistas. Qualquer progresso que tenha sido alcançado até agora será desperdiçado se o Catar se contentar com implementações fracas de políticas e não conseguir responsabilizar os empregadores abusivos”.
“A aparente complacência das autoridades está deixando milhares de trabalhadores sob risco contínuo de exploração por empregadores sem escrúpulos, com muitos incapazes de mudar de trabalho ou tendo seu salários roubados. Eles têm poucas esperanças de que haverá remédio, compensação ou justiça. Depois da Copa do Mundo, o destino dos trabalhadores que permanecerem no Catar será ainda mais incerto”, acrescentou.
A Anistia Internacional também afirma que as autoridades do Catar não investigaram a morte de milhares de trabalhadores imigrantes (cerca de 6.500 de países como Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka), apesar das evidências relacionando-as às condições trabalhistas no país. Uma reportagem do jornal britânico The Times identificou que muitos trabalhadores estão retornando ao Nepal com sérios problemas renais.
Um dos entrevistados pelo jornal disse que era obrigado a trabalhar a céu aberto o dia inteiro, sob temperaturas de 45 graus celsius, com acesso insuficiente a água potável e nem sempre recebendo permissão para ir ao banheiro. Segundo os médicos, esses fatores criam um ambiente de risco para o desenvolvimento de doenças renais. Alguns trabalhadores precisaram de transplante de rim, outros terão que fazer diálise o resto da vida.
As reformas anunciadas pelo Catar também deveria dar mais proteção aos trabalhadores, como pausas obrigatórias de acordo com a natureza do trabalho ou o clima em que ele é executado. Pelo menos quatro homens que trabalharam na construção de estádio disseram ao The Times que foram forçados a trabalhar em períodos que violavam as leis trabalhistas do país – como as que estipulam que é proibido trabalhar a céu aberto entre 10h e 15h30 do começo de junho à metade de setembro.
“O Catar é um dos países mais ricos do mundo, mas sua economia depende de dois milhões trabalhadores imigrantes que trabalham lá. Cada um deles tem o direito de ser tratado de maneira justa e obter Justiça e compensação quando encaram práticas abusivas. Ao enviar um sinal claro de que abusos trabalhistas não será tolerados, penalizar empregadores que desrespeitam a lei e protegendo os direitos dos trabalhadores, o Catar pode nos dar um torneio que podemos comemorar. Mas isso ainda não aconteceu”, disse Dummett.
A Anistia Internacional também cobrou que a Fifa “cumpra sua responsabilidade de identificar, impedir, mitigar e remediar riscos de direitos humanos relacionados ao torneio” e que use a sua voz, em público e em privado, para que o governo do Catar execute as reformas trabalhistas que prometeu antes da abertura da Copa do Mundo.