Copa do Mundo

Além de traição aos torcedores, proibição repentina à cerveja nos estádios gera preocupação e incerteza

Quais outras promessas feitas durante a preparação para a Copa do Mundo o Catar não vai cumprir? Só essa mesmo? 

“Bom, isso é constrangedor”. Essa foi a primeira mensagem da Budweiser, patrocinadora da Copa do Mundo desde a edição de 1986, após a Fifa anunciar que não haverá venda de cerveja nos estádios durante os jogos do Mundial do Catar que começa no próximo domingo. Uma decisão tomada de última hora que contraria promessas dos organizadores durante 12 anos de preparação, deixa a Fifa em maus lençóis com suas parceiras e representa uma traição a torcedores que já haviam embarcado ou comprado passagens. E ainda levanta uma questão: e as outras promessas, sobre coisas mais importantes como o respeito a torcedores LGBT, serão cumpridas?

O Catar é um país muçulmano onde o consumo de bebidas alcoólicas é permitido, mas restrito. Há apenas uma loja, além de bares de hotéis chiques, nos quais os preços são altíssimos. Em público, nada feito. Mas diante da perspectiva de receber mais de um milhão de pessoas de todo o mundo, e do contrato de patrocínio de US$ 75 milhões da Fifa com uma marca de cerveja, os organizadores haviam sinalizado que haveria uma flexibilização, um meio-termo entre a cultura dos torcedores turistas e os locais.

Os planos foram feitos e refeitos. O mais recente previa que houvesse venda antes e depois das partidas, mas não durante os jogos. O primeiro indicativo de recuo foi a ordem para que as barracas da Budweiser fossem transferidas para locais mais escondidos dentro dos estádios. Agora, a proibição total. Apenas a Budweiser zero, sem álcool, estará disponível dentro do perímetro dos jogos. Bebida alcoólica será vendida apenas na principal Fan Fest – evento organizado pela Fifa para acompanhar os jogos – e em alguns outros pontos de reunião. E nos camarotes. Quem pagou milhares de dólares por um ingresso VIP pode beber até champanhe.

A Fifa terá problemas. Muitos parceiros estão se sentindo “decepcionados de muitas maneiras”, de acordo com essa reportagem do Guardian, e estão travando discussões informais sobre potenciais violações de contrato. É possível que haja processos, que alguma multa ou compensação tenha que ser acertada. Existe uma linha de pensamento que defende que é isso que a Fifa merece por ter concedido a Copa do Mundo ao Catar. Há méritos nesse argumento. Se não foi a gestão de Gianni Infantino que organizou a eleição fraudulenta de 2010, e se Joseph Blatter sempre foi contra, nenhum dos dois teve peito de mudar a sede e agora a entidade está tendo que lidar com as consequências. Por outro lado, a Copa do Mundo começa em dois dias. Não existe possibilidade de não ser no Catar. Apontar para o erro inicial sempre que houver algum problema não serve para muita coisa. Apenas interdita discussões que podem ser importantes.

Outra linha diz que a Fifa tem que respeitar a soberania nacional do Catar e, se não pode beber em público, não pode beber em público. Lembremos que a entidade pressionou o Brasil a mudar sua legislação justamente para poder vender cerveja durante os jogos da Copa do Mundo de 2014. Evidentemente, esse tipo de interferência não pode acontecer. Mas alguns pontos são importantes. Primeiro, advogar que as leis locais têm que ser respeitadas como um valor absoluto e inexorável em um país onde a homossexualidade é ilegal pode gerar situações muito mais constrangedoras. E, segundo, as leis foram flexibilizadas. Será permitido beber em público em áreas designadas. Os reis do camarote não foram afetados. Não é pelo respeito à soberania nacional que o Catar forçou a mudança.

E, vamos combinar, a constituição do Catar não foi promulgada na última quinta-feira. Nem o contrato da Fifa com a Budweiser era um segredo de Estado. A venda de bebida alcoólica sempre foi uma questão ao longo da preparação e ter deixado para confirmar os planos apenas para a última hora, contrariando as expectativas, foi jogo sujo. Torcedores compraram passagens e embarcaram em aviões achando que poderiam comprar cerveja nos estádios. É possível que a maioria não desistisse se soubesse antes. Mas eles tinham o direito de ter todas as informações antes de decidir gastar uma nota para ver a Copa do Mundo in loco.

Segundo o Guardian e a Reuters, a organização está preocupada com o grande contingente de turistas de outros países muçulmanos, alguns onde bebida alcoólica é simplesmente proibida e pronto, que poderiam ficar desconfortáveis perto de torcedores consumindo cerveja ou chegando bêbados ao estádio. “Muitos torcedores estão vindo do Oriente Médio e do sul da Ásia, onde o álcool não tem um papel tão grande na cultura. O pensamento foi que, para muitos torcedores, a presença de álcool não criaria uma experiência agradável”, disse uma pessoa com conhecimento das negociações à Reuters. As conversas, segundo a agência, foram travadas entre Gianni Infantino, representantes da Budweiser e organizadores.

Beber cerveja nos estádios pode ser uma questão menor, e no fundo realmente é, mas como isso se aplica a outras mais importantes? O discurso oficial dos organizadores sempre foi que todo mundo seria bem recebido durante a Copa do Mundo, diante de preocupações legítimas por uma cultura que proíbe a homossexualidade e oprime mulheres, desde que “respeitassem os costumes locais”, que desaprovam qualquer tipo de expressão de afeto em público. Até sinalizaram que seriam mais permissivos com manifestações políticas pacíficas, incluindo o porte de bandeiras do arco-íris e beijos em público, segundo esta reportagem da Bloomberg no começo de novembro. Mas a própria matéria diz que as orientações podem mudar até o começo da Copa do Mundo, e o problema é justamente esse clima de incerteza e falta de transparência.

“Alguns torcedores gostam de uma cerveja no jogo e alguns não gostam, mas a questão real é a mudança de última hora que fala sobre um problema mais amplo: a total falta de comunicação e clareza do comitê organizador para os torcedores”, disse um porta-voz da Associação de Torcedores da Inglaterra. “Se eles podem mudar de ideia sobre isso de uma hora para a outra, sem explicação, torcedores terão preocupações compreensíveis se eles vão cumprir outras promessas sobre acomodações, transportes ou questões culturais”.

O Catar parece ter percebido o que outras sedes da Copa não perceberam ou não quiseram aproveitar: chega um ponto em que a Fifa precisa mais do país-sede do que o país-sede da Fifa. Não seria responsável especular os motivos, mas Infantino não está apresentando resistência. O Comitê Organizador conseguiu mudar a data da abertura, fez a Fifa enviar uma cartinha às seleções coibindo manifestações políticas durante os jogos, a entidade ainda está enrolando para responder se os jogadores poderão usar braçadeiras com as cores do arco-íris e agora proíbe a venda de bebida alcoólica nos estádios de última hora.

Mais do que a cervejinha, a preocupação é: qual será a próxima?

Foto de Bruno Bonsanti

Bruno Bonsanti

Como todo aluno da Cásper Líbero que se preze, passou por Rádio Gazeta, Gazeta Esportiva e Portal Terra antes de aterrissar no site que sempre gostou de ler (acredite, ele está falando da Trivela). Acredita que o futebol tem uma capacidade única de causar alegria e tristeza nas mesmas proporções, o que sempre sentiu na pele com os times para os quais torce.
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