Copa do Mundo

A despedida de Suárez tinha que ser à flor da pele: um personagem icônico que injetou emoção nas Copas

Luis Suárez deixa a Copa do Mundo bem mais cedo do que gostaria, mas ainda ocupa um lugar especial no imaginário do torneio

A expressão aflita de Luis Suárez do lado de fora do campo rendia uma cena que não parecia inédita na história das Copas. Na verdade, trazia à tona memórias resgatadas de 12 anos antes, na África do Sul. Naquela ocasião, o Pistoleiro também estava angustiado na lateral do gramado, logo depois de ser expulso por sua famosa defesa no final da prorrogação. A história de Asamoah Gyan todos conhecem, com o jovem centroavante charrua logo abrindo o sorriso para comemorar a sorte que o ajudava. Tanto tempo depois, novamente diante dos ganeses, o destino escapava das mãos do artilheiro e ele se via como um mero espectador.

Suárez dependia de seus companheiros. Enquanto esteve em campo, lutou ao máximo e contribuiu à vitória parcial por 2 a 0. Mas, já substituído, soube da virada da Coreia do Sul contra Portugal. O Uruguai precisava de mais um gol de saldo para não ser eliminado na Copa. Desta vez, a ansiedade acabaria em lágrimas. É o ponto final triste de um dos maiores personagens da história das Copas, por mais que ele tenha se empenhado para causar de novo calafrios em Gana nesta sexta.

Ao longo da carreira, Luis Suárez sempre se mostrou à vontade nos grandes palcos. Seria assim na Copa do Mundo, como um personagem inescapável. Em 2010, além da defesa contra Gana, Luisito tinha destroçado a Coreia do Sul nas oitavas de final. Já em 2014, apesar da melancólica mordida em Giorgio Chiellini, muito mais bonita foi a redenção diante da Inglaterra, ao se recuperar milagrosamente de lesão para disputar o Mundial e derrotar a nação com quem tinha uma relação turbulenta. Já em 2018, num tom abaixo, ainda assim guardou dois gols e foi um ótimo coadjuvante ao lado de Edinson Cavani. A Copa lhe apetecia.

O esforço de Suárez para disputar o Mundial de 2022 foi grande. Fisicamente, não dava para esperar muito do atacante de 35 anos. Depois da temporada em que deu sua volta por cima com o Atlético de Madrid em 2020/21, após ser dispensado pelo Barcelona, o centroavante caiu demais. Voltou para casa e se sentiu querido no Nacional, mas estava claro como não seria o Pistoleiro de outros tempos. Uma impressão reforçada na péssima estreia contra a Coreia do Sul, inócuo. A reserva contra Portugal era natural, sem efeito ao sair do banco.

Gana, porém, temia Suárez. Isso ficaria evidente por todas as discussões antes da partida. Na coletiva de imprensa, um jornalista ganês chegou a declarar que, em seu país, o Pistoleiro é visto como o “próprio diabo”. O veterano evitou entrar em polêmicas, mas se recusou a pedir desculpas por aquilo que fez. Já tinha recebido o perdão do próprio Asamoah Gyan, que disse que agiria da mesma forma na posição do uruguaio. Ainda assim, o atacante trataria de vestir a fantasia. Seria um diabo velho, matreiro, diante dos ganeses.

Diego Alonso precisava escalá-lo como titular. Cavani seria a escolha lógica, mas esse jogo tinha um quê de mística que só a Suárez correspondia. Seria ele desde cedo uma sombra no pênalti perdido por André Ayew. E quando a Celeste cresceu contra um adversário desmoronado emocionalmente, o Pistoleiro se fez presente. Não foi o artilheiro implacável, mas sim o atacante chato do qual nunca ninguém pôde se descuidar. Um erro de Gana e o chute do veterano gerou o rebote para Arrascaeta marcar o primeiro. Uma boa trama da Celeste e o craque despertou sua magia com um lindo passe por elevação, de novo para Arrascaeta ampliar.

O corpo não acompanha mais o cérebro. Suárez sofre com isso e sua própria técnica aguçada se perde pela maneira como seus estalos não mais provocam estouros em campo. Entretanto, quando o jogo vai por um lado mental, o veterano sabe como se portar. Sabe como vencer. Foi exatamente isso que fez contra Gana: tratou de ganhar o reencontro na mente. A caneta em Iñaki Williams simboliza isso. As disputas duras no meio, as discussões. Ainda assim, o corpo pede arrego. Não daria para ficar os 90 minutos e ele sairia para dar lugar a Cavani, o mais sensato a se fazer.

A partir de então, Suárez virava um torcedor, o mais fanático dos celestes, para que sua história em Copas não terminasse ali. A situação estava sob controle, com a classificação momentânea do Uruguai, mas um gol da Coreia do Sul contra Portugal mudaria tudo. Aconteceu. Exatamente os sul-coreanos que Suárez destruiu em 2010. E os charruas agora precisavam de mais um gol contra Gana para passar no saldo. Os mesmos ganeses que o Pistoleiro atormentou em 2010. Eles não deixariam barato. Seguraram a diferença e proporcionaram a eliminação dos charruas. O deleite dos Estrelas Negras era ver o choro de Luisito, mesmo que também estivessem eliminados.

E assim se encerra uma das histórias mais vibrantes de um jogador que passou pelas Copas. Teve mordida e gargalhada, teve mão salvadora e pés letais. Teve, principalmente, um cara que auxiliou o Uruguai a redescobrir o orgulho ao redor de sua seleção. Teve um atacante que fez todo o mundo se segurar na cadeira ao vê-lo, independentemente do sentimento. A carreira inteira do Pistoleiro o coloca num lugar muito privilegiado entre os maiores centroavantes de todos os tempos. Ainda assim, são os Mundiais que o ajudam a ser uma figura tão eloquente, amada ou odiada, nunca despercebido. Daqueles que não dá para passar ileso sem uma sensação, uma provocação. Um verdadeiro representante do ardor que faz o futebol, e as Copas, tão vivas.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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