Copa do Mundo

A contundência da estreia ficou muito distante, e a Espanha caiu mostrando a sua pior face

A Espanha trocou mil passes, teve quase 80% de posse de bola, mas não conseguiu transformar essas estatísticas em uma quantidade mínima de chances de gol

Não ter conseguido fazer gol nem na disputa de pênaltis serve como anedota. Muito fiel ao seu estilo, a Espanha consegue dominar a posse de bola e trocar mil passes por partida, mas colocar a bola na rede às vezes é complicado demais. Não é uma crítica nova e nem sempre aplicável. Não pareceu um problema durante a fase de grupos, muito menos na estreia. Nesta terça-feira, nas oitavas de final contra Marrocos, foi um problema muito grande. Durante 120 minutos, teve 77% de posse de bola. O goleiro Bono fez apenas uma defesa, antes de pegar dois pênaltis.

Ficou famoso na época do lançamento do livro “Pep Confidencial” um trecho em que Guardiola chama o tiki-taka de “lixo sem propósito”. Ele criticava uma atuação do Bayern de Munique contra o Nuremberg, com um primeiro tempo em que os seus jogadores trocaram passes demais. Segundo ele, esse fundamento é importante se tiver uma intenção clara – “colocar a bola no gol adversário” – e defendeu que seu jogo nada tem a ver com o tiki-taka. A sua ideia, basicamente, é atrair o adversário para um lado do gramado e dar o “golpe surpresa” no outro.

Propósito é a palavra chave ao analisar a atuação da Espanha contra Marrocos. Houve algum? A Espanha tentou 1.019 passes, acertou 926 e poucas vezes sequer aproximou a bola da meta de Bono. Dos seus 1.235 toques na bola, cerca de 30 foram dentro da grande área adversária. Se a quantidade bruta de finalizações certas pode ser uma estatística enganosa às vezes, seu Expected Goals não chegou a um (0.93), e quem viu o jogo percebeu que os espanhóis levaram muito pouco perigo.

A convicção em si não é um problema. A confiança em seu estilo gerou bons resultados para a Espanha no último ciclo. Chegou mais longe do que se esperava na Eurocopa. Teve uma final de Liga das Nações e alguns resultados relevantes, como goleadas por 6 a 0 sobre Croácia e Alemanha. Com um elenco que mistura muita juventude com alguns jogadores mais próximos do fim da carreira, uma ideia de jogo tão bem definida pode ser uma vantagem. O problema contra Marrocos foi principalmente de execução.

Porque, se às vezes parece mesmo avessa ao fundamento, a Espanha não se propõe a nunca chutar no gol. Luis Enrique teve uma dúvida durante essa Copa do Mundo: jogar com Marco Asensio como falso 9 ou com Morata de centroavante? A primeira opção, na teoria, rende superioridade numérica no meio-campo, um acúmulo de meias que poderia gerar mais chances. Marrocos, porém, travou muito bem a entrada da área, e os pontas não estiveram em uma noite iluminada. Dani Olmo até teve bons momentos na Copa do Mundo. Ferrán Torres pareceu o mesmo jogador sem confiança que defende o Barcelona.

Com a entrada de Morata, aos 18 minutos do segundo tempo, a situação não melhorou, o que pelo menos serviu para mostrar que a mera presença de um homem de área nem sempre resolve a fragilidade de um sistema ofensivo. A única finalização certa da Espanha foi uma cobrança de falta de Dani Olmo, que nem foi realmente um chute. A Espanha ficou mais perigosa com Nico Williams buscando jogadas mais ariscas pela ponta. Mas ainda muito pouco para mudar o panorama de um jogo em que nunca realmente pareceu que sairia um gol da Espanha – o de Marrocos até ficou mais próximo.

Além dos problemas de execução, também ficou clara a falta de um plano B. Luis Enrique pareceu ter dobrado a aposta em sua convocação. Morata foi o único centroavante. Nenhuma alternativa mais de força ou de finalização, como Gerard Moreno. Também não levou Thiago. Os pontas mais incisivos foram Nico Williams, Yeremy Pino e Ansu Fati, três garotos de 20 anos. Não houve muita alternativa quando ficou claro que o jogo de troca de passes não estava fluindo, e essa, sim, é uma crítica importante ao que a Espanha demonstrou nessa Copa do Mundo.

A estreia contra a Costa Rica, no fim, deixou uma impressão exagerada sobre esse time espanhol. Ali, foi um time que conseguiu combinar bem o domínio territorial, a posse de bola e a contundência para conseguir uma grande goleada – que até ficou maior depois das dificuldades que os costarriquenhos impuseram a Japão e Alemanha. A partida contra a Alemanha foi equilibrada, com a Espanha levemente melhor, pecando um pouco nas tomadas de decisão, mas longe de ser tão inofensiva. O terceiro jogo contra o Japão foi bastante específico, e os espanhóis ainda conseguiram levar certo perigo.

Contra Marrocos, porém, apareceu a pior face do jogo espanhol: a famosa posse de bola improdutiva, o arame liso, o domínio pelo domínio, o passe pelo passe, como disse Guardiola anos atrás. Luis Enrique, no geral, faz um bom trabalho na Espanha, e nunca esteve no cronograma de um time tão jovem ser campeão do mundo no Catar. Mas poderia e deveria ter caído mostrando um pouco mais, e não apenas confirmando as impressões ruins que muitos espectadores do futebol têm da seleção espanhola.

Foto de Bruno Bonsanti

Bruno Bonsanti

Como todo aluno da Cásper Líbero que se preze, passou por Rádio Gazeta, Gazeta Esportiva e Portal Terra antes de aterrissar no site que sempre gostou de ler (acredite, ele está falando da Trivela). Acredita que o futebol tem uma capacidade única de causar alegria e tristeza nas mesmas proporções, o que sempre sentiu na pele com os times para os quais torce.
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