Da paixão nacional ao ódio: por que a violência no futebol está longe do fim
A 384ª morte ligada ao futebol no Brasil desde outubro de 1988, data do primeiro registro oficial, aconteceu há menos de uma semana
O futebol é chamado de “paixão nacional” do brasileiro, mas tem virado sinônimo de ódio. Nas últimas semanas, casos graves de violência de torcedores explodiram no esporte. O mais trágico culminou na morte da palmeirense Gabriela Anelli, de 23 anos, atingida no pescoço por estilhaço de garrafa de vidro durante conflito com flamenguistas no lado de fora do Allianz Parque, há uma semana. Naquele dia, quase três horas depois da fatalidade, Palmeiras e Flamengo se enfrentaram pela 14ª rodada do Brasileirão.
Foi a 384ª morte ligada ao futebol no Brasil desde outubro de 1988, data da primeira vítima que se tem registro no país. Antes de Gabriela Anelli, a última morte havia sido do torcedor do Santa Cruz Lucas Gabriel Rosendo, de 21 anos, espancado por torcedores do Sport no dia 21 de maio deste ano. Os dados são do acompanhamento realizado há mais de duas décadas pelo jornalista Rodrigo Vessoni.
Raio X das mortes ligadas ao futebol no Brasil
- Vítimas: 372 homens e 12 mulheres
- Idade: 1 a 19 anos (124 mortes), 20 a 29 anos (171), 30 a 39 anos (66) e 40 anos ou mais (23).
- Estados: SP (63 mortes), RN (44), GO (41), RJ (40), CE (33), PA (27), AL (20), PE (18), MG (18), PB (17), PR (15), SE (13), RS (11), BA (10), SC (5), MS (3), AM (3), ES (2) e DF (1)
- Década: 1980 (1), 1990 (15), 2000 (99), 2010 (234) e 2020 (35)
- Causa: 272 mortes por arma de fogo e 112 mortes por outras causas (agressão física, atropelamento, bomba, pedrada, facada e garrafada).
- Local: 373 mortes fora do estádio e 11 dentro do estádio
- Data: 221 mortes em dia de jogo da vítima e 163 em dia sem jogo
Por que os torcedores brigam?
Simplesmente torcer por um determinado time não é a grande causa de brigas ligadas ao esporte. Autora do livro “Futebol e violência”, professora titular da Unicamp e pesquisadora do Grupo de Estudos do Futebol (Gef), Heloisa Reis listou alguns motivos que fazem os torcedores se enfrentarem: ódio, intolerância e sensação de impunidade. A “cultura” de briga foi importada do hooliganismo, mas hoje o Brasil conta vítimas enquanto na Europa o problema parece estar mais controlado.
“Desde o hooliganismo, vemos algumas explicações de brigas causadas pela masculinidade, de externar a agressividade. Mas por que no Brasil temos tantas fatalidades em comparação com países europeus? A questão do acesso às armas aqui é um fator, a sensação de impunidade é outro fator e temos uma sociedade violenta”, afirmou Heloisa, em entrevista à Trivela.
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Outro estudioso sobre a cultura torcedora, o professor Felipe Tavares Paes Lopes, da FEF-Unicamp, analisou a motivação para brigas ligadas ao futebol. Ele também citou a “masculinidade tóxica” e o reflexo da sociedade no ambiente esportivo, mas destacou que existem diferentes explicações para a violência. O tema é, inclusive, objeto de controvérsia.
“Se analisar esse fenômeno por determinado lado, vai identificar um caminho explicativo. Se analisar por outro lado, vai identificar outro”, iniciou Lopes.
O universo do futebol não é uma ilha, embora guarde uma certa autonomia em relação a outros campos sociais. Então, numa sociedade como a nossa, com muitos problemas de segurança pública, a violência acaba se fazendo presente no futebol.”
Há ainda mais fatores que ajudam a explicar o motivo das brigas: a excitação e o prestígio dentro de torcidas organizadas gerados pelos conflitos e a legitimidade da violência no universo do futebol.
“Não que seja uma prática legal, mas é vista como uma prática digna de apoio pelo conjunto de uma forma geral. Se pegar comentários em redes sociais, muitas pessoas responsabilizam as torcidas organizadas por falta de cobrança a jogadores. Quem critica em um dia está apoiando em outro. A violência no futebol é simplesmente legítima dentro desse universo”, ressaltou Felipe Lopes.
Como acabar com a violência no futebol?
Tanto Heloisa Reis como Felipe Lopes não se mostraram otimistas em relação ao fim da violência no futebol. Nem mesmo os países em que o tema é trabalhado há vários anos conseguiram acabar com brigas no ambiente esportivo. No Brasil, a omissão das autoridades e a impunidade chamam a atenção.
“Infelizmente, a violência no futebol brasileiro nunca vai acabar, assim como nunca acabou no futebol europeu. É um mito reproduzido aqui que não existe violência na Europa, mas lá não tem acesso a armas tão facilitado e não tem a sensação de impunidade. Para não ter violência, tínhamos que estar num processo de estágio muito mais civilizatório, mas ainda estamos muitos distantes disso”, analisou Heloisa Reis.
“Acabar eu não sei se acaba. Acabar pressuporia que o futebol conseguisse ser uma ilha da nossa sociedade, e não vai ser. Somos uma sociedade violentíssima. Mas há uma série de medidas que podem reduzir esse fenômeno, de criar condições mais seguras”, opinou Felipe Lopes.
Ambos os estudiosos citaram a Alemanha como exemplo de como diminuir os casos de brigas no futebol. Após a violência explodir no ambiente esportivo na década de 1980, com o hooliganismo de extrema-direita importado da Itália, as autoridades do país começaram a desenvolver o fanprojekt (projeto de torcedor, em tradução livre) para prestar assistência social aos grupos. O custo é bancado pela liga alemã.
“Em locais públicos, torcedores de diversos times se encontram com profissionais da assistência social e da educação. A Alemanha tem investido em mediação de conflitos e em práticas sociopedagógicas para enfrentar o sexismo, a homofobia e o racismo no futebol. Esses projetos não são pontuais, não é uma faixa no jogo ou um autofalante passando um recado. É um trabalho diário”, explicou Felipe Lopes.
O “modelo inglês”, na maioria das vezes apontado como grande referência sobre o fim da violência no futebol, acabou mudando a estrutura do lazer esportivo no país. A elitização trouxe consequências: alterou a composição social do público dos estádios da Premier League e minou a cultura torcedora, como afirma Heloisa Reis.
Eles só levaram a violência para as divisões inferiores. A mídia não fala mais sobre as brigas e aqui há essa ilusão de que o problema foi resolvido, que é um exemplo.”
O que o Brasil faz para acabar com a violência no futebol?
Na prática, não há uma medida nacional efetiva para combater a violência no futebol. Em 2019, a Comissão Nacional de Prevenção da Violência e Segurança nos Espetáculos Esportivos foi instituída no Ministério dos Esportes (Consegue). Desde sua criação no início dos anos 2000, a comissão realizou reuniões para “desenvolver instrumentos para a melhoria da segurança nas arenas esportivas e propor políticas públicas na área”. Porém, nada saiu do papel.
Até 2019, a Consegue também era ligada ao Ministério da Justiça. Questionado pela reportagem sobre medidas para combater a violência, o Ministério da Justiça passou a bola para o Ministério dos Esportes, que, por sua vez, não respondeu o e-mail até a publicação deste texto.
As medidas para o combate à violência no futebol são tomadas no âmbito estadual, normalmente apresentadas pelo Ministério Público. Um caso clássico é a torcida única, em vigor no estado de São Paulo desde 2016. De lá para cá, 15 torcedores morreram no Estado.
Para Felipe Lopes, a torcida única representa a “falência da sociedade”. Além de ser ineficaz, é um claro sinal da incapacidade das autoridades. O professor ainda alertou que a medida “passa a mensagem que o adversário é o inimigo, que ele não pode estar na nossa casa, e isso pode se tornar um alimentador da intolerância”.
No mês passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei Geral do Esporte (Lei 14.597 de 2023). Assim como já ocorre desde a mudança do Estatuto do Torcedor em 2012, a nova lei permite a criminalização das torcidas organizadas. Se houver algum conflito envolvendo membro dos grupos, os dirigentes das facções podem ser julgados. Na prática, a lei “pune o CNPJ” da torcida em vez de individualizar a pena, com punição ao infrator. As organizadas protestaram contra a aprovação da lei no Congresso, mas ela foi aprovada e posteriormente sancionada por Lula.
Impunidade na maioria das mortes ligadas ao futebol
De acordo com o levantamento do jornalista Rodrigo Vessoni, das 384 mortes ligadas ao futebol, em 263 casos os assassinos saíram impunes e em 114 os criminosos foram julgados. Houve ainda sete mortes de informações desconhecidas.
No caso da palmeirense Gabriela Anelli, o flamenguista Leonardo Felipe Xavier Santiago chegou a ser preso em flagrante e indiciado pela Polícia Civil de São Paulo por homicídio doloso. Porém, como as imagens não esclarecem de onde partiu a garrafa que resultou na morte de Gabriela, a Justiça concedeu a liberdade ao torcedor rubro-negro na última quarta-feira (12).
Os recentes casos de violência ligados ao futebol no Brasil
No mês passado, o clássico entre Santos e Corinthians na Vila Belmiro teve de ser encerrado por causa de bombas arremessadas por torcedores do Peixe no gramado. No dia anterior à partida, a delegação do Corinthians não conseguiu descer do ônibus para entrar no hotel que se hospedaria porque havia torcedores cercando o veículo.
Santistas e corintianos voltaram a protagonizar outros episódios violentos logo depois. Os jogadores Lucas Pires e Nathan foram cercados por torcedores do Peixe quando saíam de uma festa em São Paulo. O clube afastou os dois atletas do elenco.
Torcida Jovem pegou o Nathan e o Lucas Pires na balada.
Apavorou os 2. pic.twitter.com/MSfTNO0WMn— Edinaldo_Silva (@Edinald77430623) June 27, 2023
O caso de Luan também aconteceu durante a madrugada e longe do ambiente esportivo. O jogador estava em um motel na Zona Oeste de São Paulo quando teve o quarto invadido por torcedores do Corinthians. Além das agressões físicas, houve muita ameaça para ele rescindir o contrato. O clube repudiou o ocorrido e cobrou punição aos criminosos.
Luan Guilherme, do Corinthians, se pronuncia pela primeira vez após as agressões que sofreu em um motel.
“Não é só futebol”, escreveu. pic.twitter.com/miGkvEc6UO
— Arthur Sandes (@_arthursandes) July 4, 2023
Nos dois casos, chama a atenção a sensação de impunidade que os torcedores têm. Tanto que foram eles próprios que gravaram os episódios e postaram nas redes sociais. Os santistas publicaram vídeos do “apavoro” em Lucas Pires e Nathan, e os corintianos postaram nas fotos celebrando a agressão a Luan, com a legenda “alvo encontrado com sucesso”.
A violência no futebol não está enraizada apenas em São Paulo, porém. No Rio Grande do Norte, torcedores do ABC invadiram o clube e depredaram carros dos jogadores após a derrota para o Criciúma no último sábado (8).
“Futebol brasileiro caminhando a passos largos para uma tragédia…”, escreveu o meia Thonny Anderson, do ABC, na legenda da foto que mostra seu carro depredado. “Jogaram pedra a 5 metros do meu filho de apenas 2 anos de idade. Se essa pedra pega na cabeça dele, provavelmente não ia escutar mais a voz dele me chamando de papai”, acrescentou o jogador.