Brasil

O Couto, o Allianz e o crime que não estamos verdadeiramente comprometidos em combater

Mesmo com ações destinadas a combater o racismo no futebol, crime é cometido em jogos no Brasil sem punição alguma

Um torcedor sai da sua casa em um domingo de temperatura agradável na capital paranaense, e ruma em direção ao Couto Pereira para assistir ao jogo entre Coritiba x Athletico. Por lá, ele vê o seu time, que vive um momento ruim no Campeonato Brasileiro, vencer o clássico contra o maior rival.

Entre uma provocação e outra com a torcida adversária, ele decide que ali, na frente de milhares de pessoas, é o melhor lugar para imitar um macaco em direção a outro torcedor. Poucos metros atrás, outro homem o acompanha nos mesmos gestos.

Toda essa cena é observada de perto por três seguranças, que apenas olham, imóveis, um crime acontecer. 2023.

Este é o cartão de visitas do Brasil.

Dois dias depois, na terça-feira, um dirigente sai da agradável Buenos Aires, capital da Argentina, viaja 1.700 quilômetros (mais ou menos 2 horas e meia) até chegar no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo.

Por aqui, o seu time, o Boca Juniors, vai jogar a partida decisiva da semifinal da Libertadores contra o Palmeiras. Dois dias depois de desembarcar, ele vai ao Allianz Parque e vê o seu clube eliminar os donos da casa em um jogo emocionante, decidido nas cobranças de pênalti.

Depois do jogo, com a sua equipe classificada, o dirigente se sentiu confortável para imitar um macaco para um torcedor palmeirense.

Este é o cartão de visitas do futebol.

Quando vejo cenas como esta, me lembro de um trecho escrito pouco mais de 60 anos atrás pela escritora brasileira Carolina Maria de Jesus, em seu best-seller ‘Quarto de Despejo', que diz o seguinte: “Quando havia um conflito, quem ia preso era o negro. E muitas vezes o negro estava só olhando. Os soldados não podiam prender os brancos, então prendiam os pretos. Ter uma pele branca era um escudo, um salvo-conduto”.

63 anos antes, ela desenhava o que vimos no último dia 30 de setembro, no Couto Pereira, e no dia 05 de outubro, no Allianz Parque: “os soldados não podiam prender os brancos”, disse Carolina.

O torcedor e o dirigente estavam tão tranquilos e convictos que nenhum mal lhes ocorreriam que não tiveram o menor pudor de fazê-lo na frente de todos, incluindo os seguranças. Por que isso? Pelo simples fato de que esse não é o tipo de crime que não estamos verdadeiramente comprometidos em combater.

É o tipo de crime que mais compensa. Embora tenham punições duras previstas em lei, elas quase nunca são aplicadas. E quem o pratica tem a certeza que o crime de racismo sempre vai ter a pena mais branda possível (quando tem).

Esta é a minha sensação diária. E isso é cansativo. É cansativo saber que ainda hoje, em 2023, nós pretos estamos expostos. É cansativo ter medo de fazer uma simples visita a um estádio de futebol e saber que isso pode acabar se tornando um trauma que, em muitos casos, não vai ser superado.

Eu estou cansado.

Te convido a fazer uma reflexão: porque o Brasil é o único país onde o crime de racismo é tipificado, considerado inafiançável e imprescritível, segundo a Constituição Federal de 88, com pena de reclusão definida, mas que ninguém vai preso por praticá-lo?

No país onde o futebol é quase que uma “sociedade à parte”, as pessoas que frequentam esses espaços se sentem confortáveis para protagonizar as cenas que vão das mais pitorescas às mais agressivas.

Qual foi a última vez que alguém foi preso por ser racista? Qual a mensagem que queremos passar com tudo isso?

“Calma lá, Márcio, é só futebol, vale tudo para ganhar, é só provocação”.

Não, não é. É crime. E já passou da hora de ser punido como tal. E passou da hora, também, dos clubes serem responsabilizados pelo comportamento dos seus torcedores e dirigentes. Passou da hora do futebol mudar.

É muito fácil ter o bônus de ver o seu torcedor quando ele se organiza positivamente e lota as arquibancadas. É muito fácil de orgulhar quando ele se apresenta em um espetáculo de encher os olhos nos estádios. Mas há que se ter o ônus.

O grande problema dessa história é que no Brasil (quase) não há ônus para crime de racismo. A maior paixão nacional, aquilo que nos identifica enquanto brasileiros, não pode ser usado como palco para tal.

E não faltaram casos ao longo dos últimos anos. Assistimos repetidas vezes ofensas racistas e nada mudou, na prática.

Uma pessoa dentro do estádio é capaz de, na frente de milhares de outras pessoas, sem o menor pudor, praticar os maiores absurdos racistas que você possa imaginar. E até quando isso será tolerado? Até quando veremos cenas como as que vimos na última semana e o máximo que teremos são as notas de repúdio e a “contribuição com as investigações”.

Se esse for o nosso máximo, ele não está sendo o suficiente. Ele não é o suficiente.

É preciso mais. É preciso, por exemplo, colocar em prática o que diz o Regulamento Geral de Competições da CBF, em seu artigo 134, que prevê punições esportivas aos clubes pelos casos de racismo envolvendo seus jogadores, incluindo a perda de pontos no Campeonato Brasileiro.

É, sim, preciso punir aquilo que o torcedor mais ama: o seu clube. Assim como os clubes colhem bons frutos quando se unem ao seu torcedor, há o momento de se responsabilizar quando esse mesmo torcedor comete crimes. É preciso ter consequências.

E elas precisam ser duras.

Foto de Márcio Júnior

Márcio Júnior

Márcio Júnior é baiano formado pela Faculdade Regional da Bahia. Cobriu de carnaval a Copa do Mundo na TVE Bahia, onde venceu o prêmio de reportagem do mês. Com passagens pela ALBA, Rádio Educadora, Superesportes e Quinto Quarto.
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