Brasil

Quando Gal Costa perguntou para João Saldanha, às vésperas da Copa de 70, sobre tática e decadência do futebol

A voz de Gal Costa potencializou canções sobre futebol, assim como seus hits ganharam arquibancadas

O Brasil perdeu uma de suas vozes mais potentes nesta quarta-feira. É difícil pensar em alguma canção na voz de Gal Costa que não tenha se tornado um clássico da MPB. A baiana tinha uma energia ímpar que marcava a identidade de suas músicas e potencializava tantas letras. Gal sempre foi total. E num país onde o futebol anda ao lado da sociedade, inclusive das artes, a cantora fez algumas tabelinhas ao longo da carreira. Sua força tinha tudo a ver com a paixão ao redor dos estádios.

Torcedora do Bahia, Gal Costa gravou aquela que talvez seja a versão mais célebre do hino do clube, em conjunto com os “Doces Bárbaros” – os amigos Gilberto Gil, Maria Bethânia e Caetano Veloso. Isso sem contar as interpretações que citam o esporte, como “Samba Rubro-Negro”. A própria Gal também se dizia torcedora do Flamengo.

Outra música boleira que ficou famosa na voz da baiana foi “70 Neles”, preparada para uma peça publicitária na Copa do Mundo de 1986 e que fez sucesso no Mundial do México. Quatro anos antes, em 1982, ela chegou a fazer uma turnê pela Espanha na época da Copa e fez questão de conhecer o Estádio Santiago Bernabéu, palco da final. À Placar, cravou até que “o Brasil seria tetra ao vencer a Alemanha na final”.

Mais notável ainda é a forma como diferentes torcidas abraçaram as canções de Gal Costa. Não são poucas as organizadas no Brasil que adaptaram a letra de “Balancê”, na versão mais famosa de Gal – torcedores de Vasco, Corinthians e São Paulo entre estes. A música virou tema até dos ultras do Porto na homenagem ao então promissor Carlos Alberto. “Festa do Interior” é outra usada de maneira comum nos estádios pelo país.

Se não era necessariamente chegada a uma arquibancada, Gal Costa teve diferentes amigos jogadores de futebol ao longo de sua vida. Nomes como Pelé ou Jairzinho nutriram uma proximidade com a baiana, nos tempos em que eles compartilhavam o auge nos campos com os hits da cantora. Além disso, durante a infância, a própria Gal não negava a bola. Como contaria à revista Manchete, em 1979: “Eu brincava, empinava raia, jogava gude, jogava aquele negócio de ferrinho na terra; brincadeira de garoto, adorava! Brincava de picula na rua, brincava de tudo, de boneca, futebol…”

E um episódio curioso foi proporcionado pela própria revista Manchete, em março de 1970. João Saldanha ainda era o técnico da Seleção, mesmo às portas de ser demitido. Foi o entrevistado no “Paredão”, seção da revista que trazia perguntas de personalidades. Na ocasião, o João Sem Medo foi indagado por figuras das mais diferentes áreas – de Jorge Amado a Zito, de Jorge Ben a Sílvio Santos. Gal Costa também participou, e contribuiu com duas das perguntas mais interessantes. Abaixo, as transcrições. Uma relíquia em tempos de tributo e saudades.

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[Gal Costa] Você é técnico de uma seleção que representa, atualmente, um futebol decadente?

[João Saldanha] Nem no futebol, nem na arte, há coisas decadentes. Existem coisas novas. E as coisas novas são, primeiro, ignoradas, em seguida ridicularizadas e depois os velhões dizem que já sabiam disso há muito tempo. Não há decadência no futebol brasileiro. O que há é uma força tentando se impor. E você sabe que isso é duro, não é?

[Gal Costa] Os europeus estabeleceram vários esquemas táticos para neutralizar o futebol, digamos assim, criativo dos latino-americanos. Fala-se, agora, que a solução para modernizar o futebol brasileiro seria justamente consagrar os esquemas táticos europeus. João: isso seria um erro fatal? Você acha que estaríamos fazendo o jogo deles, abandonando o nosso futebol-arte pelo futebol força? Você, finalmente, é favorável à adoção de um esquema tático que alie a disciplina europeia ao nosso estilo inigualável?

[João Saldanha] Você tem razão. O futebol é como a música. Na música existem sete notas e a instrumentação já é ciência comprovada. Mas cada país toca a sua música de acordo com seu caráter nacional. E não serei eu quem vai modificar o caráter nacional do futebol brasileiro. Isso seria um crime.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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