Brasil

Quando a Portuguesa ganhou de um grande na Justiça

Texto originalmente publicado pelo site Jogos do São Paulo.

Pos­si­vel­mente, esta não foi a única vez que o São Paulo en­trou no cha­mado “ta­petão” para fazer valer algo que acre­di­tava ser seu direito, mas foi neste caso que pensei quando me per­gun­taram se o São Paulo já fez algo pa­re­cido com o que o Flu­mi­nense está fazendo agora. O caso, ob­vi­a­mente tem suas di­fe­renças, mas a na­tu­reza era a mesma. Corria o Cam­pe­o­nato Pau­lista de 1975. O São Paulo sobrou no pri­meiro turno e levou-o com fa­ci­li­dade. No se­gundo turno, também dis­parou à frente dos de­mais, mas isso pouco adiantou, já que o turno teria uma fase de­ci­siva, dis­pu­tada apenas em jogos de ida entre os seis clubes mais bem co­lo­cados — que confusão! Ainda in­victo, o Tri­color era o fa­vo­rito a con­quistar o re­turno e, com ele, o campeonato.

Mas tudo co­meçou a ir por água abaixo em 6 de agosto, no jogo entre Por­tu­guesa e Amé­rica de São José do Rio Preto, no Pa­ca­embu. O time in­te­ri­o­rano saiu na frente, aos cinco mi­nutos do se­gundo tempo, após es­can­teio que o go­leiro Zecão não con­se­guiu afastar e sobrou para Pau­linho marcar, de pri­meira. Dois mi­nutos de­pois, o em­pate da Lusa, com Tatá com­ple­tando após di­vi­dida entre Wilsinho e o go­leiro Luís Antônio.

E o jogo acabou ali.

Sim, porque, no início do lance, o as­sis­tente Mauro Félix da Silva marcou im­pe­di­mento de Enéas, mas o ár­bitro Ro­berto Nunes Morgado ignorou-o e deixou a jo­gada se­guir, até o gol. Os jo­ga­dores do Amé­rica negaram-se a dar pros­se­gui­mento ao jogo, en­quanto Mor­gado, ir­re­du­ti­vel­mente, recusava-se a con­sultar o ban­dei­rinha, que per­ma­neceu, im­pá­vido, na mesma po­sição. Por cerca de doze mi­nutos, houve muita dis­cussão, com in­vasão de campo por parte do téc­nico Uru­batão e do di­retor de Fu­tebol Hélcio de Barros, ambos do time vi­si­tante, até que Mor­gado or­denou, pela úl­tima vez, que a saída fosse dada.

Não foi. Assim, ele apitou o final do jogo, não sem antes ex­pulsar o za­gueiro Miro, que o teria cha­mado de la­drão (Miro negou). Segundo Uru­batão, ele foi voto ven­cido na de­cisão de “melar o jogo”, ideia do pre­si­dente Be­ne­dito Tei­xeira. Mor­gado e seus assistentes dei­xaram o gra­mado sob es­colta po­li­cial, en­quanto os jo­ga­dores ame­ri­canos fi­cavam ba­tendo bola e dando en­tre­vistas. Eles só vol­ta­riam ao ves­tiário muito de­pois da saída do trio de ar­bi­tragem. Al­guns cri­ti­caram a de­cisão do pre­si­dente, ale­gando que de­ve­riam ter dado pros­se­gui­mento à par­tida e, em se­guida, si­mu­lado con­tu­sões até fi­carem sem o li­mite mí­nimo de jo­ga­dores em campo, o que teria sido su­ge­rido por Barros.

“Es­tamos há um tempão longe de casa, con­cen­trados em São Ca­e­tano”, la­mentou Uru­batão. “Mos­tramos que temos con­di­ções de fazer jogo duro com todos os grandes. E aí apa­rece um juiz como esse e li­quida com todo o nosso tra­balho. Temos que en­tender que nossos jo­ga­dores são hu­manos e não podem aguentar certas coisas.”

“Em ne­nhum mo­mento du­videi da va­li­dade do lance”, afirmou o ár­bitro, ainda no es­tádio. Ele seria con­tra­dito pelas ima­gens da te­levisão, não pelo im­pe­di­mento, que não ficou evi­dente, mas pela falta cla­mo­rosa de Wil­sinho em Luís Antônio, que foi im­pe­dido de tentar de­fender o chute de Tatá. (Cu­ri­o­sa­mente, duas se­manas antes, na pri­meira ro­dada da fase de­ci­siva, ele tinha va­li­dado um gol de Ser­ginho, do São Paulo, contra a mesma Por­tu­guesa, mas voltou atrás de­pois de ver que seu as­sis­tente tinha dado im­pe­di­mento no lance. As ima­gens da te­le­visão também foram contra sua de­cisão final, ao mos­trarem que o ata­cante são-paulino tinha con­di­ções de jogo. A par­tida ter­minou em­pa­tada por um gol.)

No dia se­guinte, o de­par­ta­mento téc­nico da Fe­de­ração Pau­lista de Fu­tebol reuniu-se para ela­borar um pa­recer para o Tri­bunal de Justiça Des­por­tiva, pron­ta­mente re­fe­ren­dado pelo pre­si­dente da FPF, José Er­mírio de Mo­raes Filho. A re­co­men­dação foi de de­clarar a Por­tu­guesa ven­ce­dora da par­tida, pelo placar de 1 a 0. Mesmo antes do jul­ga­mento, que só ocor­reria na se­mana se­guinte, o ve­re­dicto já es­tava pre­pa­rado. O di­retor do de­par­ta­mento téc­nico da fe­de­ração ex­plicou: “O juiz é quem de­cide. Se ele não tiver dú­vidas, aponta para o meio-de-campo. Se es­tiver in­de­ciso, ba­seia sua de­cisão em al­guma as­si­na­lação que o ban­dei­rinha pode ter feito du­rante a jogada. Mas tudo isso de longe. Nada de diálogos.”

Apesar de o ad­vo­gado do Amé­rica, José Ge­raldo Góis, bradar aos quatro ventos que não ad­mi­tiria uma de­cisão da fe­de­ração antes do jul­ga­mento, uma reu­nião entre Tei­xeira e Er­mírio de Mo­raes já pa­recia ter dei­xado claro que o “diabo” aca­taria a pena que lhe fosse apli­cada. O São Paulo, que bri­gava ponto a ponto com a Por­tu­guesa, saiu fu­me­gando da his­tória. Ao jogar no dia se­guinte, contra o Santos, o pre­si­dente Henri Aidar apon­tava para as ar­qui­ban­cadas va­zias (o pú­blico foi de pouco mais de 23 mil pa­gantes, ir­ri­sório para a época) e re­cla­mava: “É claro que o pú­blico tem de ser pe­queno. O pes­soal já sabe que, para co­nhecer o re­sul­tado do jogo, é pre­ciso es­perar pelo re­la­tório dos juízes.”

Na­quele mo­mento, a única ati­tude que o São Paulo ga­rantia que iria fazer era so­li­citar uma pu­nição a Mor­gado, mas seus di­ri­gentes não des­car­tavam a ideia de re­correr ao TJD, como ter­ceiro in­te­res­sado. O di­retor de Fu­tebol José Dou­glas Dal­lora, con­tudo, não tinha grandes es­pe­ranças de su­cesso: “O Amé­rica foi um pouco in­gênuo ao tirar o time de campo. Com isso, vai ser muito di­fícil evitar que perca os pontos do jogo.”

Se o São Paulo ti­vesse ven­cido o Santos na­quela noite, talvez nem pre­ci­sasse se pre­o­cupar muito com de­ci­sões ex­tra­campo, mas perdeu o jogo e uma in­ven­ci­bi­li­dade de quase nove meses: 2 a 1, com dois gols de Cláudio Adão e um de Pedro Rocha. A uma ro­dada do fim da fase de­ci­siva, Amé­rica e Palmeiras já não ti­nham mais chances, en­quanto São Paulo, Santos e Corinthians ti­nham quatro pontos, dois atrás da Por­tu­guesa. Como tinha o mesmo saldo do Santos, ao São Paulo res­tava apenas vencer o Corinthians e torcer para o Santos bater a Lusa — e o Tri­color teria de com­pensar o me­lhor saldo lu­si­tano, além de não per­mitir que o peixe, então com o mesmo saldo, au­men­tasse essa diferença.

Mesmo com a pos­si­bi­li­dade de uma com­bi­nação de re­sul­tados, os jogos não foram con­co­mi­tantes. Foi mar­cada uma ro­dada tripla para o Mo­rumbi, no do­mingo, com os dois eli­mi­nados fa­zendo a aber­tura, às 13h30, se­guida pelo Ma­jes­toso, às 15h30, e por Santos × Portu­guesa, a partir das 17h30. “Gos­taram da no­vi­dade?”, jactou-se Er­mírio de Mo­raes. “Re­sol­vemos assim, in­cluindo mais um jogo, como pre­sente ao pú­blico pau­lista.” (Amé­rica e Palmeiras fi­ca­riam cada um com 5% da renda lí­quida a que os ou­tros quatro times teriam direito.)

O São Paulo até venceu o Corinthians, por 2 a 1, com dois gols de Ser­ginho, mas esse re­sul­tado já o ali­java da briga. O Santos também venceu, mas faltou-lhe um gol: o 1 a 0 deu o tí­tulo para a Por­tu­guesa, mesmo com os três times ter­mi­nando em­pa­tados com seis pontos. Quer dizer, ainda fal­tavam os re­cursos de Santos e São Paulo ao TJD. O do São Paulo não bus­cava mais repor ao menos um ponto ao América, mas, sim, a ques­ti­onar a regra do saldo de gols como cri­tério de desempate.

Não o saldo de gols em si, mas os jogos a que ele se re­feria. Para o São Paulo, o de­sem­pate de­veria levar em con­si­de­ração o saldo de gols do se­gundo turno in­teiro, in­cluindo a pri­meira fase do mesmo: assim, teria um saldo de 20, contra 13 da Por­tu­guesa e 4 do Santos. “É saldo de gols de todo o se­gundo turno, e não apenas destas fi­nais”, pro­tes­tava o mé­dico são-paulino, Dal­zell Freire Gaspar. “A não ser que o cam­pe­o­nato tenha tido três turnos. Se teve, o São Paulo venceu dois; se teve dois turnos, o saldo de gols deve ser vá­lido por todo o se­gundo turno.” O ar­gu­mento até faz algum sen­tido, mas o re­gu­la­mento tinha sido apro­vado por todos os clubes antes de o torneio começar…

Já o Santos ainda bus­cava a anu­lação do jogo entre Por­tu­guesa e Amé­rica, e seu vice-presidente, Clayton Bit­ten­court, era con­tun­dente nas de­cla­ra­ções: “Se ti­vés­semos per­dido o jogo, nem pen­sa­ríamos em re­curso, mas agora vamos levar essa briga até o fim. É um absurdo que a Por­tu­guesa seja be­ne­fi­ciada no­va­mente deste jeito. Na fe­de­ração, ela não ga­nhará cam­pe­o­nato ne­nhum. Já acon­teceu em 1973, e passou. Mas agora é de­mais, uma imo­ra­li­dade que não po­demos permitir.”

No dia se­guinte ao jogo, a sede da FPF, na Ave­nida Bri­ga­deiro Luís Antônio, re­cebeu um grande mo­vi­mento de car­tolas e jor­na­listas. O pre­si­dente da Por­tu­guesa, Os­valdo Tei­xeira Du­arte, de­mons­trava con­fi­ança: “Meu amigo Zé Er­mírio em­pe­nhou sua pa­lavra de honra que a Por­tu­guesa é campeã. A palavra do pre­si­dente vale muito para mim.” Aidar também: “Vi­emos buscar o tí­tulo que nos per­tence. Isto não é um re­curso. É apenas um pe­dido de in­ter­pre­tação do re­gu­la­mento. Por que con­si­derar a fase final do se­gundo turno como quase um ter­ceiro turno, com os times co­me­çando com o saldo de zero?”

Mas o pa­recer final do de­par­ta­mento téc­nico foi de­fi­ni­tivo: “O re­gu­la­mento é claro. A Por­tu­guesa é campeã.” Er­mírio de Mo­raes ra­ti­ficava: “As equipes es­tavam em chaves di­fe­rentes no se­gundo turno e não dis­pu­taram o mesmo nú­mero de jogos.” Isso antes mesmo de apa­recer o re­curso do Santos, o que só ocor­reria no dia se­guinte. Correu a no­tícia de que o clube também en­traria com uma li­minar so­li­ci­tando o adi­a­mento das fi­nais do cam­pe­o­nato, já mar­cadas para aquela quarta-feira e o do­mingo se­guinte, mas ra­pi­da­mente esse boato desfez-se, e São Paulo e Por­tu­guesa pu­deram jogar a pri­meira par­tida sem problemas.

Quando do se­gundo jogo, o re­curso san­tista já nem era mais le­vado muito a sério, e a grande mai­oria dos car­tolas pau­listas achava que o Santos per­deria por una­ni­mi­dade no TJD. O São Paulo perdeu a par­tida, mas, nos pê­naltis, ficou com o título.

Foto de Ubiratan Leal

Ubiratan Leal

Ubiratan Leal formou-se em jornalismo na PUC-SP. Está na Trivela desde 2005, passando por reportagem e edição em site e revista, pelas colunas de América Latina, Espanha, Brasil e Inglaterra. Atualmente, comenta futebol e beisebol na ESPN e é comandante-em-chefe do site Balipodo.com.br. Cria teorias complexas para tudo (até como ajeitar a feijoada no prato) é mais que lazer, é quase obsessão. Azar dos outros, que precisam aguentar e, agora, dos leitores da Trivela, que terão de lê-las.
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