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O espírito guerreiro de Gum rendeu uma noite inesquecível aos tricolores no Parque Central

Idolatria é uma grandeza que não se mede através da qualidade técnica. Essa máxima, aliás, se faz ainda mais verdadeira no futebol brasileiro, onde as promessas mal constroem uma história sólida nos clubes, vendidos ao menor sinal de talento. Obviamente, há ídolos perecíveis referendados por grandes atuações ou conquistas esporádicas. Mas não se comparam à mesma régua de dedicação daqueles que passam anos no clube, encarando os bons e os maus momentos. Os que não se colocam exatamente como unanimidades pelo que jogam, e sim pelo que são. A aura do “Fluminense guerreiro” que faturou dois títulos brasileiros dependeu de craques inegáveis, abrilhantando os títulos. Mas também do suor de um cara como Gum. Do zagueiro não mais que esforçado, mas cujo esforço máximo pode render atuações heroicas. O veterano entende o espírito tricolor mais do que qualquer outro nos últimos anos. E que fez isso valer, na agonizante classificação às semifinais da Copa Sul-Americana.

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O currículo de Gum no Fluminense fala por si. Já são quase dez anos nas Laranjeiras, desde sua contratação junto à Ponte Preta em 2009. São mais de 400 jogos fazendo da camisa tricolor a sua segunda pele. O zagueiro já levou muitos torcedores a se descabelarem por seus erros e custou resultados ao clube. A quem vê de fora, não passa de um jogador com seus deslizes. De dentro, porém, a efemeridade das falhas se perdoa. A camisa 3 representa algo diferente, porque nenhum outro sente o peso do escudo no peito tão bem quanto o veterano. É isso que faz a diferença. É o que fica, depois de tudo o que vivenciou com os tricolores.

A liderança de Gum é algo que empurra o Fluminense, mesmo diante de todas as interrogações. O zagueiro fez parte de momentos abastados nas Laranjeiras. Todavia, também aprendeu a conviver com as vacas magras e, por isso mesmo, sua mentalidade se torna bastante importante. É uma voz ativa e alguém que ajuda os tricolores a se superarem, independentemente das desconfianças. Em um ano no qual havia grandes temores sobre a competitividade da equipe, a campanha no Brasileiro permanece razoável e a chance de uma conquista continental surge no horizonte. Extravasar as probabilidades virou uma palavra de ordem.

E se todo jogador, acima de seus poréns, sempre possui uma atuação espetacular para marcar a carreira, Gum experimentou a sensação ímpar nesta quarta-feira. O zagueiro, é claro, possui algumas exibições ótimas com a camisa do Fluminense ao longo destes nove anos. Mas talvez nada comparado ao que protagonizou no Gran Parque Central, em Montevidéu. Não superou apenas as limitações técnicas para segurar a vitória magra do Fluminense e impulsionar o time às semifinais da Copa Sul-Americana. O veterano também foi além de suas próprias barreiras físicas, para suportar uma noite extenuante.

Gum já tinha sido importante no jogo do Rio de Janeiro. Anotou o gol do empate no Estádio Nilton Santos, em duelo no qual sofreu um entorse tornozelo. Voltou a treinar apenas na segunda-feira e estava pronto para encarar o desafio no Parque Central, apesar das dores que persistiam. O incômodo se tornou maior durante o aquecimento e somente uma injeção permitiu que o veterano entrasse em campo. Ainda assim, não jogou a toalha. Foi para o sacrifício. Precisou suportar a provação principalmente no segundo tempo, não apenas pela pressão do Nacional, mas também pelas dores que voltavam a se intensificar. As dificuldades eram evidentes e, no entanto, o defensor se recusava a ser substituído. Mais do que isso, era predominante nos arredores da área, ajudando o Fluminense a se manter ileso até o apito final. Um guerreiro.

E a noite se tornou mais representativa após o apito final, em meio à celebração tricolor. Gum caminhou até o setor visitante do Parque Central, para agradecer o apoio daqueles que viajaram até Montevidéu. Batia no alambrado e no peito, gritando “isso aqui é Fluminense”. Com o rosto úmido entre suor e lágrimas, quase sem voz, falou sobre sua jornada: “Esse clube merece, esses torcedores merecem muito. Eu fui para o jogo porque meus companheiros merecem, porque pelas dores não era para eu ter jogado. Mas eles merecem. Os torcedores que vieram e acreditaram merecem também, nossa família merece. Estamos lutando, queremos mais”. Depois, ainda olhou para a câmera do Fox Sports e pediu aos torcedores que compareçam em peso no Maracanã, rumo às semifinais.

“Futebol não se resume só em qualidade. É muita coisa além disso. Futebol é trabalho, competência, coração, raça, é acreditar. Fico feliz de transmitir isso para meus companheiros”, complementou Gum, em entrevista ao Globo Esporte. “Fiquei muito grato a Deus, porque o lance no primeiro jogo foi grave. Eu torci o tornozelo e o joelho. Poderia ter quebrado a perna ou rompido ligamentos. Fui treinando dentro do possível. Acordei no dia do jogo com mais dores, porque forcei no treino de terça. Causou um trauma. No aquecimento eu fiquei muito preocupado porque o tornozelo estava doendo. Tomei uma injeção quando voltei para o vestiário… Não tem como fugir da batalha, jamais vou me esconder, jamais vou deixar de lutar”.

É esse o tipo de atitude que dá identidade a um clube e motiva os companheiros. É esse o tipo de jogador que faz o que qualquer torcedor espera, porque se torna mais um deles em campo. É esse tipo de partida, além dos 90 minutos, que ergue um ídolo. Gum nunca será Carlos Alberto Torres ou outros craques que passaram pela defesa tricolor. Não importa. Seu lugar na história do clube se torna único. Ele sabe o que é ser Fluminense. Ele é Fluminense. E a noite em Montevidéu será sempre uma memória inescapável nesta trajetória, de alegrias ou tristezas, mas sobretudo de compromisso.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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